
D. Carola. Este é o seu nome. Encontrei-a perto da minha pousada em Paraty. Tive tempo de conversar com ela. Ela, ela tinha "todo o tempo do mundo" e o mundo já não lhe importava tanto. Só estranhava "tantos carros, tantas pessoas assim como você". Não quis perguntar o que era aquele "assim como você", não quis ser invasivo e já bastava a foto (concedida com sua autorização) para aquela invasão bárbara. A literatura invadira a sua cidade e ela foi tornando-se invisível. As pessoas passavam rápido por D. Carola e ela naquele passinho singelo, sem pressa para a vida, como se a vida já tivesse lhe dado o suficiente. Eu não lhe daria mais nada a não ser, talvez, o meu sorriso e uns "dois dedos de prosa". Engraçado, todos ali falando de suas prosas, de seus versos e ninguém, absolutamente ninguém afim de prosa com D. Carola. Todos tão letrados, todos tão internacionalmente vertidos em Proust, Dostoiévski, ou dos vivos tão distantes Mario Bellatin, Gay Talese, Simon Schama que estava tão (todos) preocupado (preocupados) com O futuro da América e seu Barack Obama. Mas quem se interessava pelo futuro das histórias que D. Carola tinha para contar? Ela em seu passo lento, barroco, sorria cumprimentando a todos agarrada ainda em seu passado de reverências simples e cumprimentos formais.
Tive vontade de lhe dizer: é a senhora D. Carola que é nosso passado vivo no presente e o meu presente para o dia de hoje. Tive vontade de lhe dizer muitas outras coisas, mas ela apenas me fitava com seus olhos que me enganavam tristes, mas apenas estavam esgotados em seu ensimesmamento. Tive vontade de lhe dizer dos muitos livros que nos circundavam naqueles dias, da festa da literatura neste Brasil tão pobre de leitores, mas descobri a tempo que ela era o meu Brasil iletrado, que ela, em sua grandeza de sua roupinha simples era a beleza que faltava naquelas páginas de todas aquelas pilhas de livros.
Deixei-a, mas ficou em mim a sua sombra que subia nos meus degraus inacabados. Um vazio. Tive vergonha de minha pequenez, eu que me achava muito porque ia entrevistar um escritor francês, eu que dali a alguns minutos com certeza estaria autografando meu livro.
Ela seguiu com seus passinhos miúdos não sei para onde. Eu segui meu rumo agora com a certeza de que meus passos eram muito menores do que os dela. Não consegui olhar para trás. Certamente viraria uma estátua de sal, ou, quem sabe, ficaria cego tal como Orfeu. Eu havia experimentado o gosto do pecado. O pecado de ver sua invisibilidade. Ela havia aberto em mim um ruído impossível de apagar. O impacto do encontro com o rudimentar, com a simplicidade, me fazia enxergar minhas cegueiras atávicas sobre o amor e sobre a vida. Agora eu pecava com uma força ainda maior do que todas as potestades. Eu era cúmplice das injustiças com as coisas simples e com as pessoas que a borracha da história apagava sem piedade. Agora eu sabia menos de mim, mas estava aberto para o mais. Mas Artaud não estava ali para me ajudar. Pobre Antonin, talvez ele também não soubesse e, por isso, tenha enlouquecido. Naquele instante, teria sido melhor enlouquecer? Não, não e não. Mil vezes não. Antes o encontro com a dor da verdade do que a fuga na loucura.
Assim, pude apenas constatar que D. Carola era a história viva que não coube em nenhum daqueles grandiosos livros, e eu, apenas mais um personagem em sua vida que ainda não havia sido sequer narrada.
Este texto eu escrevi em 06 de julho de 2009, assim que retornei da Flip. Hoje, dia 20 de agosto de 2010, ela faleceu. Esta é minha pequena homenagem a uma grande mulher. Que sua história se (re)escreva para o infinito.