quinta-feira, 2 de abril de 2015

Temor e Terror no Mundo Globalizado - Sobre a Banalidade do Mal


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Temor e Terror no Mundo Globalizado - Sobre a Banalidade do Mal

                                                                             Carlos Eduardo Leal

Deixai toda esperança, ó vós que entrais

                                      Dante - Inferno. Canto III
De que temos medo? De nosso corpo.
                                       J. Lacan - A Terceira

A entrada no mundo não é sem conseqüências. Parafraseando o poeta, se aquilo que herdamos de nossos pais, devemos conquistar para fazê-lo nosso, a maior herança em questão é a linguagem. E a entrada na linguagem, que é feita através de um significante que já está à espera, é da ordem do traumático. “O Espírito Santo é a entrada do significante no mundo”, ironiza Lacan.[1]  O Mal, diz Mateus, o apóstolo, não é o que entra em nossa boca mas o que sai dela. Então, é do Outro que vem o mal? Esta, me parece que seja uma posição reivindicatória, ou seja, dizer que é do Outro que vem o mal e não nos responsabilizarmos por aquilo que fazemos. O que é o mal em sua banalidade, o mal entendido e o mal-estar do sujeito no mundo? Qual é a posição ética do sujeito em relação ao seu desejo?
Que mundo é este que herdamos hoje e que pretendemos deixar para nossos descendentes?
Na ópera Orfeu e Eurídice, Esperança só irá acompanhar Orfeu até a entrada do Hades. Lá, diz o libreto escrito por Monteverdi, ele encontrará a célebre frase de Dante: ‘Deixai toda a Esperança, ó vós que entrais.’ Orfeu terá que ir por si próprio, ou melhor, na certeza que seu canto de amor irá remover todos os entraves do caminho. A Esperança não entra no inferno, assim como também não entra no céu, porque o que mais se poderia esperar para os cristãos se já encontraram Deus? A esperança está conectada aqui na terra ao campo da promessa. No inferno ela não entra e no céu não há mais o que esperar porque já se encontrou com o Deus que se esperava encontrar. Sobra para a esperança aqui na terra a dimensão de estar fadada a ser um encontro faltoso. O que faz com que surja na clínica a dimensão da dívida, do ressentimento e da culpa.
Por sua vez, Dante sabe que para encontrar Beatriz ele deverá descer até ao inferno enfrentando toda a sorte de transgressões: ‘incontinência, violência e fraude’[2] que tentarão impedi-lo de seguir adiante até encontrar sua amada. Para isso ele contará coma ajuda do poeta latino Virgílio, que será seu guia, seu senhor e seu Mestre e irá desde então representar sempre a Razão humana, que é, na concepção aristotélica adotada por Dante, condição da Virtude.
Então, é no plano da condição humana que a esperança acaba por se desfazer diante das promessas não cumpridas. E hoje sabemos através do campo da ética, o quanto a covardia moral tem tornado as relações humanas em verdadeiras banalizações do mal[3].
Foi assim que Otto Adolf Eichmann, capturado pelo Mossad, a polícia secreta de Israel, num subúrbio de Buenos Aires na noite de 11 de maio de 1960, “foi levado a julgamento na corte distrital de Jerusalém em 11 de abril de 1961, objeto de cinco acusações: entre outros, cometera crimes contra o povo judeu. (...) A cada uma das acusações, Eichmann declarou-se: ’Inocente, no sentido da acusação’.”[4] “Em que sentido então”, pergunta-se Hannah Arendt, ele se considerava culpado? Na longa inquirição do acusado, nem a defesa, nem a acusação, nem nenhum dos três juízes se deu ao trabalho de lhe fazer essa pergunta óbvia. (...) ‘Com o assassinato dos judeus não tive nada a ver. Nunca matei um judeu, dizia Eichmann, nem um não-judeu - nunca matei um ser humano’. Segundo Hannah Arendt, só havia provas de que ele podia ser acusado de “ajudar e assistir” à aniquilação dos judeus...”[5] Ainda segundo ela, a defesa não prestou a menor atenção à teoria do próprio Eichmann, mas a acusação perdeu muito tempo num mal-sucedido esforço para provar que Eichmann, pelo menos uma vez, matara com as próprias mãos um menino judeu na Hungria.  “Será”, pergunta Arendt, “que ele teria se declarado culpado se fosse acusado de cumplicidade no assassinato?”[6]
