TERRA
IMÓVEL
Não há ninguém que não abandone esta vida como se tivesse acabado de
entrar nela.
Epicuro
Não lembro
bem qual era o dia da semana. Na verdade tanto podia ser uma terça ou uma
quarta-feira. Saber sobre o dia da semana se tornou absolutamente irrelevante
diante do ocorrido. O que é a efeméride de um dia após o outro quando se perde
todos os referenciais que nos davam alguma sensação de proteção e segurança?
Preciso, isso
sim, dizer que era um fim de primavera do mês de novembro e que o meu relato é
feito do Brasil, ou o que era o Brasil na América do Sul. É importante
localizar geograficamente, pois as coisas não ficaram boas e, desde então, os
referenciais daquilo que estamos acostumados a chamar de Planeta Terra, mudaram
drasticamente.
Já faz muito
tempo, talvez o nome nem importe muito, mas eu me chamo Davi Matheus - o que é
um nome quando já não importa mais a sua identidade? Não possuo nenhuma estrela
para ser seguida e nem sou o primeiro apóstolo do Novo Testamento.
Quero deixar
este relato para as futuras gerações entenderem o que aconteceu sob a ótica de
um cidadão comum e não sob as lentes distorcidas da imprensa manipulada, dos
enlouquecidos e infinitos grupos religiosos do apocalipse que surgiram
ultimamente da polícia paranóica que a todos vigia diuturnamente ou dos
políticos de plantão; mestres ninjas na arte do disfarce.
Culpar
Copérnico, pobre coitado, por ter descoberto que a Terra gira ou Galileu Galilei
porque ela gira em torno do sol, é só a inútil tentativa de jogar uma bóia do
pensamento para quem já se afogou em idéias sem nenhum valor.
Ademais, este
escrito possui a imperiosa tentativa de obter lembranças, ou melhor, de
fixá-las na minha própria mente de como a Terra era antes do acontecido. Quero
registrar fatos que considero relevantes, minúcias que precisam ser contadas,
depoimento verídico de quem sobreviveu e ainda sobrevive à mais espetacular e
trágica hecatombe que a raça humana presenciou. Registrar é o meu dever antes
que tudo se transforme num imenso caldo disforme, numa sopa de letras mortas
imemoriais e páginas amareladas sem nenhum valor, fraternalmente coladas umas
às outras.
Para que
possa ser alcançável, caso alguém saiba ainda o que fazer para ter chances de
sobrevida, a latitude na qual me encontro é 22º54’17.44” e a longitude,
43º07’24.76”. Só podemos, como já disse, nos localizar com alguma segurança
através das antigas medições de latitude e longitude. Tudo se tornou extremamente
inseguro e periculoso. Simples atos, como andar a pé ou olhar
contemplativamente ao redor, tornaram-se um estorvo. Escrevo daqui onde é ou
era o Brasil, América do Sul.
Este mês
completa quatro anos desde que a Terra parou de girar, ou melhor, de deixar de
fazer a rotação sobre seu próprio eixo. Ainda conseguimos, não sabemos como,
continuar com a translação, isto é, nossa órbita em torno do sol. Mas estamos
parados, imóveis como se fôssemos uma única montanha no imenso espaço
sideral.
Sendo assim,
o sol não se move e, desde aquela época, a região do mundo, que era dia,
continua sendo dia e a parte da Terra que era noite, mergulhou num mundo de
trevas difícil de penetrar e conviver. Por sorte, ou azar, não sei bem, a linha
do meridiano que passa pelo eixo setentrional do Brasil continuou com sol e
toda a linha vertical para cima e para baixo no globo terrestre ficou
ensolarada. Isto compreende uma grande faixa que se estende desde a parte oeste
da África (Mauritânia, Senegal, Gamba, Costa do Marfim, Marrocos e, entre
outos, Serra Leoa), grande parte do oceano atlântico até uma parte do Pará,
Amazonas, Roraima, Amapá e Acre, e desce até parte do Chile, este último já
quase totalmente na zona sombria. A faixa de sol continua sobre boa parte das
Antilhas, América Central, parte do México, parte da costa oeste americana que
atinge parte dos estados do Texas, Nebrasca, Dakota do Sul e do Norte até o
Canadá. Os estados da Califórnia, Arizona e Colorado já estão submersos no
início da faixa da ausência do sol que se prolonga pelo pacífico até a Ásia,
atingindo a Coréia do Norte e do Sul, Malásia, Japão, Cingapura, Indonésia e a
outrora poderosa China.
