sexta-feira, 20 de agosto de 2010

D. Carola e a Flip - Uma pequena homenagem

D. Carola. Este é o seu nome. Encontrei-a perto da minha pousada em Paraty. Tive tempo de conversar com ela. Ela, ela tinha "todo o tempo do mundo" e o mundo já não lhe importava tanto. Só estranhava "tantos carros, tantas pessoas assim como você". Não quis perguntar o que era aquele "assim como você", não quis ser invasivo e já bastava a foto (concedida com sua autorização) para aquela invasão bárbara. A literatura invadira a sua cidade e ela foi tornando-se invisível. As pessoas passavam rápido por D. Carola e ela naquele passinho singelo, sem pressa para a vida, como se a vida já tivesse lhe dado o suficiente. Eu não lhe daria mais nada a não ser, talvez, o meu sorriso e uns "dois dedos de prosa". Engraçado, todos ali falando de suas prosas, de seus versos e ninguém, absolutamente ninguém afim de prosa com D. Carola. Todos tão letrados, todos tão internacionalmente vertidos em Proust, Dostoiévski, ou dos vivos tão distantes Mario Bellatin, Gay Talese, Simon Schama que estava tão (todos) preocupado (preocupados) com O futuro da América e seu Barack Obama. Mas quem se interessava pelo futuro das histórias que D. Carola tinha para contar? Ela em seu passo lento, barroco, sorria cumprimentando a todos agarrada ainda em seu passado de reverências simples e cumprimentos formais.
Tive vontade de lhe dizer: é a senhora D. Carola que é nosso passado vivo no presente e o meu presente para o dia de hoje. Tive vontade de lhe dizer muitas outras coisas, mas ela apenas me fitava com seus olhos que me enganavam tristes, mas apenas estavam esgotados em seu ensimesmamento. Tive vontade de lhe dizer dos muitos livros que nos circundavam naqueles dias, da festa da literatura neste Brasil tão pobre de leitores, mas descobri a tempo que ela era o meu Brasil iletrado, que ela, em sua grandeza de sua roupinha simples era a beleza que faltava naquelas páginas de todas aquelas pilhas de livros.
Deixei-a, mas ficou em mim a sua sombra que subia nos meus degraus inacabados. Um vazio. Tive vergonha de minha pequenez, eu que me achava muito porque ia entrevistar um escritor francês, eu que dali a alguns minutos com certeza estaria autografando meu livro.
Ela seguiu com seus passinhos miúdos não sei para onde. Eu segui meu rumo agora com a certeza de que meus passos eram muito menores do que os dela. Não consegui olhar para trás. Certamente viraria uma estátua de sal, ou, quem sabe, ficaria cego tal como Orfeu. Eu havia experimentado o gosto do pecado. O pecado de ver sua invisibilidade. Ela havia aberto em mim um ruído impossível de apagar. O impacto do encontro com o rudimentar, com a simplicidade, me fazia enxergar minhas cegueiras atávicas sobre o amor e sobre a vida. Agora eu pecava com uma força ainda maior do que todas as potestades. Eu era cúmplice das injustiças com as coisas simples e com as pessoas que a borracha da história apagava sem piedade. Agora eu sabia menos de mim, mas estava aberto para o mais. Mas Artaud não estava ali para me ajudar. Pobre Antonin, talvez ele também não soubesse e, por isso, tenha enlouquecido. Naquele instante, teria sido melhor enlouquecer? Não, não e não. Mil vezes não. Antes o encontro com a dor da verdade do que a fuga na loucura.
Assim, pude apenas constatar que D. Carola era a história viva que não coube em nenhum daqueles grandiosos livros, e eu, apenas mais um personagem em sua vida que ainda não havia sido sequer narrada.

Este texto eu escrevi em 06 de julho de 2009, assim que retornei da Flip. Hoje, dia 20 de agosto de 2010, ela faleceu. Esta é minha pequena homenagem a uma grande mulher. Que sua história se (re)escreva para o infinito.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Infância nua
















Livia dormia o sonho de ser acolhida. Sua voz era seu pensamento. Desde pequena, abandonada pela mãe e órfã de seu pai, Livia recolhia-se como um grafite nas paredes frias da cidade a fim de que algum transeunte a olhasse e a recolhesse. Em seus sonhos de menina ela vestia uma roupa que não tinha: calça de flanela verde com flores cor de rosa e um agasalho lilás que lhe cobria a cabeça. Enroscava-se num acolhe-dor sofá vermelho e acalentava sonhos de irmãos fugidios que sempre brincavam de ciranda com ela. Mas, ao acordar, ouvia buzinas ferozes, gritos incompreensíveis para sua pequena idade e um ir e vir de pessoas que não significavam nada para ela. Eram eles anônimos ou era ela que havia se tornado invisível aos seres, ditos humanos? Os pés descalços estavam cansados de não ter para onde ir. Ela, na verdade, está nua: de afetos, carinhos e de um colo que a alimente.
Ah, dorme menina. Dorme pobrezinha que em teus sonhos alimenta mais a alma do que quando estás a olhar o mundo que não te vê. Dorme, Livia. Dorme pequenina. Dorme como um feto, recolhida sobre si mesma, pois o mundo parece não querer te dar o acolhimento que precisas para além desta parede. Dorme, pois sempre existirá a esperança que sua mãe passe pela rua e te reconheça em teus sonhos.

