domingo, 28 de fevereiro de 2010

Metrônomo


Inspirado no filme "Fatal" de Isabel Coixet (Ben kingsley e Penélope Cruz) que por sua vez foi adaptado do ótimo romance "O animal agonizante" de Philip Roth

A cor das horas amanhecia em Clarice. A lua desmanchava-se como uma turmalina negra sem saudades e o dia entoava-se sem nenhuma clave de sol que o despertasse. O silêncio daquele anoitecer recitava esperanças em seu coração. Era a noite de seu aniversário e queria comemorar como sempre fazia desde que tinha saído de casa aos 26 anos. "Quatro anos passam depressa", pensou.
Clarice amanhecia em sua vida de fotógrafa. Clicava em preto & branco os instantâneos dos transeuntes e fotografava casamentos para sobreviver. Dizia que há cem anos a fotografia havia desobrigado os pintores a retratarem a eternidade encomendada pela nobreza real. Fazia da sua arte o testemunho da fragilidade do tempo.
Em breve estaria com Guimarães, um artista plástico com quem ainda tinha esperança de viver sob a mesma lente, sob o mesmo olhar, sob as mesmas tintas. Antes de sair, pegou sua inseparável Konica Minolta.
Atravessou a praça defronte de sua casa e pegou um táxi para o Ahle Schiere, o Velho Celeiro onde comemoraria seu aniversário. Um Pub em Pendotiba, lugar entre muitas árvores de um casal de alemães orientais que imigraram para o Brasil quando ainda existia o muro de Berlim.
Pediu um Bellini, seu drink preferido, e esperou pelos amigos. Todos vieram, menos Guimarães. Clarice guardou sua máquina e este movimento era, para quem a conhecia, um claro sinal de desolamento. Enxergava a vida através das suas lentes. Sem elas a miopia era-lhe progressiva.
A noite encostou vigorosa naquele inverno. Na escuridão do céu sem estrelas, a vida comprimia-lhe o peito. Saiu do Pub e dobrou-se sobre si mesma. Com este gesto lembrou-se de Camille Claudel. E chorou embaçando a vida.
Parecia que ela havia esquecido de dar corda ao metrônomo que cadenciava o tempo de sua existência. Quis gritar, mas curvou-se novamente sobre uma nota surda, abafada pelo desespero. O silêncio da noite era quebrado apenas por alguns vaga-lumes que insistiam em cruzar o ar denso sem por isso clarear-lhe o caminho de volta. Queria voltar a ser o que ela era antes de conhecer Guimarães. Apaixonara-se quando ele propôs pintar seu corpo como no filme, "O livro de cabeceira", que ela tanto amava. Ali, naquele momento, ela havia encontrado alguém que sabia ler para além das suas lentes. Quebrara-lhe todos os vitrais que ela havia construído: metade como defesa contra sua fragilidade, metade para enfeitar suas tardes. E, desde então, ele entrara em sua vida sem refrações como um sol de verão.
Mas naquela noite ela soube que o dia amanheceria sem a cor das horas. Naquela noite ela teve certeza que queimaria os negativos da sua relação. Sabia através da fotografia que tudo que ganha amplidão perde o foco. Sorriu encabulada para a chuva fininha que começava a cair. Embora ainda chovesse por dentro. Embora estivesse desamarrada como um navio sem cais. Embora soubesse tão pouco sobre ele, começava a querer saber mais sobre si mesma. Estava decidida a dobrar aquela noite como ela dobrava os guardanapos para uma festa.
Desdobrou-se da posição fetal e pediu outro Bellini.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Desassossego



Dizem que o nosso coração é do tamanho do nosso punho fechado: se o abrisse tanta coisa fugia. António Lobo Antunes

