quinta-feira, 4 de agosto de 2011

A janela

 Van Gogh 



A janela

Aqui do alto da minha janela, aquela praia era tão minha que poderia sem o menor esforço calçar as pessoas na palma da minha mão. Isso não fiz, mas dei para incluí-las no meu pensamento. O que dava no mesmo, ou quase. Assim, aos poucos e de cada vez, dia após dia, eu tecia fios firmes e delicados. Com meu pensamento feito anzol eu fisgava na areia da praia de Copacabana aqueles tipos que mais me interessavam.
Icei bem alto uma mulher negra em sua selvagem gordura que comia risoles e empadas gordurosas. Comia rindo e a cada mordida escorriam farelos de seus filhos. Um se chamava Antonio como seu avô paterno. Outro Habacuque, porque era bíblico. E ela evangélica. Havia ainda um terceiro e um quarto que não eram filhos, mas quase. Seus pais haviam morrido em acidente com uma arma que era para defesa. A mulher disparou a arma sem querer e o marido foi atrás dela porque quis. Foi assim que os filhos ficaram órfãos. Nomes nem tinham direito. Do que chamassem respondiam. Ocorria então algumas vezes, não poucas, de responderem no lugar de outros. Isso dava par ouvir daqui de cima. Aliás, do alto tudo é muito figurativo. As pessoas não têm cheiro, unhas mal cortadas ou epiderme purulenta. São lisas em seus sentimentos e quase em câmara lenta os seus movimentos são presságios nebulosos de suas vidas. Religião sempre, principalmente quando vão entrar no mar. Benzem-se para Deus e Iemanjá e dão as costas para Oxossi que é deus das matas. Mergulham seus corpos como fazem com os legumes quando vão lavá-los dentro de uma grande bacia. De tempos em tempos saio da janela. Talvez para olhar para mim mesmo ou buscar um copo d’água na cozinha. Quando volto à janela noto que alguns se afogaram no tempo. Já são outros que estão ali a disputar um pedaço de areia macia.
Iço outro. Agora é um rapaz que faz embaixadinhas com uma bola. Demonstra fazer tudo que sabe. Demonstra para quem? Ele não sabe. Só sabe que deve movimentar-se ligeiro com a bola. Finge chutes incríveis, passes mágicos, canetas memoráveis e lençóis diabólicos. Chama-se Zico Coimbra dos Santos. Nasceu no mesmo ano em que o flamengo foi campeão mundial. Seu pai, que Deus o tenha, era flamenguista da cabeça aos pés, como ele mesmo gostava de dizer. Adorava ser chamado de Zico Santos. Achava que isso lhe dava mais respeito e de certa forma reverenciava duplamente seu pai: pelo nome do batismo e por ter certeza que seu pai havia virado um santo lá nos céus. Porém ficava triste quando lembrava da chance que havia perdido para jogar futebol pelo seu clube do coração. Foi no mesmo ano que seu pai morreu de cirrose hepática. Assim soube porque os médicos lhe disseram. Seu pai bebe muito. Mas não bebia. Era mentira por verdade. Seu avô também havia morrido de cirrose. Mas sua língua travou e ele não soube dizer isso para os médicos. Faltou muito para ficar com o pai. Quando este morreu, faltou muito de ficar com o filho. Era saudade religada pela bola. Religião do Pai como se costuma dizer. Sempre rindo estava Claudemir, seu irmãozinho. Filho do segundo casamento tinha pai, mãe e irmão mais velho para protegê-lo de quem quisesse lhe bater. Assim folgava com os outros porque sabia que estava protegido pela fraternidade, folgava com a vida porque sabia comer os restos mal digeridos da sua hereditariedade. Seu pai Adroaldo, entre uma latinha de cerveja e outra que tirava do isopor, passava óleo de cenoura nas costas da sua mãe. Era uma mistura feita por ele mesmo a base de cenoura ralada, óleo de girassol, linhaça e bronzeador. Celestina debruçava-se sobre a toalha estendida cuidadosamente na areia, retirava com delicadeza o nó do sumário biquíni nas costas e esperava pelo óleo revigorante. Seus seios fartos adornavam tanto a areia quanto os olhares dos homens que passavam por ali a testemunhar aquele momento mágico. As curvas daquela bunda a desfilar aquela asa delta crepuscular era o regozijo para os que tinham na visão do espetáculo corporal o único ganho de satisfação em seus fins de semana. O apelido daquelas curvas sem fim era ‘Crepúsculo de Cubatão’. Mais não preciso dizer. Os apelidos às vezes encaixam mais do que biquíni em suas terminações adiposas. Adroaldo bem sabia que os homens olhavam para aquelas curvas perfeitas da sua Celestina. Com suas mãos ásperas de pedreiro, mas com o coração sereno de amor, Adroaldo ia meticulosamente passando óleo por cada centímetro daquele corpo espetacular sem parecer se interessar com o que acontecia ao seu redor. Ela sabia de seu apelido. Assim, em pleno meio-dia alguém suspirava alto: que crepúsculo meu Deus, que crepúsculo. Deitada, com soslaio no olhar, ria mordiscando os lábios, depois deixava-se soltar todinha, espreguiçando como se estivesse em lençóis de areia à espera de seu Netuno. Virava de bruços e o mar encapelava como se estivesse à espreita de um vendaval.
Dia desses me deparei com um hiato. Não era um deserto de areia, era um deserto de pessoas. Não havia o menor sinal de chuva e o céu sem nuvens tocava o mar sem deixar vestígios dos limites entre um e outro. Esfreguei os olhos pensando ainda estar dormindo, mas a areia era visível e estéril. Transbordei as palavras para fora da janela na esperança de poder içar outras pessoas. Elas retornaram esvaziadas. Umas proferiam impropérios, outras silêncio ensurdecedor. Então, pela primeira vez, após longos anos, saí da minha janela e desci em direção à areia. De repente, sozinho na areia, senti meu corpo subindo. Consegui ver de relance. Era um outro escritor em sua janela. Mas não sei o destino que ele me reservou.

3 comentários:

Anônimo disse...

Van Gogh não escreveria janela com melhores tintas. Janela para você revelou-se um símbolo, como espelho, vela acesa e afins.
Na janela, fora do cenário, no alto, catando conchinhas na areia e colocando-as num pote de vidro,quem sabe o da maionese que acabou e não serve para mais nada além de poluir o planeta, para brincar depois.A imaginação é uma prazerosa brincadeira. No Onibus também é possível se divertir assim. O velhinho sentado ao lado, pobrinho de dar dó, onde mora? Como é sua cama? Tem armário ou guarda as roupas na mala que o persegue desde a Paraíba? Gostei da idéia. PS-(pq esse comentário parece carta:)Não consegui entrar pelo Google TERESINHA OLIVEIRA

Ana disse...

Oi

Anônimo disse...

Que lindo!!!
Bjs
Mabel