Foto de Renata Tucci sobre painel de Gustavo e Otávio Pandolfo (OSGÊMEOS) na parede do MAM-SP.

sábado, 7 de agosto de 2010

A costura do invisível


Desde muito cedo, ao olhar sua tia avó costurar na velha máquina Singer, Theo tinha um único pensamento: costurar o mundo. Ele mesmo achava engraçada esta sua ideia, mas imaginava que se haveria de ter uma linha forte o bastante para costurar o buraco de suas calças, também haveria de ter outras para costurar o Grand Canyon ou a bocarra de uma baleia.
Quando foi crescendo, ao contrário do que muitos pensavam sobre esta sua estranha mania, ele não arrefeceu nem um côvado sobre a possibilidade de realizar seu antigo sonho. Uns achavam que ele estava enlouquecendo, outros que era uma grande tolice ou, coisas de adolescente, falavam ainda outros.
Mas, a verdade foi que um dia Theo acordou e disse a seus pais que iria embora porque sua casa e mesmo aquela cidade haviam ficado pequenos demais para seu sonho. E, embora gostasse muito de sua família, percebeu que se ficasse ali não conseguiria costurar o mundo.
Comprou uma mochila e saiu caminhando pelo mundo. Caminhou, caminhou, caminhou, caminhou muito e lá no ao longe da vida, encontrou um velho sentado na beira de um lago. E perguntou o que o velho fazia ali sentado tão só na beira de um velho lago.
Então, o velho que era muito velho disse que quando jovem havia saído de casa para uma missão: costurar o mundo.
Theo ficou muito espantado de ter encontrado pela primeira vez uma pessoa já tão idosa com o mesmo ideal que ele. Foi então que se deu o seguinte diálogo:
- E o senhor conseguiu costurar o mundo?
- Ah, meu filho. Tentei, tentei, mas não consegui. Mas, já na velhice conheci um bruxo que me disse que só as palavras poderiam costurar o mundo.
- Mas, Theo disse, como costurar o mundo com palavras?
- As coisas mais essenciais do mundo são invisíveis aos olhos, assim como as palavras.
- E o senhor conseguiu?
- Ah, não. Quanto mais invento palavras mais elas fazem enormes rombos em meu mundo. Quando acho que estou perto de tecer a última ponta para juntar países, raças, crenças ou mesmo religiões, surgem novos hiatos ainda mais espaçosos do que havia antes.
- Mas, perguntou ainda o jovem Theo, o que o senhor faz sentado aqui na beira deste lago?
- Este é o meu maior desafio. É o grande enigma que venho perseguindo há anos. Já tive muitos sucessos. Vivi muitas poesias, romances, interrompi silêncios e quebrei os ossos da métrica de algumas palavras. Mas, uma coisa ainda me apavora e me inquieta. Algo que paralisa o meu mundo e que, para este fato, continuo analfabeto.
- Qual? Por favor, me diga! Theo perguntou aflito como que querendo também as respostas para seu próprio caminhar.
- Costurar o meu nome e prendê-lo de uma vez por todas ao meu corpo.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Enrique Vila-Matas - A viagem vertical

Você já teve a "necessidade urgente de ser outro"? Pois é isso que Federico Mayol, o protagonista do romance A Viagem Vertical precisa fazer aos setenta e sete anos, da noite para o dia. Pior do que isso: um dia após completar as 'bodas de ouro', sua mulher o expulsa de casa. "Você só conhece de verdade uma mulher quando a tem contra si". Atônito e sem saber aonde ir, procura o filho mais velho que herdara seus negócios. Nova decepção. O filho que havia multiplicado os bens da família, confessa que sempre detestou aquela 'maldita herança'. O outro filho, o pintor, Mayol o considerava um louco que ficava visionando um Porto Metafísico que haveria sobrado da Atlântida. Diante destas duas duras realidades, Federico irá declarar que "trata-se de um claro atentado à minha dignidade de pai." E, como tudo irá acontecer nesta viagem vertical, ele se dirige para o sul: geograficamente (pois foi da Espanha para Portugal) e para dentro de si mesmo. Fato que o leva a se perguntar pela primeira vez na vida: quem sou eu? Estava afundando. Jamais poderia supor que a sua vida pacata, inculta - nunca lera um só livro - terminaria solitária como uma ilha. De fato ele vai tentar sumir da vida indo se radicar na Ilha da Madeira. Só que quando tudo parecia perdido, um fato inusitado acontece: ele se depara num bar com um grupo de jovens intelectuais. Logo ele que nunca havia lido um único livro, mas que tinha sido um excelente jogador de pôquer. Seu blefe logo é descoberto, porém o que poderia ser a derrocada final, irá surgir como uma possibilidade de reconstrução, de recriação de si mesmo. E da "excepcional capacidade para afundar", este fascinante personagem irá promover em cada um que o acompanhar nesta Viagem Vertical, um lindo mergulho na arte de viver.
"A descida seduz / como seduziu a subida. / Nunca a derrota é só derrota, pois / o mundo que ela abre é sempre uma parada / antes / insuspeitada". (W. Carlos Williams)

Ps: Se você, prezado(a) leitor(a), gosta de ler ouvindo uma boa música, ouça o cd de Rufus Wainwright, Release the Stars e faça sua própria viagem vertical.