
segunda-feira, 31 de agosto de 2009
A ilha / Para Adolfo Bioy Casares

domingo, 23 de agosto de 2009
O escritor, sua memória e seu ofício

quarta-feira, 19 de agosto de 2009
Como fazer para encontrar o céu aqui na Terra?
As montanhas de Minas Gerais aproximavam-se com seus contornos naquela tarde de uma sexta-feira pela Br 040. Eu ia dar aula no mestrado em Juiz de Fora, terra de grandes amigos e inúmeras saudades. Contra o céu azul pairavam algumas nuvens sujas de rosa, com algumas pinceladas de amarelo limão e branco Kilimanjaro. E a pergunta a seguir me veio a cabeça. Quando cheguei no hotel, peguei uma folha de papel e, tal como um raio que desfere impiedoso o seu golpe, escrevi estas possibilidades de respostas para mim (que não me saciaram, nem me responderam de todo, portanto, convoco para que vocês continuem) mas, agora, passado algum tempo, divido com vocês.
Como fazer para encontrar o céu aqui na Terra?
1- Deixe de lado os preconceitos
2- Siga o preceito do seu coração
3- Seja alegre
4- Se permita também ser triste
5- Se permita até não ser
6- O ser humano é isso: alegre e triste, simples e trêmulo
7- Esqueça as horas
8- Mas não das pessoas
9- Procure pelo seu irmão
10- Mas não tente achar sua irmã (permita que ela vá, livre como os dias que sempre ondulam)
11- Apenas permita que ela te ache
12- Abra os braços para um abraço
13- Abra as mãos para os aflitos
14- Segure sua mão oposta
15- Segure a queda premeditada
16- Não ponha invólucros no sorriso
17- Costure uma roupa alegre
18- E também outra com o tecido da dignidade
19- Não saia de casa à toa
20- Mas saia de casa para ficar à toa
21- Encontre um amigo perdido
22- Encontre alguém perdido
23- Faça dele um amigo
24- Saiba encontrar o sol num dia chuvoso
25- Principalmente para aqueles desabrigados pela vida
26- Saiba ouvir o canto dos pássaros
27- Mesmo que eles só existam na sua imaginação
28- Renuncie ao ato contínuo de renunciar a vida
29- Renuncie ao desespero
30- Renuncie ao fato de querer dar trégua a vida
31- Não renuncie nunca ao amor
32- Nem tenha medo de amar apaixonadamente
33- Mesmo que dele não se tenha muitas esperanças
34- Regue a vida com um balde de carinho
35- Regue um encontro
36- Plante uma semente de futuros
37- Regue com acordes suaves
38- Espere para ver os sons nas tonalidades das nuvens
39- E os galhos vergando para dar sombra a sua alma
40- Estremeça com o frio
41- Dos corações gélidos de indiferença
42- E dos desagasalhados pela vida
43- Indigne-se com a falta de indignação
44- Plante uma lágrima
45- Numa caixa de lenços abandonada pelos amantes
46- Desenvolva projetos
47- Um trevo em forma de anjo
48- Um manto costurado de sorrisos
49- Uma pegada recente plantada na relva macia
50- Acredite que você acredita em seus sonhos
51- Em que crêem os que não crêem?
