quinta-feira, 9 de junho de 2011

Infinitas conversas


"As vezes tenho a impressão de que meus livros conversam durante a noite. Ontem, vi de relance, "A minha alma é irmã de Deus", de Raimundo Carrero, puxar conversa com "Azul-Corvo", de A. Lisboa."  Eugênia Ribas Vieira

Nem sempre foi assim. O estranho fato começou há mais de dois anos. De lá para cá minha vida mudou muito. Eu era um pacato cidadão. Bancário, tenho por hábito profissional, arrumar obsessivamente as notas e papéis do banco em ordem de importância financeira, cronológica, pelas cores do papel, tamanho (do maior para o menor) e por assunto. Em casa não sou diferente. Tudo meu é obsessivamente limpo, ordeiro e organizado. Moro sozinho porque sempre me habituei a não ter pessoas que desarrumassem minha vida. Aliás, só, não. Tenho meus livros. Muitos livros. Lia compulsivamente. Lia muito, mas hoje, não mais. Hoje ando exausto querendo desvendar o mistério que passou a me assaltar a alma. Meu espírito que era livre para pensar anda intranquilo, obcecado com uma ideia fixa, única e desassossegado desde aquela estranha noite de 12 de abril de 2009. Desde então não durmo direito e sou sobressaltado por estranhos pensamentos e alucinações. Porém sei que vocês vão me dar razão.
Moro numa casa confortável de dois andares. Na parte de cima existem dois quartos e a minha suite com uma pequena varanda. Na parte inferior é o que chamo de parte funcional da casa. Ali tem o meu escritório com uma enorme biblioteca cuidadosamente catalogada (fiz um curso rápido de biblioteconomia) com uma enorme mesa onde escrevo, um sofá e uma confortável bergére para leitura com um abajur ao lado. Ainda na parte de baixo há a sala de jantar, um pequeno living, a cozinha e um lavabo. A porta da cozinha que dá para um jardim de inverno vive destrancada. 
Pois foi naquela noite do dia 12 de abril que algo de fantástico e assombroso aconteceu.Era uma terça-feira. Sei com precisão desta data porque tenho motivos especiais para memorizá-la. Foi a noite em que Nina Simone veio dar um concerto no Rio de Janeiro. Foi sua última apresentação aqui no Brasil. Não pude ir ao show e, sem sono, desci para pegar um livro na biblioteca, coisa que faço sempre. Mas quando acabei de descer o último lance da escada ouvi umas vozes. Pensei ser da rua, mas esta além de ficar a uns 100 metros separada pelo jardim, estava deserta. Para confirmar voltei a espiar pela janela e só um vento frio brincava com umas folhas secas de amendoeira caídas no chão. Fiz silêncio e novamente ouvi as vozes. Agora tinha certeza. Vinham da biblioteca. Corri até a cozinha, peguei um facão e pé ante pé me dirigi para encontrar o ladrão. Parei por detrás da porta de madeira e escutei uns risos. Achei estranho o fato dos ladrões rirem. Do que estavam rindo se estavam ali para assaltar? De coragem em punho dei o passo decisivo para o flagrante. E qual não foi a minha surpresa ao encontrar o abajur aceso bem diante da estante dos livros e alguns deles abertos, conversando entre si. Quando pressentiram a minha presença rapidamente fecharam os olhos enquanto um outro apagava o abajur. Fiquei estarrecido com aquilo. Eu ouvira e presenciara aquela cena ou estava sonhando? Acendi a luz da biblioteca e, a primeira vista tudo me parecia em ordem. Foi apenas quando eu cheguei mais perto da estante onde coloco os romances, as ficções, que notei que dois deles estavam fora de lugar. Tentei lembrar se eu os havia colocado daquele jeito. Mas, foi em vão. Por mais que eu me esforçasse, sabia que não os havia tirado de lugar. Recoloquei-os na mesma posição inicial. Passei os olhos em revista, desliguei a luz pensando tratar-se de uma má impressão ou sonho-acordado e voltei para o meu quarto. Mas, assim que botei o pé no último degrau as vozes voltaram. Desci correndo as escadas e acendi a luz. Alguns livros que estavam ainda com as páginas abertas conversando com outros não tiveram tempo de retornarem aos seus lugares. Outros caíram desajeitadamente no chão. Mas, imediatamente após este primeiro flagrante...silêncio. Silêncio ensurdecedor. Nenhuma voz. Nenhum zumbido de mosca. 
Desde então não durmo mais. Todas as noites os livros conversam entre si, mas ao perceberem a minha presença eles emudecem como num sinistro complô contra a minha presença. E tudo volta a acontecer sem me dar tréguas. Cheguei a colocar um colchão dentro da biblioteca, mas nestas noites só havia silêncio ao meu redor. Páginas de silêncio. Letras emudecidas, apagadas pela minha presença.
Voltei ao meu quarto, mas desde então, sou outro. Aliás, há um outro em mim que não dorme e pensa que é um livro. Acho que estou virando um livro. Não sei mais. Tenho que me escrever. Tenho que me reescrever. Não consigo parar mais. Tenho que parar. Não vou parar nunca.

5 comentários:

Anônimo disse...

Anônimo disse... Ai ai aiiiiiiiiiiiiiii... Descreveste brilhantemente algo que me acontece, parecido com esta história! Algo assim: "Todas as noites os livros conversam entre si, mas ao perceberem a minha presença eles emudecem como num sinistro complô contra a minha presença".

rsrsrsr Adorei o conto!

bjos
Anne

Ana Clara Martins disse...

Ah se meus livros falassem..quão bela companhia seriam mais ainda...adorei!

Beijos
Ana Clara

VW Nonno disse...

Carlos, essa voz, inconfundivelmente sua, faz a diferença. bjos Vivian

Adilson Shiva - Rio de Janeiro - Brazil disse...

belissimo conto .... tudo muito lindo por aqui ...parabéns ... abçs

Anônimo disse...

As palavras falam por si só, e à revelia e apesar de nós mesmos...