Com isso, a
temperatura média anual desta parte diariamente ensolarada do planeta foi se
elevando pouco a pouco até atingir um patamar impensável de 42,5 graus. Nos
picos de calor, quando acontece de não chover durante muito tempo, a
temperatura chega com freqüência a 45 graus e já foi registrado até 49 graus
como média entre alguns meses. Nestes períodos, o ar fica pesado como uma densa
e constante camada de poluição que entorpece a alma e caímos numa espécie de
transe sonambúlico. As minhas lancinantes dores de cabeça são um inferno à
parte neste cenário caótico e conturbado.
À direita
desta faixa do atlântico, que vai incluir toda a Europa e à esquerda aqui no
Brasil, do Acre, inicia-se uma grande zona de sombra como uma espécie de
degradée maldito: quanto mais nos aproximamos da região da profunda noite, mais
descontrolada se tornam as rebeliões populares e mais inóspitas vão se tornando
estas mesmas regiões da Terra. A gélida temperatura tem devastado alguns tipos
de vida da flora e da fauna. Nestas regiões de sombra a temperatura média fica
entre menos 20 e 10 graus.
Assim, o
cultivo de qualquer tipo de planta, alimentícia ou não, passou a ser um
problema grave que tem afetado a fome global. O gado tem minguado e o que
sobrou está doente, é saqueado ou é trancafiado em fazendas confiscadas pelos
governos na esperança de fazerem clones que estimulem a reprodução de carne
para a população faminta. Baleias, pela escassez de comida, arremetem-se
furiosas contra as praias em busca de peixes menores e acabam grotescamente
encalhando nas areias. O espetáculo grotesco da retaliação com facas e facões
do enorme mamífero pela população faminta, é algo que só tínhamos comparação
nas antigas, e hoje já quase totalmente dizimadas, populações da África. Agora
são cenas comuns em pessoas das classe média e alta que vivem à espera de um
milagre. Temos que pensar que os antigos conceitos de classes baixa, média ou
alta não existem mais. Talvez fosse melhor nos dividirmos em castas como na
Índia. Isso subverte totalmente o conceito de relações e de democracia no
ocidente, mas como já disse, conceitos como ocidente e oriente foram totalmente
banidos na vida atual.
Mais uma vez
os mais ricos continuam sendo favorecidos pelo tráfico ilegal de alimentos.
Verdadeiras máfias e milícias paramilitares foram se formando ao longo do
planeta em defesa de projetos escusos e defesa de populações que possam pagar
cada vez mais caro por comida. O ouro, assim como o petróleo que já passou a
casa dos U$800 o barril, deixaram de ser referências para a economia mundial.
Agora cada setor, assim se divide a Terra, por setores, possui a sua própria
referência monetária de acordo com a posição, mais ou menos privilegiada que
manteve quando a Terra parou sua rotação. Os antigos meios de locomoção, como
os cavalos e as carroças foram reativados, pois a escassez de gasolina
converteu o mundo na medida exata da sua paralisação.
Alguns
indicadores servem de parâmetro e são sempre em relação aos alimentos que podem
ser o gado, algum tipo de fruta, alguns grãos como a soja no Brasil, o arroz na
China, ou ainda, a volta das especiarias da Índia, ou seja, cada setor avilta o
preço segundo a demanda do mercado interno ou externo. Porém, como a demanda é
enorme, pouco se exporta com medo de faltar no próprio país. Este procedimento
por um lado resulta na aniquilação de qualquer tipo de moeda como meio de troca
e, portanto, qualquer possibilidade de equivalência cambial. Por outro lado, a
deterioração e a putrefação dos alimentos produzem uma toxina no ar que dá a
sensação de que estamos constantemente num fétido banheiro público. Tudo cheira
a ranço e falta de limpeza. A falta de higiene tem levado a população a sofrer
de graves moléstias e epidemias cada vez mais alarmantes. A escassez da água é
um problema de saúde pública. Os banhos são controlados e feitos uma única vez
a cada quinze dias, quando isso é possível.
