quinta-feira, 29 de março de 2012

Eu, Clarice e as rosas


 
"Quem nunca roubou não vai me entender. E quem nunca roubou rosas, então, é que jamais poderá me entender. Eu, em pequena, roubava rosas." Clarice Lispector - Cem Anos de Perdão, in, Felicidade Clandestina

Eu tinha uns dez ou onze anos quando este fato se deu. Era uma noite escura no sítio do meu avô. Estávamos na varanda de trás onde tinha um fogão de lenha. A luz toda quase vinha de lá, pois a luz da lâmpada era amarela, fraquinha. Estávamos conversando quando meu vô disse que vender rosas daria um bom dinheiro. Eu disse que queria.
- Queria o quê? o vô me perguntou
- Ué, vender rosas. respondi na inocência de um menino que já pensa saber tudo sobre a vida.
Então meu avô me pediu para pegar um papel cinza, grosso que estava bem ao lado do fogão. Ele rasgou um naco do papel, tirou um lápis do seu bolso e escreveu um "contrato" (a lápis!!!, meu avô era genial) e me fez assinar ao final. Eu mal sabia o que era assinatura, ainda mais de um documento. 
Dali a duas semanas eu o Zezinho, motorista do vô, passamos por São Lourenço onde ele tinha casa (estava em obras e precisava pagar os empregados) e de lá fomos para Jacareí-SP num sítio de uns japoneses. Compramos mudas e mais mudas de rosas. Eu não acreditava, mas meu avô apostava e acreditava em mim. Eu que me achava tão tonto para os negócios (não mudei muito atualmente). Lembro vagamente de terem me mostrado uma rosa negra, mas "que era muito cara, non?", disse sempre sorrindo o japonês. 
Viemos com o porta-malas carregado de mudas de rosas. Cheguei orgulhoso do meu feito. Meu avô que entre outras coisas tinha um posto de gasolina , arranjou dúzias de latas de óleo. Limpamos todas e com  terra, adubo, amor e muita disposição fomos plantando. 
Quando começaram a vingar eu descia nos fins de semana do sítio com o Zezinho, parando de casa em casa oferecendo rosas. Como já era inventivo fui logo dando nome aos bois. E passei a chamar aquele negócio de Rosedu (Rosas do Zezinho e do Edu). Agora escrevendo, depois de contar esta história para tantas pessoas, me dei conta do filme do Orson Welles e seu Cidadão Kane: A homofonia pairava em "Rosebud". 
Achavam engraçado descer um menino de um carro enorme com chofer oferecendo mudas de rosas numa latinha de óleo. Vendi muitas. Foi meu primeiro emprego e minha grande decepção.
Eu que me achava tímido entre todos os primos tão fortes e valentões, ganhava do vô a confiança do futuro empresário. Mas eis que um dia um empregado do sítio errou na mistura do fertilizante e matou todas as rosas e, também, meu sonho de me tornar um grande empresário do ramo das rosas.
Meu avô me deu um sermão dizendo que eu deveria tomar mais cuidado, etc e tal. Mesmo que eu, em lágrimas, explicasse (e ele sabia) que eu não morava no sítio.
Não Clarice, eu nunca roubei rosas. Eu as vendia. Mas, eu te entendo. Entendo o que é querer ter uma coisa e não poder. Entendo a delicadeza e os espinhos da vida e de uma rosa. Mas, juro, se você passasse diante da minha plantação eu fecharia (um) (d)os olhos só para te ver, travessa, roubando minhas rosas. 

domingo, 18 de março de 2012

Arqueologia da Memória

 

Estava só em meu sorriso quando senti a tua presença. Meu coração desatou a correr como um bólido pelos campos da fertilidade perdida. O sangue percorreu meu corpo resgatando as cores e os cheiros da adolescência. Senti pulsar o mundo como um vulcão a jorrar suas lavas pela primeira vez rompendo o hímen da terra virgem.
A sala em penumbras. Coloquei o nosso preferido da Nina Simone. Deixei apenas um fundo musical. Abri um tinto. Teu perfume invadia aposentos adormecidos pela memória. Abri as janelas e deixei a brisa da noite entrar. A lua tremeluzia entre nuvens, alva como recendia tua pele. Acendi um havana que havia guardado para ocasiões como esta. Havia festa novamente em mim. 
Voltei à minha poltrona. Tomei nas mãos trêmulas o livro que me esperava aberto. A luminosidade amarela do abajur fraquejava a memória.
Após mais de oitenta anos voltei a sentir um lampejo de felicidade na memória olvidada. Meus olhos, ainda brilhantes pelo ocorrido, voltaram a repousar sobre Álvaro de Campos: "vale a pena sentir para ao menos deixar de sentir."

sexta-feira, 16 de março de 2012

O rio dentro do menino

 
Chong Fah Cheong - River Children 

Quando era menino, gostava de empurrar meus amigos para dentro do rio. O que eu não sabia é que eu mesmo era o rio. E, assim, devagar e aos poucos, me povoava de amigos inseparáveis que desciam em meus afluentes vida afora. Compartilhavam comigo as horas felizes no sitio de meu avô. Vez por outra um saía às margens e roubava uma tangerina e voltávamos a descer. Olhar o céu de barriga para cima, correnteza abaixo, era uma de nossas maiores travessuras. Não sabíamos o que nos esperava tororoma abaixo, mas mesmo assim, sabíamos um pouco melhor sobre o céu que nos acolhia.


Quando eu era menino tinha saudades do futuro. Agora que cresci, olho minhas imagens e não me reconheço mais entre aqueles. Eu era todos e também nenhum.