52- Suba uma colina e de lá grite uma palavra que nunca tenha sido dita
53- Invente uma palavra e ela já será uma frase, uma sentença, uma
oração
54- Assim, os céus descerão
55- Dê uma bússola para seus filhos
56- E ofereça o caminho do mundo para eles
57- Encontre o filho perdido dos outros
58- Você - nunca se esqueça - pode ser a bússola que eles necessitam
59- Reserve um lugar na primeira fila da generosidade
60- Mas justamente por isso compre mais um lugar
61- Nunca se sabe quem estará precisando
62- Há sempre alguém a mais
63- Há sempre alguém com menos
64- Reserve a expectativa para O Encontro
65- Seja gentil, isso gera Gentileza
66- Não desperdice sua bondade com quem não a mereça
67- Não se impaciente com o atraso dos outros
68- Mas se impaciente com o pouco caso, a indiferença
69- Pegue seu saca-rolhas preferido
70- Abra uma garrafa de nuvens
71- Abra um pote de anti-guerras
72- Abra uma lata de soluções
73- Procure freneticamente a sua
74- Alie-se ao mar
75- Alicie-se com suas espumas
76- Recrie o vento
77- Sopre um sudoeste em seus próprios cabelos
78- Mova as dunas de lugar
79- Desperte um rio
80- Seja uma correnteza
81- Deságue suavemente no mar
82- Veja que você pode ser doce e abissal ao mesmo tempo
83- Seja luz para que haja sombras
84- Seja inverno para que te sucedam primaveras
85- Seja complexo para que possam achar em você suas partes mais
simples
86- Eleve uma criança ao colo
87- Eleve um pensamento
88- Não crie limo para outros escorregarem
89- Antes, seja um tobogã de vertigens
90- Leia um livro para um cego
91- E também para uma criança ainda cega para o alfabeto
92- Conte uma história inesquecível
93- Invente muitas outras
94- Se invente, ou melhor, reinvente-se a cada dia
95- Seja um agricultor de verdades
96- Semeie com seus princípios
97- Adube com os meios mais sinceros
98- Certifique-se da honestidade dos fins
99- Mas não abra mão da colheita afinal,
100- Home is where the heart is.
101- Seja simples
102- Pinte um quadro
103- Dilua-se em cores
104- Não seja noir, black
105- Mas permita-se ser dark
106- Cante um hino
107- Pinte sua história
108- Seja um cavalete para os instáveis
109- Dilua-se em outros
110- Mas nunca se perca de você mesmo
111- Equilibre-se numa única nota
112- Faça dela sua harmonia
113- A partitura da sua vida
114- Crie cores jamais inventadas
115- Sorria em lilás
116- Faça um aperto de mão em azul cobalto
117- Dê um abraço em Terra di Siena
118- Solfeje em verdes Paul Veronese
119- Reze em amarelo van Gogh
120- Tome um café às margens do Danúbio
121- Suba o Everest dos teus sonhos
122- Eleve-se um degrau acima em tua vida
123- Seja você e mais alguém
124- Seja outros, plural
125- Mas permita-se sentir a solidão pela falta destes mesmos outros
que habitam em você
126- Incline-se um pouco mais para ouvir o outro
127- Curvar-se pode ser um ato majestoso
128- No fundo, você estará reverenciando a você mesmo
129- Um gesto para ser seguido por todos ao infinito
130- Passe um café para seu amor ao cair da tarde
131- E verás a tarde soerguer-se impávida, um colosso
132- Festeje o aroma da broa de milho
133- Lembre-se que um simples campônio plantou, regou, até que a
espiga estivesse pronta para seu usufruto
134- Lembre-se deste seu parceiro imaginário
135- Porque lembrar-se dos outros também é cuidar
136- Portanto, para cuidar de você mesmo, basta que não se esqueça de
você mesmo
137- Lembre-se da sua infância
138- Da primeira goiaba comida
139- Da primeira árvore que subiu na vida
140- Da primeira queda
141- Ah, este foi seu outono
142- Caíste com a primeira folha / outono da vida
143- E descobriste o valor de aprender a se erguer
144- Mas, lembre-se também do primeiro amigo na escola
145- Da primeira professora
146- Do primeiro brinquedo
147- E da primeira traquinagem feita com seu melhor amigo
148- Suspire pela lembrança do primeiro olhar apaixonado
149- Sorria tristemente ao lembrar-se do primeiro não
150- Conte para todos como foi seu primeiro sim
151- O susto, a emoção e a ardência do primeiro beijo
152- Ah, quanto encanto há no primeiro beijo