Aí está para mim a questão principal que gostaria de debater: até que ponto estamos sendo cúmplices em relação ao terror que se instala no mundo? Qual a nossa parcela de responsabilidade sobre a banalidade do mal no mundo moderno? Será que por não matarmos com nossas próprias mãos uma pessoa poderemos ser cúmplices? No dia a dia, será que por muitas e muitas vezes não acabamos sendo cúmplices de pequenos delitos da vida cotidiana? E será que estas micro relações possuem alguma ligação com o macro social? Em que escala métrica de valores estamos vivendo para pensarmos ou talvez até nos iludirmos, com o fato de que a nossa não participação direta em algo não tem nada a ver com o que acontece, por exemplo, atualmente no Iraque, no longo conflito entre judeus e suas parcas fronteiras, ou na África aidética, ou mesmo ali ao sopé das Senzalas chamadas de “Juramento”, “Mineira”,  “Macacos”, “Vidigal”, “Rocinha”, “Alemão” e tantos outros? Onde estamos no conforto das nossas Casas Grandes entrincheirados atrás das enormes cercas elétricas e econômicas? Aqui não há segregação étnica como na Bósnia? O que é o Brasil hoje? Quem somos nós e o que queremos quando queremos nos reunir para falar dos nossos medos? Se o que temos medo é do nosso corpo, como nos diz Lacan, é porque ‘concentrada está nossa alma’ na irredutível dor do corpo em sofrimento.
Qual é a política do medo? Lacan cita Renan para dizer que a estupidez humana dá uma idéia do infinito.[7]  A política do terror é a destruição da palavra, do diálogo. A violência é o que destrói a palavra. Hannah Arendt, em seu livro Sobre a Violência, enuncia a seguinte fórmula que nos parece muito apropriada: ela diz que “a forma extrema de poder é o Todos contra Um, a forma extrema da violência é o Um contra Todos”.[8] Ela faz uma distinção importante entre o poder e violência. Para Arendt, a violência tem sido incrementada pela revolução tecnológica.[9] Ela diz neste livro que o poder é legítimo. O poder é sempre poder outorgado e reconhecido pelos outros, enquanto que a violência está no campo da impostura perversa e da usurpação. Para ela, o tema político mais crucial é, e sempre foi, a questão sobre “quem domina quem.[10] Poder, vigor, força, autoridade e violência seriam simples palavras para indicar os meios em função dos quais o homem domina o homem.”[11] Não dá para não nos remetermos aqui ao dizer de Freud em seu texto Mal-Estar na Civilização, sobre de onde provém nosso sofrimento. Ele diz que vem de três direções: do poder superior da natureza, da fragilidade de nossos corpos - do que temos medo? de nosso corpo - e do domínio de um homem sobre o outro. E cita Plauto: Homo homini lupus.[12] O homem é o lobo do homem.  E mais adiante ao falar sobre o ‘narcisismo da pequenas diferenças’ diz que “não é fácil aos homens abandonar a satisfação para a agressão”.[13]
Se tentamos pensar o social, não devemos esquecer uma crítica do próprio Lacan de que a psicanálise não pode ser uma espécie de remédio social. [14] Crítica que permanece atual, mas que temos que nos aparelharmos com as implicações do nosso tempo para repensarmos as categorias que nos estão sendo impostas pela dimensão globalizadora do terror. É, porque há aí um gozo, um gozo a mais que é pura destrutividade. A violência implementada toma a forma do desconhecido, que não é mais só da ordem do unheimlich freudiano. A impotência gera a violência.[15]
