quarta-feira, 8 de agosto de 2012



Sobre a dor de existir

A angústia não nos aponta uma saída, mas antes, um temor irremediável frente a possibilidade da vida estar ameaçada. E a angústia é mesmo fonte de ameaça, pois diante dela não há como nos escamotearmos ou tentarmos ludibriá-la. Quando ela surge, surge também o pânico sob a ameaça de que o chão vai faltar, o ar não chega aos pulmões e fica-se sufocado. Eminência avassaladora da morte. O que Freud bem denominou de angústia, os psiquiatras denominam hoje de síndrome do pânico. É um conceito generalizador e que acaba com a sutil filigrana da clínica diferencial e do diagnóstico específico de cada sujeito. Como síndrome, cabem todos. Como angústia, é a história subjetiva de cada um. A clínica psicanalítica caminha, ao contrário das teorias universalistas, do universal para o particular. As outras tentam fazer um pan-generalismo como se fossem religiões que explicam tudo.
O despovoador (1970)(Martins Fontes Editora), texto tardio de Samuel Beckett (1906/1989), é essencial para pensarmos a angústia. A cena se passa toda dentro de "um cilindro de cinquenta metros de circunferência e dezesseis de altura em nome da harmonia (sic), ou seja, mais ou menos mil e duzentos metros quadrados de superfície total sendo oitocentos de parede. Sem contar os nichos e túneis. Onipresença de uma fraca claridade amarela sacudida por um vaivém vertiginoso entre extremos que se tocam. Um corpo por metro quadrado, ou seja, um total de duzentos corpos número redondo". Beckett não nos diz quando isso começou, ou seja, quando ou como eles entraram lá. E, na verdade, não precisa, pois a princípio, a angústia não tem origem e nem fim. Eles estão lá e é o que basta. Estão sem saída. E isso não basta. Crianças recém-nascidas, jovens, adultos e velhos, divididos em algumas categorias: os vencidos, os buscadores, os agitados e os sedentários. As escadas para se alcançar os nichos e os túneis são poucas e faltam degraus. Ainda por cima, deve-se obedecer uma certa ordem circular, como no Inferno de Dante, para se alcançar a possibilidade de subir e descer os círculos do cilindro. Quando esta ordem é quebrada, a violência é escutada através dos murros e cabeçadas. A iluminação é fraca, mas o olho acostuma-se a tudo e a temperatura, "ela leva menos de quatro secundos para passar de seu mínimo que é de cinco graus a seu máximo de vinte e cinco, ou seja, uma média de cinco graus apeenas por segundo". A precisão numérica/métrica/termoelétrica de Beckett só faz aumentar a dimensão cirúrgica do cinza-sem-saída da angústia na qual vivem as duzentas pessoas no cilindro. Ao contrário de Saramago em seu Ensaio sobre a cegueira, Beckett não precisa aludir às escatologias humanas para dar o tom de fim-de-mundo. Na verdade, ele nos fala que o cilindro é incômodo para o amor, a pele fica ressecada e sujeita a arrepios e "a ereção é rara". Isso basta para nos dar a ideia do desassossego da alma tal como em Fenando Pessoa. Como dissemos sobre o indizível que é a angústia, Beckett também nos alerta que "nem tudo foi dito e nunca será" nos antecipando um fim sem fim. Talvez esta seja uma bela metáfora para a própria vida, pois o homem busca tanto saber sobre sua origem para tentar saber sobre o seu fim. Com isso ele ilusoriamente imagina que  poderia em seus pensamentos, ao tentar antecipá-lo, saber um pouco mais sobre si e, portanto, desangustiar-se. Mas o cilindro só oferece mistérios. Ali ninguém se deita e "ninguém olha para dentro de si onde não pode haver ninguém". 
Se a angústia é pressentida como uma dor de existir, o caminhar na vida através da análise - embora muitas vezes seja extremamente difícil -, é uma aposta que depois da dor, a luz que a palavra revela compensará o caminho percorrido.

Carlos Eduardo Leal  
Psicanalista e escritor
Para quem gosta de ler ouvindo música: “Then I close my eyes” David Gilmour – Live at the Royal Albert Hall. DVD. 

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