153- Ainda não se está no mundo da lua, mas pode ser seu Everest
154- A doce escalada até a conquista do outro
155- Não deixe a tinta do seu passado amarelar
156- Pegue suavemente o pincel
157- Faça do seu corpo uma tela viva, caliente
158- Onde outros possam perder seus olhares em suas campinas
verdejantes
159- Mergulhe em Rouge Naphtol Noir, a cor inconfundível das paixões
160- Apaixone-se pelo adolescente que você foi
161- Seja uma ilha de fantasias possíveis
162- Recrie antigos conceitos
163- Uma ilha pode ser uma pessoa cercada de felicidade por todos os
lados
164- Então, pule a cerca e caia nela
165- Uma ilha é um oceano de possibilidades
166- É sentir o aroma da primeira fornalha, e ser grato por poder
presenciar este momento mágico, solene
167- Há milhões de pessoas neste mundo que esperam ansiosos por este
instante
168- Assim como uma lagarta sonha em ser borboleta
169- Assim como um salmão sonha em subir o rio
170- Ou como um filhote de pássaro aguarda para arriscar o primeiro
vôo
171- Assim também o jaguar corre desenfreado atrás de sua gazela
172- Ou como os corvos festejam o amadurecimento do milho
173- Faça um espantalho para espantar os humanos-corvos
174- Espante-se com a vida, não seja indiferente a ela
175- Afague um cachorro
176- Ande num cavalo a galope
177- Amarre com cipó um feixe de lenha
178- Procure pelos gravetos mais simples
179- Estes lhe darão o melhor fogo
180- Para queimar os temores
181- Para dissipar a escuridão de suas trevas
182- Não se afaste das sensações tormentosas
183- Tente, ao menos, compreendê-las
184- Asse um peixe, multiplique seus pães
185- Convide os amigos para um vinho
186- Suba uma serra com névoas
187- Deite sobre uma pedra
188- Olhe atentamente para as nuvens que festejam sua chegada
189- Elas indicarão a direção do vento
190- Pense que essa direção pode ser o sentido há muito esperado para
sua vida
191- Recrie sentidos, nuvens-animais, nuvens-castelos, nuvens-
hieróglifos
192- Invente novos rumos, outros caminhos
193- Mergulhe no rio, que é sempre outro
194- Mergulhe em outras vidas
195- Prenda a respiração
196- Solte lentamente o ar
197- O seu e o dos outros
198- Compartilhem do mesmo ar / hálitos da vida
199- Seus desejos / Seus enamoramentos / Seus encantos
200- Mas, mistério! Nunca revele todos os seus segredos...
sábado, 15 de agosto de 2009
Entre alfaces, rúculas e sorrisos

quarta-feira, 12 de agosto de 2009
Crise criativa
quarta-feira, 5 de agosto de 2009
Godofredo em teoria / um conto
Godofredo em teoria
Para Marianna Soares
O carteiro carrega nas costas um mundo de palavras, todas elas, seja em que língua for, o peso é sempre o mesmo e a tradução é uma só: esperança. ( do livro, A última palavra)
Godofredo era um bom carteiro, aliás, um homem bom. Tinha duas coisas das quais muito se orgulhava. Uma penca de filhos e uma penca de cartas que ele distribuía como uma árvore distribui suas folhas no outono. Deixava cair cada envelope, cada pacote, cada misteriosa encomenda diretamente nas mãos dos destinatários. Não gostava das caixas de correios, pois as julgava frias. Pensava em quem havia escrito cada carta e a saudade do encontro ali depositada. Mãos velhas de tanto capinar, mãos jovens de tanto se masturbar, mãos trêmulas necessitando se amparar e outras solitariamente desgarradas precisando se entrelaçar.
Com apenas o segundo grau completo - o que era exigido por profissão – Godofredo, se não tinha a instrução necessária para ler muitos livros, sabia da importância das palavras na vida de cada um. Sabia também que ele era o último elo que faltava na corrente da memória das distâncias intransponíveis. Via com uma lucidez espantosa o rumo das vidas percorrerem nas suas costas o fardo do perdão, a alegria do reencontro, a tristeza de uma eterna despedida, a possibilidade de um novo emprego, o rito sumário da demissão indesejada, a convocação para uma assembléia, a mala-direta comercial, a convocação sempre incômoda do dentista, a carta de amor perfumada e o telegrama aflito do ciúme doentio da paixão: ‘Estou muito mal sem você. Preciso te ver. Urgente’.