O objeto do terror já não é mais o objeto do fetiche nem mais o objeto da fobia. O medo de Hans jamais será igual ao terror dos tempos modernos. O medo de Hans é localizável e funciona como um apelo ao pai. Mas, a quem apelar hoje em dia? Qual instância institucional é apelável quando as fronteiras deixaram de ter alfândegas - os exemplos vão da internet à invasão dos EUA sobre o Iraque contrariando a resolução da ONU - ou quando as fronteiras tornaram-se apenas linhas imaginárias tais como se recortou antigamente a Terra entre meridianos e paralelos.
O que alguns filósofos políticos, tais como Habermas e Derrida[16] têm dito que o que se deve fazer é criar um organismo internacional que tenha a força de Lei que a ONU e o Tribunal Internacional de Haia já não possuem mais.
O objeto do terror adquire um certo ar topológico já que ele está dentro desde fora, isto é, o objeto do terror pode ilusoriamente aparecer como i(a) disfarçado na multidão, quando na realidade ele é uma célula do Hamas, ou da Al Qaeda pronto para explodir tudo à sua volta. Portanto, o objeto do terror já não pertence mais à categoria do unheimlich por maior angústia que esta inquietante estranheza possa nos causar. Parece que ele nos leva à condição do que tenho chamado de certeza instável, que é uma categoria de eventos não lineares e que estão abertos à dimensão do evento, como nos fala Badiou, ou do Espanto (Thaumatdzein) tal como nos fala Hannah Arendt retomando a dimensão platônica em seu olhar sobre o mundo. Esta categoria, pode e creio que deva ser pensada como algo que faz uma desestabilização das garantias Imaginárias, produzindo quebras no Simbólico e fazendo a irrupção do Real.[17] Esta certeza instável é produto dos nossos dias, produto da volatilidade das relações e do trabalho, produto da fragilidade do futuro e produto do desenraizamento do passado. Creio que o exercício do nosso pensamento e das nossas ações devam se mover na lacuna entre o passado e o futuro para que possamos encontrar saídas éticas e não tão sombrias para os dias atuais.
As incertezas e as especulações sobre como quando e aonde acontecerá novamente o ato terrorista, tudo isso trai a incapacidade que as pessoas possuem de pelo menos determinar a magnitude do perigo. Assim, o medo a respeito da infinitização da banalidade do mal do homem sobre ele mesmo, acaba por produzir uma ferida constantemente aberta diante do futuro, e não só do passado.
Para concluir, gostaria de retomar o conceito de frustração no seminário Livro 4, A Relação de Objeto: “A frustração é, por excelência, o domínio da reivindicação. Ela diz respeito a algo que é desejado e não obtido, mas, que é desejado sem nenhuma referência a qualquer possibilidade de satisfação nem de aquisição. A frustração é por si mesma o domínio das exigências desenfreadas e sem lei.[18]
Ora, a nossa sociedade está perversamente reorientada para um gozo desenfreado compulsivo onde impera o domínio das exigências desenfreadas e sem lei. Em R.S.I. Lacan dirá que o gozo é aquilo que não se submete a Lei. Parece que o terror é desta ordem, isto é, um gozo fundamentalista do Outro que massacra adultos e crianças inocentes como recentemente em Beslam na escola da Rússia. 
Será que para nos guiarmos pelas veredas da terra teremos que encontrar um poeta, tal e qual Dante lançou mão de Virgílio, ou será que nós, analistas, estamos numa posição ética tal que possamos em nossas práticas clínicas, em nossos depoimentos, ou na psicanálise aplicada, encontrar meios que possam permitir a outros a atravessarem a fúria diabólica do terror?
Conclamo a cada analista, que cotidianamente, se ponha a responder estas questões que há muito foram propostas para Lacan em Televisão: Que posso saber? Que devo fazer? Que é-me permitido esperar?
 