Inspirado em Marcel Proust

Laura acordou em desassossego. Segundo Ciça, sua melhor amiga, Laura lhe telefonou antes das oito da manhã. Em se tratando de quem era significava uma madrugada insone. Laura aos prantos, ou o que mal restava de seus olhos, disse que estaria em sua casa em menos de trinta minutos. Deveria mesmo ter passado a noite em claro, pois entre despertar e tomar café era um processo arrastado que só Ciça compreendia ou tinha paciência para esperá-la. Mas desta vez Laura foi incisiva e direta. "Me espere. Em meia hora chego aí". Desligou sem esperar a confirmação. A alegria dos primeiros tempos de sua relação havia ressecado sem esperanças como um rio nordestino.
A relação de Laura vinha se arrastando há meses. Há meses ela desconfiava de traição. Há meses ela espreitava celulares, msns, orkuts, páginas da internet que lhe dessem uma pista sobre a outra mulher. E cada sinal, cada signo, cada número indecifrável era um código de confiança quebrado e, portanto, um indício de que não era mais amada. A frustração de se sentir rejeitada era percebida nos atrasos e esquecimentos em que ficava sozinha em sua angústia. Sentia o coração cada vez menos pertencer-lhe. Um sentimento de atopia como se não coubesse em lugar nenhum. Nestes últimos tempos durante estas noites destemperadas, ouvia Billie Holiday sozinha e bebia cerveja entre um cigarro e outro. Queria não se sentir desamparada, mas quanto mais queria se agarrar em seu porto seguro, mais ela se sentia no meio de uma tempestade em alto mar: à deriva em seu próprio coração.
Ciça esperou meia, uma hora e nada da amiga chegar. Ligou mas seu celular não atendeu. Ligou para sua casa e Bia atendeu.
-"Cadê a Laura ?"
-"Não sei, cheguei em casa agora e ela já não estava. É que passei a noite..."
-"Não precisa me explicar nada. Não estou preocupada com o que você fez ou deixou de fazer. Estou só preocupada com minha amiga."
-"Cheguei agora e estou me lixando para onde ela esteja. Vá lá procurar sua queridinha de merda." E desligou na cara de Ciça.
Ciça ainda berrou sozinha até perceber com quem Laura realmente vivia todo aquele tempo. Insistiu no celular durante mais de duas horas até que a voz de um homem atendeu.
-"Este é o telefone da Laura?", disse ela já com a voz trêmula.
-"Você é amiga dela?"
-"Sou sim, por favor quem está falando? Quem está com o celular dela? Você o roubou?"
E um sorriso sarcástico ecoou do outro lado antes da resposta curta e seca.
-"Sou o delegado Souza, minha senhora. E quem é você?"
-"Sou, sou amiga dela. Ela está presa? O que foi que ela fez?"
-"Pois a senhora trate de vir aqui na delegacia agora mesmo." E depois de lhe dar o endereço desligou sem lhe dar mais explicações.
Ciça encontrou o corpo de sua amiga enrolado num lençol manchado de sangue. Ela havia se jogado do alto do prédio de seu psiquiatra. Fora até ele e ao encontrar a porta fechada subiu todos os andares para dar fim ao seu desassossego.
O ciúme a havia matado.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Aceno

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Há surpresa na frase
há surpresa no vazio
no oco da palavra
que reverbera
como o grito de uma noite.

Há surpresa
grito
e de lá
ouve-se um aceno
único / branco
estampido.

Louva-se o trem:
é você depois /
mais ninguém.



sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Animal arisco


Silvia pensou em largar tudo e desaparecer quando Gustavo lhe disse que estava morrendo. Era verdade. Ele não blefava, ao menos em relação à sua vida. Os médicos haviam detectado um câncer no fígado. Muito grave; terminal. Mas Silvia não quis saber. Não queria presenciar a morte de seu companheiro de longa jornada.
-"Que chamem isto de covardia", disse ela. "Mas aqui não fico nem mais um minuto." Silvia não suportava a morte ou qualquer tema relacionado a ela desde que havia presenciado seu irmão morrer afogado bem diante de seus olhos. Tinha doze anos e um futuro por viver. Desde então, tornara-se amarga. Achava que a vida tinha sido interrompida. Queria amar, chegou mesmo a se envolver com alguns rapazes, mas os desprezava ou era extremamente dura com eles. Se sorriam, ela não achava graça. Queria uma seriedade ou uma postura diante da vida, mas na verdade era ela o animal arisco. Era ela que se caçava. Era ela o grande algoz da própria vida. Por isso não podia suportar o peso de uma sentença maior do que aquela que ela mesma já se impunha. Embora seu sorriso fosse contagiante, sua alma parecia desandar no descompasso de sua voz quase rouca e sensual.
Gustavo tentou rir de sua própria condição, como que para tentar convencê-la a ficar. Que ela lhe fizesse um pouco de companhia num momento tão delicado de sua vida. Ela não achou a menor graça e perguntou porque ele ria de algo tão grave, afinal, ela disse, tinha razões de sobra para não querer rir. Não abriu mão de seu direito de ir. Afinal, ela era livre. Ele não entedia sua liberdade, pois desde que se conheceram ele se atara a ela. Não com nó górdio, mas na delicadeza dos laços. Bem se sabe que apertados sufocam e, demasiado frouxos, desamarram. Mas ele também tinha seu jeito de amar e verdadeiramente a amava, talvez mais do que ela a ele.
Esta dissimetria tinha sido a tônica de sua vida e agora a doença parecia vir lhe cobrar um preço exorbitante.
Silvia estava resoluta. Foi até o quarto de empregada, pegou sua mala e passando pela sala sem olhar para Gustavo, entrou decidida no quarto. Abriu seu guarda-roupas e começou desconstruir sua vida para não ver o que não suportava.
Mais uma vez Gustavo achou dura demais aquela atitude irrascível de um animal arisco para com ele. Não queria compaixão. Pena muito menos. Queria um diálogo possível ou a volta daquele sorriso que desde o primeiro dia em que se encontraram havia descoberto um sol em plena noite. Queria ouvir novamente a voz da mulher que amava. Mas ele sabia o que o esperava.
Quando Silvia chegou na sala encontrou o silêncio da ausência como resposta.
Ele se antecipara ao lance de dados e havia mergulhado no vazio da rua.
Procurou-o por todos os lugares: casa de parentes, amigos, hospitais, necrotério...
Milagrosamente Gustavo ainda vive: ela o guarda com um tipo especial de amor que não sabia que podia caber dentro do seu coração. Ela, agora sem a antiga dureza, ainda espera. Não mais por aquele menino que um dia sumiu diante de seus olhos, mas pelo homem por quem um dia não soube esperar.