Aconteceu certa vez de entregar mais uma carta para D. Clara, uma mulher dos seus quarenta e poucos anos (Godofredo não era muito bom em correlacionar a fisionomia com a idade). Na verdade, D. Clarabóia do Brasil Teixeira. Achava engraçado aquele nome. Uma Clarabóia para o Brasil. E sorria caminhando, apertando os passos com seus sapatos corroídos pelo asfalto quente ou pela chuva impiedosa. Sempre andando para chegar a tempo ao esperado destino. Deveria, segundo seus cálculos, ser a décima terceira carta. “Número da sorte dona. É a décima terceira carta do Sr. Renato para a senhora”, disse o encabulado God, que quase nunca puxava assunto com as pessoas para não parecer intrometido ou descomposturado, conforme ele mesmo gostava de dizer. Foi então que ele ouviu pela primeira vez a voz que correspondia àquela destinatária. “Ele só vive em teoria. Promete, promete, mas não cumpre nunca o que escreve.” Godofredo sorriu agradecido sem saber o que dizer ou o que contrapor para continuar o assunto. Ajeitou o boné azul com a bandeira do Brasil na cabeça, arremessou a pesada mochila amarela com o restante das cartas para as costas, e ficou só com a metade da frase: ‘ele vive em teoria’. É bem verdade que a gente só ouve o que quer, mas God, por educação e respeito hierárquico, não quis ouvir o resto. Achou sonoro aquele ‘viver em teoria’ e percebeu que aquelas palavras traduziam de maneira formidável a vida que ele levava. Se ele levava cartas, papéis escritos por inúmeras pessoas para tantas outras inalcançáveis, ele deduziu que também levava a vida em teoria. Sorriu encabulado, agradeceu a frase que ela parecia ter-lhe destinado por encomenda. Achou estranho por que em geral ele não era o destinatário, mas o meio caminho, a ponte-levadiça, o pombo-correio, o fiel mensageiro, o arauto entre a mão por dizer e o coração por escutar.
Foi a partir deste dia que as coisas começaram a andar um pouco estranhas para o carteiro. Botou na cabeça que queria ser uma palavra. Qual? Não importava. Achou tão bonito aquilo de se levar uma vida em teoria, embora sua interpretação não estivesse lá bem de acordo com a D. Clarabóia, mas para ele que havia se agarrado como um marisco à rocha, só a primeira parte da frase deveria ser levada a sério. No fundo, só aquela vida em teoria importava. Achava assim um sentido que faltava à sua vida. Era um bom homem, como já disse, mas cumpria o seu destino, como Isaac diante da adaga na mão impiedosa do pai. Caravaggio que o diga! Aquela frase havia revelado uma epifania em sua vida que ele iria doravante tratar de lavrá-la como um bom ourives faz diante do seu tesouro.
Queria ser uma palavra. Já se disse. Mas, a pergunta insistia. Qual? Não nele, mas em mim. Ele não estava preocupado com qual palavra, mas simplesmente A palavra. E qualquer que fosse a palavra ele já ficaria satisfeito, pois estaria se transformando em teoria. Era fácil, muito simples até. Mais simples do que a simplicidade humilde com a qual tinha vivido até então: a profissão de carteiro, o cuidado com os inúmeros filhos – isso sabia fazer bem, jactava-se orgulhoso - da mulher iletrada, mas mãe zelosa, do culto aos domingos na igreja vizinha da sua casa. Sua mulher ia sempre ao culto do pastor Antenor Diógenes, mas ele mostrava-se zeloso por tanta coisa por fazer que nunca quis se ater à demanda divinatória. Até que um dia, por opção ou osmose, acabou cedendo aos louvores e pulou o muro da incredulidade.