[1] Lacan,J. O significante e o Espírito Santo, in, A Relação de Objeto, livro 4. Jorge Zahar Editor. RJ. 1995.
[2] Alighieri,D. Inferno, Canto I, in, A Divina Comédia. Editora 34, SP. p.25
[3] Arendt, H. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Cia das Letras. SP. 2000.
[4] ibid. p. 32
[5] ibid. p. 33
[6] ibid. p. 35
[7] Lacan, J. ibid. p. 24.
[8] Arendt, H. Sobre a Violência. Relume Dumará. RJ. 1994. p. 35.
[9] Neste sentido é interessante citarmos Jacques Derrida em sua entrevista logo após ao atentado ao WTC em 11 de setembro de 2001, quando ele diz que “a relação entre Terra, terra, território e terror mudou, e é necessário saber que isso ocorreu por causa do conhecimento, isto é, por causa da tecnociência. É a tecnociência que empalidece a distinção entre guerra e terrorismo.  Borradori,G. Filosofia em Tempo de Terror: Diálogos com Habermas e Derrida. J. Z. E. RJ. 2004. p. 111.
[10] ibid. p. 36.
[11] ibid. p. 36. grifo nosso.
[12] Freud, S. O Mal-Estar na Civilização. [1930(1929)]. ESB. Imago Editora. RJ. Vol XXI. p. 133.
[13] ibid. p. 136.
[14] Lacan, J ibid.. p. 17.
[15] “O terror global que culminou com o ataque de 11 de setembro carrega os traços anarquistas da revolta impotente dirigida contra um inimigo que não pode ser derrotado em qualquer sentido pragmático. O único efeito possível que ele pode exercer é chocar e alarmar o governo e a população”.  Borradori,G. Filosofia em Tempo de Terror: Diálogos com Habermas e Derrida. J.Z. E. RJ. 2004. p. 46.  Para isto, ver também a citação que Eric Laurent faz sobre Habermas como um filósofo político que pensa sobre a insurreição como modo de ir contra certos tipos de poder e o horror. Laurent cita três horrores nomeados por Lacan: “o horror da verdade, o horror do ato, e o horror de saber.” , in,  A Escola e o Pior, Opção Lacaniana n. 7e8. 1993.
[16] Borradori, G. Filosofia em Tempo de Terror: Diálogos com Habermas e Derrida. Jorge Zahar Editor. RJ. 2004.
[17] “Tecnicamente falando, uma vez que nossas sociedades complexas são altamente suscetíveis a interferências e acidentes, elas certamente oferecem as oportunidades ideais para a pronta interrupção das atividades normais. (...)O terrorismo global é extremo, tanto em sua falta de metas realistas como na exploração da vulnerabilidade dos sistemas complexos.” Um diálogo com Jürgen Habermas. ibid. p.46.
[18] Lacan,J. ibid.p. 36.

