segunda-feira, 10 de setembro de 2012




  
Plantação de amanhãs

“Então a imaginação volta a ser o inseto que voa, esquecendo as distâncias, e pousa na beira do presente” Felisberto Hernández

“Afinal, em meio da vida sempre se faz a inexistente conta: temos mais ontem ou mais amanhãs?” Mia Couto

 “Existem palavras que deveriam servir uma única vez”  F.-R. de Chateaubriand

Retomo meus amanhãs. Minhas memórias inventadas na infância. Memórias que fabrico na saudade dos dias e na felicidade dos reencontros. Reencontrar-se com o passado é fabricar amanhãs. Fábrica preciosa de palavras, letras e textos que escorrem prateados de estrelas. O hoje é apenas ponte entre passado e futuro e, por isso, deve ser construído com as mãos cheias de outros pequenos trechos da vida. Hannah Arendt sabia disso. Clarice Lispector vivenciava isso, não-sem sofrimentos e Stéphane Mallarmé jogava com seu dia quando dizia que "um lance de dados jamais abolirá o acaso". O hoje, nascimento diário, surpresa por ter acordado e saber-se vivo, precisa ser fabricado e não importa de que material você o fabrica. O que é importante é que este material seja verdadeiro, honesto para com você mesmo. Ética, dirão alguns. Trabalho árduo de lapidação com as palavras, dirão outros. Tudo estava no sítio. Tudo está sempre no mundo. É o real da vida, sua áspera dureza, dirão ainda muitos outros. Tal qual ela se nos apresenta: tudo está, mas nada garante que você não irá naufragar diante da gigantesca onda de fragilidades inaugurais. Há que se ir até lá no mundo para buscar o suprimento necessário para atravessá-la. Por isso a vida é um atravessamento: ela te atravessa e te prova – Clarice também sabia disso -, e você precisa atravessá-la. Fabricá-la.
Alguns fabricam seus dias com Pina Bausch, outros com Chet Baker, outros ainda com Baudelaire, Rimbaud, Drummond, Platão, Sócrates, Freud, Homero, Sêneca, Pessoa, o avô, Almodóvar, Van Gogh, Frida Kahlo ou Diogo Rivera, entre tantos outros. Alguém me puxa pela manga da camisa para dizer: "ei, espera aí. Eu fabrico meus dias com Einstein e relativizo tudo." Paro, atento, e sorrio um meio riso relativo. Fico feliz porque esta pessoa me retribui com a generosidade da curva do seu tempo
Seguir em seu dia acompanhado da dura leveza dos encontros é morrer um pouco. E se é feliz quando se morre um pouco. Não-todo. Porque nestas pequenas mortes você tem a possibilidade de dar lugar para renascer amanhãs.

2 comentários:

ana maria disse...

Bom demais! Atravessar os dias, inundar-se das horas, surpreender-se nas esquinas...viver, enfim!
Boa travessia!

Bjs

Leitores do Mira disse...

Lindo texto, Edu!
Eu, de minha parte, tenho caminhado um pouco com tantos, e muito com tão poucos...
Um bj saudoso,
Adriana.