Os rios estão
secando e a vazão da foz do rio Amazonas, para se ter um único exemplo, que no
passado representava três vezes por minuto o volume de água da Baía da
Guanabara, hoje, para o mesmo parâmetro, são necessários cinco dias. Os outros
rios no Brasil ou pelo resto do mundo afora simplesmente tornaram-se
insuficientes ou estão à mingua.
O Pantanal já
não pode ser mais assim denominado. Em alguns lugares ainda se preservam alguns
charcos, mas na sua grande extensão, tornou-se pela grande quantidade de mosquitos
que transmitem a febre amarela e muitas outras doenças, uma região inóspita e
impenetrável. Aquilo que um dia foi um paraíso terrestre, tornou-se um lodaçal
e um atoleiro para a vida. Aliás, a vida como um todo no planeta terra tem se
tornado um lodaçal para a alma humana. É uma metáfora corrosiva que eu jamais
gostaria de representar, mas foi nisto que nós nos tornamos.
O que
aconteceu com a Terra? É um fenômeno que todos procuram sem a menor
possibilidade de explicação pela resposta. No dia do evento, o barulho foi
ensurdecedor e muitos ficaram tontos e enjoados como se tivesse um enxame de
abelhas zunindo sobre suas cabeças, outros morreram de acidentes de carro,
trens e aviões, outros ainda de enfarto pelo susto inesperado. Eu mesmo posso dizer
que foi muita sorte ter sobrevivido.
Primeiro
ouviu-se em todo o mundo uma enorme explosão, o tal do estrondo ensurdecedor
que em muitos ainda fica repercutindo incessantemente dentro dos tímpanos,
muitos perfurados, diga-se de passagem, e depois, o estrondo foi seguido por um
barulho tão alto que mais pareciam milhões de locomotivas se arrastando nos
trilhos, tentando frear ao mesmo tempo.
A atmosfera
ficou mais parecida com a lunar, como afirmaram, logo após o desastre, alguns
astronautas americanos e soviéticos. A gravidade se modificou e g, medida
gravitacional, já não é mais 9,8ms2. Ela está, segundo os especialistas, em
torno de 5,6 ms2. Aliás, a gravidade já não obedece mais a nenhuma constante.
Ela também se tornou uma variável devido à falta de rotação da Terra. Quase se
pode voar, diria, mas em compensação a respiração tornou-se mais ordinária:
respira-se ofegantemente.
Correr
tornou-se um grande desafio e aqueles que o fazem sentem um enorme cansaço após
o exercício físico. Tento me poupar fazendo o mínimo de esforço possível para
não gastar a energia que ainda tenho. Por outro lado, como tudo se tornou mais
leve pela modificação da força de atração da Terra, carregar certos objetos
antes impensáveis, tal como uma geladeira, é como carregam uma caixa de
sapatos.
Mas a
comparação sobre a leveza dos corpos termina aqui. A vida não se tornou mais
leve, ao contrário, dia a dia temos caminhado rumo à desertificação da raça
humana. Todos os parâmetros sobre a qualidade de vida pioraram sendo que alguns
de maneira drástica. Por exemplo, as escolas pararam de funcionar e o
raciocínio parece que tem sido apenas um: sobreviver. Parecem ter esquecido que
novos aprendizados poderiam trazer novas soluções para este novo tipo de vida.
Mas não. A ganância pela luta pela sobrevivência aparelhou as pessoas apenas
para o imediatismo. Ninguém mais quer pensar a médio e longo prazo. Um ano,
equivale ao que era a contagem de dez ou vinte anos. Em seis meses tudo pode
mudar para pior, dizem os noticiários.
Não se pode
mais confiar em nenhuma informação. Todos parecem querer vigiar suas atitudes
para saber se você encontrou alguma coisa para comer ou alguma vantagem na
vida. Não se pode mais confiar em ninguém. Todos querem sobreviver e fazem de
tudo para conseguí-lo. Estamos numa espécie de rali da vida, num salve-se quem
puder.
Os hospitais
estão entupidos de seres humanos com doenças que não se conhece a causa e muito
menos o diagnóstico. Muitos enlouqueceram, mas como já disse, como todos os
parâmetros para se pensar a normalidade já não mais existem. Inúmeros
medicamentos são usados indiscriminadamente para qualquer um devido à escassez
de matéria prima para voltar a produzi-los em larga escala.