Godofredo em Teoria


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Godofredo em teoria
                                                                                      
O carteiro carrega nas costas um mundo de palavras, todas elas, seja em que língua for, o peso é sempre o mesmo e a tradução é uma só: esperança.
Godofredo era um bom carteiro, aliás, um homem bom. Tinha duas coisas das quais muito se orgulhava. Uma penca de filhos e uma penca de cartas que ele distribuía como uma árvore distribui suas folhas no outono. Deixava cair cada envelope, cada pacote, cada misteriosa encomenda diretamente nas mãos dos destinatários. Não gostava das caixas de correios, pois as julgava frias. Pensava em quem havia escrito cada carta e a saudade do encontro ali depositada. Mãos velhas de tanto capinar, mãos jovens de tanto se masturbar, mãos trêmulas necessitando se amparar e outras solitariamente desgarradas precisando se entrelaçar.  
Com apenas o segundo grau completo - o que era exigido por profissão – Godofredo, se não tinha a instrução necessária para ler muitos livros, sabia da importância das palavras na vida de cada um. Sabia também que ele era o último elo que faltava na corrente da memória das distâncias intransponíveis. Via com uma lucidez espantosa o rumo das vidas percorrerem nas suas costas o fardo do perdão, a alegria do reencontro, a tristeza de uma eterna despedida, a possibilidade de um novo emprego, o rito sumário da demissão indesejada, a convocação para uma assembléia, a mala-direta comercial, a convocação sempre incômoda do dentista, a carta de amor perfumada e o telegrama aflito do ciúme doentio da paixão: ‘Estou muito mal sem você. Preciso te ver. Urgente’.
Aconteceu certa vez de entregar mais uma carta para D. Clara, uma mulher dos seus quarenta e poucos anos (Godofredo não era muito bom em correlacionar a fisionomia com a idade). Na verdade, D. Clarabóia do Brasil Teixeira. Achava engraçado aquele nome. Uma Clarabóia para o Brasil. E sorria caminhando, apertando os passos com seus sapatos corroídos pelo asfalto quente ou pela chuva impiedosa. Sempre andando para chegar a tempo ao esperado destino. Deveria, segundo seus cálculos, ser a décima terceira carta. “Número da sorte dona. É a décima terceira carta do Sr. Renato para a senhora”, disse o encabulado God, que quase nunca puxava assunto com as pessoas para não parecer intrometido ou descomposturado, conforme ele mesmo gostava de dizer. Foi então que ele ouviu pela primeira vez a voz que correspondia àquela destinatária. “Ele só vive em teoria. Promete, promete, mas não cumpre nunca o que escreve.” Godofredo sorriu agradecido sem saber o que dizer ou o que contrapor para continuar o assunto. Ajeitou o boné azul com a bandeira do Brasil na cabeça, arremessou a pesada mochila amarela com o restante das cartas para as costas, e ficou só com a metade da frase: ‘ele vive em teoria’. É bem verdade que a gente só ouve o que quer, mas God, por educação e respeito hierárquico, não quis ouvir o resto. Achou sonoro aquele ‘viver em teoria’ e percebeu que aquelas palavras traduziam de maneira formidável a vida que ele levava. Se ele levava cartas, papéis escritos por inúmeras pessoas para tantas outras inalcançáveis, ele deduziu que também levava a vida em teoria. Sorriu encabulado, agradeceu a frase que ela parecia ter-lhe destinado por encomenda. Achou estranho por que em geral ele não era o destinatário, mas o meio caminho, a ponte-levadiça, o pombo-correio, o fiel mensageiro, o arauto entre a mão por dizer e o coração por escutar.
Foi a partir deste dia que as coisas começaram a andar um pouco estranhas para o carteiro. Botou na cabeça que queria ser uma palavra. Qual? Não importava. Achou tão bonito aquilo de se levar uma vida em teoria, embora sua interpretação não estivesse lá bem de acordo com a D. Clarabóia, mas para ele que havia se agarrado como um marisco à rocha, só a primeira parte da frase deveria ser levada a sério. No fundo, só aquela vida em teoria importava. Achava assim um sentido que faltava à sua vida. Era um bom homem, como já disse, mas cumpria o seu destino, como Isaac diante da adaga na mão impiedosa do pai. Caravaggio que o diga! Aquela frase havia revelado uma epifania em sua vida que ele iria doravante tratar de lavrá-la como um bom ourives faz diante do seu tesouro.
Queria ser uma palavra. Já se disse. Mas, a pergunta insistia. Qual? Não nele, mas em mim. Ele não estava preocupado com qual palavra, mas simplesmente A palavra. E qualquer que fosse a palavra ele já ficaria satisfeito, pois estaria se transformando em teoria. Era fácil, muito simples até. Mais simples do que a simplicidade humilde com a qual tinha vivido até então: a profissão de carteiro, o cuidado com os inúmeros filhos – isso sabia fazer bem, jactava-se orgulhoso - da mulher iletrada, mas mãe zelosa, do culto aos domingos na igreja vizinha da sua casa. Sua mulher ia sempre ao culto do pastor Antenor Diógenes, mas ele mostrava-se zeloso por tanta coisa por fazer que nunca quis se ater à demanda divinatória. Até que um dia, por opção ou osmose, acabou cedendo aos louvores e pulou o muro da incredulidade. 