Mas agora era diferente. E qual era esta magnífica diferença? É que a escolha era genuinamente dele. Sem influência dogmática ou ritos impostos. Sentia-se feliz nesta liberdade de poder escolher. E sem saber muito bem o porquê, esta idéia de querer ser uma palavra era a coisa mais sublime que poderia fazer na sua vida. Nada poderia atrapalhá-lo ou mesmo detê-lo. Na verdade, não havia razões explícitas para tal, mas dentro do seu peito borbulhava uma espécie de comichão ou êxtase como se estivesse prestes a alcançar o Nirvana. Já fazia muito tempo que não estudava, mas com algum esforço e pesquisa num caderno de português de um dos meninos, reencontrou o sentido quase exato para a palavra teoria. Anotou numa folha avulsa que arrancou de um dos cadernos das crianças: O substantivo theoría (achou que o filho tinha copiado errado a palavra. Tinha um agá ali de intrometido, pensou. Precisava mais tarde chamar a atenção do menino na hora da cópia. Escreveu ao lado da página: corrigir o Aristeu no ditado. Teoria e não theoria.) significa ação de contemplar, olhar, examinar, especular e também vista ou espetáculo. Também pode ser entendido como forma de pensar e entender algum fenômeno a partir da observação. Conjunto sistemático de opiniões, regras ou leis. Escreveu também. Construção imaginária; utopia, sonho, fantasia.
É isto! Exclamou feliz. Utopia, sonho, fantasia. Viver a vida em teoria é viver a palavra sonhada. Contemplação, olhar, espetáculo. Mas é tudo isso que eu vivo cotidianamente! Gritou exultante. Só não sabia que era isso. Vou virar mesmo uma palavra. Cantou exultante. Uma palavra contemplada, uma palavra-espetáculo, uma palavra olhada. E passou a se dedicar a cada minuto do seu trabalho em ser uma palavra. A cada passo que dava queria ser uma palavra difrente: nos primeiros dias quis ser uma palavra azul, depois uma palavra luz, depois uma palavra jardim, depois uma palavra surda, depois a palavra vampiro. E teve medo. Mas depois, as palavras iam-lhe e vinham-lhe numa velocidade espantosa sem que ele pudesse retê-las ou abandoná-las. Gostava disso, gostava principalmente das palavras que não compreendia de imediato, mas que depois iam-lhe abrindo os poros assim como as lágrimas da chuva cavavam sulcos na terra ressequida. O barulho que estas lhe faziam parecia infernal, mas à medida que as compreendia eram os mais lindos sons. Foi assim que ouviu pela primeira vez a palavra ‘Celta’ e um som extremamente melodioso invadiu-lhe o passado, de forma que o atavismo das experiências esquecidas retornaram como se estivessem adormecidas há séculos. Agora lhe eram extremamente familiares e ele falava e compreendia uma profusão de línguas.
Godofredo andava diferente. Quem o olhava passar percebia que ele estava contínuamente falando sozinho. Andava com um olhar distante, mas com um inseparável sorriso nos lábios. Foi no final de uma tarde de verão, num dia de extremo calor, enquanto Godofredo voltava para casa, que Natanael, o açougueiro, deu o grito: gente! Venham ver! A sombra da perna do Godofredo transforma-se num A quando ele anda. Vejam só! É quando ele abre as pernas. Sua sombra é um A. Gritava espantado e surpreso.
Pois bem, se a primeira letra foi o alfa, antes de se chegar ao ômega, a sombra de Godofredo denunciava no chão uma infinidade de outras letras, que se juntavam em palavras para se desfazerem na próxima passada. Algumas crianças corriam divertidas ao seu lado tentando adivinhar a palavra que ele ia formar. Alguns faziam cantigas das palavras, os poetas rimavam poesias, os amantes recolhiam entusiasmados pequenos montículos da palavra paixão, os mal-educados abaixavam-se para pegar os palavrões e lançar contra o próprio God, que sem se importar continuava seu caminho coberto por outras palavras que lhe protegiam dos arranhões. Caminhava enquanto pensava cada vez mais crédulo que elas eram uma parte do seu corpo, assim como suas mãos eram apenas a continuação dos seus braços. As palavras continuavam através do seu corpo tornando-o cada vez mais infinito. Definitivo.
A última vez que viram o Godofredo, se é que ainda se pode dar este nome a ele, já não tinha mais nada que se assemelhasse a um corpo. Era uma montanha de letras que se acotovelavam umas por cima das outras, cada uma querendo fazer mais e mais parte daquele ser. E, se por ventura uma caía ao chão, logo era substituída por mais duas, dez ou mesmo trinta. A velocidade com que isso ocorria era espantosa. Parece que agora ele estava virando uma página. Talvez já pudesse até mesmo ser uma carta de amor ou um livro por fazer...
Carlos Eduardo Leal