Aliás, tudo
que um dia se conheceu como linha de produção tornou-se obsoleto. Quem produz
teve que reinventar suas máquinas para a nova realidade e muitos dos antigos
aparelhos como o barômetro e o aparelho de pressão, não possuem mais nenhuma
utilidade.
As ruas
viraram um verdadeiro inferno. Sair à rua tornou-se algo muito arriscado, uma
loteria, pois os carros colidem em altíssima velocidade já que a resistência do
ar caiu de maneira violenta. Os assaltos são inclassificáveis, pois vêm de
todos os lugares quando menos se espera.
A polícia é
insuficiente para conter as desordens e os saques tornaram-se inevitáveis com
fugas espetaculares em altíssima velocidade ou com enormes saltos em altura. Os
delinquentes, que costumam ser os mais ousados, proporcionam momentos de cinema
hollywoodiano que a televisão mostra ad
nauseum, quotidianamente. Os
muros de proteção das casas deixaram de ter qualquer função. Pulá-lo tornou-se
brincadeira de criança.
O meridiano
de Greenwich deixou de ser a referência para medir o tempo universal e o tempo
das efemérides. Portanto, as referências essenciais a respeito do dia e da
noite a que estávamos tão habituados, deixaram de existir desde este fatídico e
catastrófico dia.
A lua, pobre
dos poetas, melancolicamente fixou-se num eterno quarto minguante com pequenas
variações indefiníveis quando observada de certos pontos do nosso planeta.
Estamos, mais
do que nunca à mercê do destino e, pelo que parece, diante de um apocalipse sem
esperança de um Deus ao final.
Não há mais
variações climáticas como as quatro estações, no máximo duas: verão escaldante
e inverno seco. O vento deixou de soprar, as chuvas são ridiculamente esparsas
no lado noite da Terra pela falta de evaporação e, no lado claro, há a
incidência contínua e não previsível de fortes tempestades e inundações
insuportáveis.
As cidades
costeiras tiveram que ser evacuadas, pois o mar avançou em alguns lugares,
algumas centenas de quilômetros. Aqui no Brasil a primeira cidade a ser
evacuada por causa da invasão do mar foi Recife. Na Europa, quase toda a
Holanda e grande parte da Inglaterra estão submersas. Veneza não existe mais
assim como também grande parte da Ásia, principalmente a Indonésia, as ilhas
Jacarta, Maldivas e grande parte do Japão. Nas regiões mais altas, como a
cordilheira dos Andes, a vida tornou-se impossível.
O que talvez
seja melhor sejam as regiões do meio, nem muito altas nem tanto ao nível do
mar.
Quanto a mim,
um informe: tentei sair deste lugar muitas vezes, mas não consigo. Parece que
não me deixam ou não encontro forças. Agora faço um último esforço para vencer
a inércia e partir rumo ao desconhecido. Quero ir para lugares arejados que
ainda tenham alguma outra chance de vida, algum lugar da Terra que não esteja
tão inóspito como no local onde vivo ao nível das intempéries do oceano. Uma
região que não seja tão inóspita, nem tanto aos céus nem tanto a Terra.
Quero ter
forças para andar, preciso encontrar um meio de subsistir nem que para isso eu
tenha que me tornar um outro, diferente de tudo aquilo que aprendi ou
sonhei...
- O que houve com ele? Cochichou o
enfermeiro apontando para Davi Matheus.
-
Foi há quatro
anos quando sua avó morreu. Respondeu o médico. -Eles eram muito apegados. Viviam estranhamente como numa simbiose, um
para o outro, não tinham mais ninguém na família. Quando ele era criança, seus
pais e sua irmã morreram num trágico acidente de carro e só ele se salvou. Eu
era amigo dos seus pais. Foi horrível. A partir daí ele conseguiu levar uma
vida aparentemente normal. Depois da morte da sua avó sua vida estagnou por
completo, ficou taciturno e não deu mais nenhuma palavra. Está então assim
imóvel há quatro anos. O único fato realmente estranho e curioso é que ele só
chamava sua avó de Mãe Terra.
Um comentário:
"Quero ter forças para andar, preciso encontrar um meio de subsistir nem que para isso eu tenha que me tornar um outro, diferente de tudo aquilo que aprendi ou sonhei..."
parâmetros surgem da estranheza, bem como desaparecem.
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