Mas agora era diferente. E qual era esta magnífica diferença? É que a escolha era genuinamente dele. Sem influência dogmática ou ritos impostos. Sentia-se feliz nesta liberdade de poder escolher. E sem saber muito bem o porquê, esta idéia de querer ser uma palavra era a coisa mais sublime que poderia fazer na sua vida. Nada poderia atrapalhá-lo ou mesmo detê-lo. Na verdade, não havia razões explícitas para tal, mas dentro do seu peito borbulhava uma espécie de comichão ou êxtase como se estivesse prestes a alcançar o Nirvana. Já fazia muito tempo que não estudava, mas com algum esforço e pesquisa num caderno de português de um dos meninos, reencontrou o sentido quase exato para a palavra teoria.  Anotou numa folha avulsa que arrancou de um dos cadernos das crianças: O substantivo theoría (achou que o filho tinha copiado errado a palavra. Tinha um agá ali de intrometido, pensou. Precisava mais tarde chamar a atenção do menino na hora da cópia. Escreveu ao lado da página: corrigir o Aristeu no ditado. Teoria e não theoria.) significa ação de contemplar, olhar, examinar, especular e também vista ou espetáculo. Também pode ser entendido como forma de pensar e entender algum fenômeno a partir da observação. Conjunto sistemático de opiniões, regras ou leis. Escreveu também. Construção imaginária; utopia, sonho, fantasia.
É isto! Exclamou feliz. Utopia, sonho, fantasia. Viver a vida em teoria é viver a palavra sonhada. Contemplação, olhar, espetáculo. Mas é tudo isso que eu vivo cotidianamente! Gritou exultante. Só não sabia que era isso. Vou virar mesmo uma palavra. Cantou exultante. Uma palavra contemplada, uma palavra-espetáculo, uma palavra olhada. E passou a se dedicar a cada minuto do seu trabalho em ser uma palavra. A cada passo que dava queria ser uma palavra difrente: nos primeiros dias quis ser uma palavra azul, depois uma palavra luz, depois uma palavra jardim, depois uma palavra surda, depois a palavra vampiro. E teve medo. Mas depois, as palavras iam-lhe e vinham-lhe numa velocidade espantosa sem que ele pudesse retê-las ou abandoná-las. Gostava disso, gostava principalmente das palavras que não compreendia de imediato, mas que depois iam-lhe abrindo os poros assim como as lágrimas da chuva cavavam sulcos na terra ressequida. O barulho que estas lhe faziam parecia infernal, mas à medida que as compreendia eram os mais lindos sons. Foi assim que ouviu pela primeira vez a palavra ‘Celta’ e um som extremamente melodioso invadiu-lhe o passado, de forma que o atavismo das experiências esquecidas retornaram como se estivessem adormecidas há séculos. Agora lhe eram extremamente familiares e ele falava e compreendia uma profusão de línguas.
Godofredo andava diferente. Quem o olhava passar percebia que ele estava contínuamente falando sozinho. Andava com um olhar distante, mas com um inseparável sorriso nos lábios. Foi no final de uma tarde de verão, num dia de extremo calor, enquanto Godofredo voltava para casa, que Natanael, o açougueiro, deu o grito: gente! Venham ver! A sombra da perna do Godofredo transforma-se num A quando ele anda. Vejam só! É quando ele abre as pernas. Sua sombra é um A. Gritava espantado e surpreso.
Pois bem, se a primeira letra foi o alfa, antes de se chegar ao ômega, a sombra de Godofredo denunciava no chão uma infinidade de outras letras, que se juntavam em palavras para se desfazerem na próxima passada. Algumas crianças corriam divertidas ao seu lado tentando adivinhar a palavra que ele ia formar. Alguns faziam cantigas das palavras, os poetas rimavam poesias, os amantes recolhiam entusiasmados pequenos montículos da palavra paixão, os mal-educados abaixavam-se para pegar os palavrões e lançar contra o próprio God, que sem se importar continuava seu caminho coberto por outras palavras que lhe protegiam dos arranhões. Caminhava enquanto pensava cada vez mais crédulo que elas eram uma parte do seu corpo, assim como suas mãos eram apenas a continuação dos seus braços. As palavras continuavam através do seu corpo tornando-o cada vez mais infinito. Definitivo.
A última vez que viram o Godofredo, se é que ainda se pode dar este nome a ele, já não tinha mais nada que se assemelhasse a um corpo. Era uma montanha de letras que se acotovelavam umas por cima das outras, cada uma querendo fazer mais e mais parte daquele ser. E, se por ventura uma caía ao chão, logo era substituída por mais duas, dez ou mesmo trinta. A velocidade com que isso ocorria era espantosa. Parece que agora ele estava virando uma página. Talvez já pudesse até mesmo ser uma carta de amor ou um livro por fazer...
   

