Plantação de amanhãs
“Então a imaginação volta a ser o inseto que voa, esquecendo as
distâncias, e pousa na beira do presente” Felisberto Hernández
“Afinal, em meio da vida sempre se faz a
inexistente conta: temos mais ontem ou mais amanhãs?” Mia Couto
Retomo
meus amanhãs. Minhas memórias inventadas na infância. Memórias que fabrico na
saudade dos dias e na felicidade dos reencontros. Reencontrar-se com o passado
é fabricar amanhãs. Fábrica preciosa de palavras, letras e textos que escorrem
prateados de estrelas. O hoje é apenas ponte entre passado e futuro e, por
isso, deve ser construído com as mãos cheias de outros pequenos trechos da
vida. Hannah Arendt sabia disso. Clarice Lispector vivenciava isso, não-sem
sofrimentos e Stéphane Mallarmé jogava com seu dia quando dizia que "um
lance de dados jamais abolirá o acaso". O hoje, nascimento diário,
surpresa por ter acordado e saber-se vivo, precisa ser fabricado e não importa
de que material você o fabrica. O que é importante é que este material seja
verdadeiro, honesto para com você mesmo. Ética, dirão alguns. Trabalho árduo de
lapidação com as palavras, dirão outros. Tudo estava no sítio. Tudo está sempre
no mundo. É o real da vida, sua áspera dureza, dirão ainda muitos outros. Tal
qual ela se nos apresenta: tudo está, mas nada garante que você não irá
naufragar diante da gigantesca onda de fragilidades inaugurais. Há que se ir
até lá no mundo para buscar o suprimento necessário para atravessá-la. Por isso
a vida é um atravessamento: ela te atravessa e te prova – Clarice também sabia
disso -, e você precisa atravessá-la. Fabricá-la.
Alguns
fabricam seus dias com Pina Bausch, outros com Chet Baker, outros ainda com
Baudelaire, Rimbaud, Drummond, Platão, Sócrates, Freud, Homero, Sêneca, Pessoa,
o avô, Almodóvar, Van Gogh, Frida Kahlo ou Diogo Rivera, entre tantos outros.
Alguém me puxa pela manga da camisa para dizer: "ei, espera aí. Eu fabrico
meus dias com Einstein e relativizo tudo." Paro, atento, e sorrio um meio
riso relativo. Fico feliz porque esta pessoa me retribui com a generosidade da
curva do seu tempo
Seguir em
seu dia acompanhado da dura leveza dos encontros é morrer um pouco. E se é
feliz quando se morre um pouco. Não-todo. Porque nestas pequenas mortes você
tem a possibilidade de dar lugar para renascer amanhãs.
2 comentários:
Bom demais! Atravessar os dias, inundar-se das horas, surpreender-se nas esquinas...viver, enfim!
Boa travessia!
Bjs
Lindo texto, Edu!
Eu, de minha parte, tenho caminhado um pouco com tantos, e muito com tão poucos...
Um bj saudoso,
Adriana.
Postar um comentário