Sobre
a dor de existir
A angústia
não nos aponta uma saída, mas antes, um temor irremediável frente a
possibilidade da vida estar ameaçada. E a angústia é mesmo fonte de ameaça,
pois diante dela não há como nos escamotearmos ou tentarmos ludibriá-la. Quando
ela surge, surge também o pânico sob a ameaça de que o chão vai faltar, o ar
não chega aos pulmões e fica-se sufocado. Eminência avassaladora da morte. O
que Freud bem denominou de angústia, os psiquiatras denominam hoje de síndrome
do pânico. É um conceito generalizador e que acaba com a sutil filigrana da
clínica diferencial e do diagnóstico específico de cada sujeito. Como síndrome,
cabem todos. Como angústia, é a história subjetiva de cada um. A clínica
psicanalítica caminha, ao contrário das teorias universalistas, do universal
para o particular. As outras tentam fazer um pan-generalismo como se fossem
religiões que explicam tudo.
O despovoador (1970)(Martins Fontes Editora), texto
tardio de Samuel Beckett (1906/1989), é essencial para pensarmos a angústia. A
cena se passa toda dentro de "um cilindro de cinquenta metros de
circunferência e dezesseis de altura em nome da harmonia (sic), ou seja, mais
ou menos mil e duzentos metros quadrados de superfície total sendo oitocentos
de parede. Sem contar os nichos e túneis. Onipresença de uma fraca claridade
amarela sacudida por um vaivém vertiginoso entre extremos que se tocam. Um
corpo por metro quadrado, ou seja, um total de duzentos corpos número
redondo". Beckett não nos diz quando isso começou, ou seja, quando ou como
eles entraram lá. E, na verdade, não precisa, pois a princípio, a angústia não
tem origem e nem fim. Eles estão lá e é o que basta. Estão sem saída. E isso
não basta. Crianças recém-nascidas, jovens, adultos e velhos, divididos em
algumas categorias: os vencidos, os buscadores, os agitados e os sedentários.
As escadas para se alcançar os nichos e os túneis são poucas e faltam degraus.
Ainda por cima, deve-se obedecer uma certa ordem circular, como no Inferno de
Dante, para se alcançar a possibilidade de subir e descer os círculos do
cilindro. Quando esta ordem é quebrada, a violência é escutada através dos
murros e cabeçadas. A iluminação é fraca, mas o olho acostuma-se a tudo e a
temperatura, "ela leva menos de quatro secundos para passar de seu mínimo
que é de cinco graus a seu máximo de vinte e cinco, ou seja, uma média de cinco
graus apeenas por segundo". A precisão numérica/métrica/termoelétrica de
Beckett só faz aumentar a dimensão cirúrgica do cinza-sem-saída da angústia na
qual vivem as duzentas pessoas no cilindro. Ao contrário de Saramago em
seu Ensaio sobre a cegueira, Beckett não precisa aludir às
escatologias humanas para dar o tom de fim-de-mundo. Na verdade, ele nos fala
que o cilindro é incômodo para o amor, a pele fica ressecada e sujeita a
arrepios e "a ereção é rara". Isso basta para nos dar a ideia do
desassossego da alma tal como em Fenando Pessoa. Como dissemos sobre o
indizível que é a angústia, Beckett também nos alerta que "nem tudo foi
dito e nunca será" nos antecipando um fim sem fim. Talvez esta seja uma
bela metáfora para a própria vida, pois o homem busca tanto saber sobre
sua origem para tentar saber sobre o seu fim. Com isso ele ilusoriamente
imagina que poderia em seus pensamentos, ao tentar antecipá-lo, saber um
pouco mais sobre si e, portanto, desangustiar-se. Mas o cilindro só oferece
mistérios. Ali ninguém se deita e "ninguém olha para dentro de si onde não
pode haver ninguém".
Se a angústia é pressentida como uma
dor de existir, o caminhar na vida através da análise - embora muitas vezes
seja extremamente difícil -, é uma aposta que depois da dor, a luz que a
palavra revela compensará o caminho percorrido.
Carlos
Eduardo Leal
Psicanalista
e escritor
Para
quem gosta de ler ouvindo música: “Then I close my eyes” David Gilmour – Live
at the Royal Albert Hall. DVD.
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