Carlos Eduardo Leal

quarta-feira, 1 de abril de 2015

O Deserto dos Tártaros - Dino Buzatti

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Stand-by


Seco, duro, áspero e, no entanto, comovente, lírico até os confins da imaginação. Condição humana, demasiadamente humana para parafrasear Nietzsche. O Deserto dos Tártaros, livro de Dino Buzzati, é um libelo contra o ufanismo que muitos pretendem dar à vida como caráter salvacionista. Neste deserto a vida se apresenta como ela é para o jovem oficial Giovanni Drogo: um punhal feito de areia, pedras, miragens e esperanças que pouco a pouco vai sendo espetado em suas costas, fora do alcance da sua vista.
A história é sobre o jovem Drogo que, ao alistar-se no exército, é nomeado ‘por engano’ para servir no distante forte Bastiani. Ao chegar quer certificar-se do equívoco e o oficial que o recebe diz que se ele quiser, pode ir embora no dia seguinte com desonras ou ficar só mais quatro meses quando então viria o médico. Assim, poderia conseguir uma dispensa médica sem nenhum problema. Ele decide esperar pelos quatro meses. Ele também decide ou é contagiado, a esperar pela ‘eminente’ invasão dos Tártaros, um povo hostil que ficava além das longínquas fronteiras. E os quatro meses se transformam em oito e os meses se transformam em um ano, mais outro e ele não consegue ir embora. Fica ali em stand-by, como um aparelho pronto para funcionar, tal como os outros, aprisionados pelo fascínio da espera, pela honra de serem úteis para alguma coisa, para a guerra...que nunca chega.
Tudo o que ele vê se resume a esperanças, céus estrelados, esperanças, rochas frias, esperanças, areias, pedras angulares, noites geladas de inverno e dias que passam como uma nuvem pela sua vida regrada de servidão voluntária numa fortaleza no alto de uma montanha escarpada; na fronteira, à espera do inimigo que nunca vem. Vê esperanças na fronteira da vida, no limiar intransponível entre a vontade de lutar e a passividade da espera. Forte solitário: dizer isto é o paradoxo que compõe a vida do jovem oficial. Forte e solitário. Os dois, tanto o forte quanto o personagem principal são quase que esquecidos pelo resto da humanidade que ficou lá em baixo na cidade: os amigos, a família, enfim a sociedade viva e borbulhante. Entre os membros do forte apenas a dura rotina dos dias a esperar, feito os personagens Vladimir e Estragon da peça de Samuel Beckett, por um Godot que nunca vem. ‘Nada a fazer’ é a fala dos personagens de Beckett que poderia ser retomada pelo jovem oficial Drogo. Os Tártaros estão sempre por vir. Todos têm que ficar atentos. Metáfora ou alegoria sobre a vida? Estaria a vida também sempre por vir? Ilusão demasiada, que cega como a própria areia do deserto ou rigor realista que nos aprisiona em nossos castelos convictos que mais adiante virá a recompensa pelos esforços acumulados durante os anos de trabalho. Os Tártaros são o céu como recompensa por ter sido sempre fiel aos valores militares e à vida abnegada à qual se impôs? Freud, em seu texto O mal-estar na civilização, nos diz que a civilização exige renúncia pulsional em troca de felicidade. Mas o que vemos é que quanto mais renunciamos à condição humana, menos a felicidade é alcançável. É o antagonismo irremediável entre as exigências da pulsão e as restrições da civilização. A tristeza, a solidão, o desânimo e a depressão é o que temos encontrado nos fortes-solitários ao qual nos enclausuramos em baias (viramos animais?) no cotidiano de nossos dias. O que podemos fazer para que nossas vidas não sejam divididas, como disse Cândido, “entre as convulsões da inquietação e a letargia do tédio’ ou num ‘pântano dormente’, segundo Flaubert? E se a abnegação, dedicação e luta diárias não forem nada mais do que só isso? Uma aposta errada na direção onde a ilusão da miragem tropeça na sofreguidão da esperança. Leiam o livro e, por favor, sirvam-se da vida.
Dino Buzzati – O Deserto dos tártaros. Editora Nova Fronteira. Apresentação de Ugo Giorgetti.
Se você prezado(a) leitor(a) gosta de ouvir música enquanto lê, a dica de hoje é de uma única música, talvez inspirado pela aridez do deserto dos tártaros ou do Beckett: So in love, de Cole Porter, com gravação de K.D. Lang. Imperdível.