segunda-feira, 5 de julho de 2010

O menino que queria ser mar


Para Maria Camargo que também sabe sobre o mar e seus medos

Gonçalo nasceu sabendo nadar. Foi assim. Aliás, foi muito estranho, mas foi assim mesmo que a coisa se deu naquela casa. Um dia teve uma enchente. Destas em que a água sobe rápido e não se tem tempo nem de pegar as crianças. Soube-se depois que era a mãe de Gonçalo que chorava sem parar e suas lágrimas haviam inundado a tristeza. Iniciou-se no segundo andar onde ficava o quarto do casal. O das crianças - Gonçalo tinha uma irmã dois anos mais velha do que ele - ficava embaixo. O grito de soluços da mãe de Gonçalo ecoou nas fronteiras do abandono. Num domingo de manhã quando ela acordou percebeu que o marido não acordava. Nunca mais deixou de dormir. Ela não queria acreditar. Ela não desejava contar para as crianças que o pai delas jamais acordaria. E chorou. E chorou tanto que a casa foi inundando a saudade que transbordava depressa. Os vizinhos vieram rápido. A rua toda veio ver o fenômeno que teimava em não cessar. As portas trancadas por dentro. A água a subir venezianas e corpos. Bia escorregou no limo criado no corrimão e foi se esconder do medo que dela se apoderava.
Mas Gonçalo ainda era um bebê de seis meses. Da vida, pouco ou nada sabia. Mas ele acabara de ficar órfão de pai. De certa forma ele olhava interrogativo para a janela cerrada. Lá fora os transeuntes, de arregalados olhos, tentavam inutilmente derrubar a porta que insistia em não ser por causa da pressão da água que forçava em sentido contrário uma catarsis sem aviso prévio. Estarrecida, a turba constatava incrédula que Gonçalo, ainda sem linguagem para falar a saudade de um pai que ainda não sabia ter, nadava por entre as correntes da tristeza de sua mãe. Batia suas perninhas por entre interrogações e cadeiras vazias, desatreladas da família. Boiava ideias sem sentimento. Boiava uma música interrompida na segunda faixa. Era Nina Simone que seu pai adorava. Mas Gonçalo também não sabia o que era música a não ser a voz da sua mãe que agora a água salgada de suas próprias lágrimas abafava. A vida assim interrompida sem nenhum propósito aparente, fazia com que o menino crescesse numa velocidade vertiginosa. Em pouco mais de meia hora, já se haviam passados seis anos e Gonçalo, de teimoso, nadava agora sabendo de sua tristeza. As perguntas iam e vinham como ondas de angústia. Os espectadores, agora cada vez em maior número, pagavam ingresso para assistirem numa arquibancada improvisada, a morte embalsamada em lágrimas de mãe, do pai de Gonçalo.
Como não conseguiam abrir a porta, resolveram trazer o mar para perto daquela casa. Primeiro construíram um grande canal por onde o mar poderia, sem incomodar os moradores, aproximar-se daquela família. Foi sem ruídos. Foi da noite para o dia. Foi o dia de esperanças no meio da noite da desolação. Foi um grande encontro quando os primeiros peixes começaram a rondar as janelas do segundo andar. Todos choravam a desventura daquela família. Algas tristes, mariscos encrustados na parede lateral, cachalotes que se contorciam em gritos de dor. O mar avançava sem o pai para lhes proteger. Era um mar sem fúria. Apenas era sem ser. Apenas era água salgada que, pouco a pouco, misturava-se com a água interior igualmente salgada. Lágrimas e mar eram agora um só.
Foi quando Gonçalo percebeu que queria ser mar. Agora ele sabia o que era a tristeza. Agora ele já sabia o que era não ter pai. Estava cansado de nadar. Estava realmente cansado de olharem para ele sempre nadando sem nunca ter pisado os pés no chão.
Então, pela primeira vez, enchendo-se de coragem, abriu a porta e se afogou na vida.

Ps: Para ler ouvindo Nina Simone: "The Laziest Girl In Town" (Cole Porter)

17 comentários:

Jeff Negromonte disse...

Eduardo, ótimo texto. Muito bem elaborado e cheio de poesia. Um verdadeiro mar de sensibilidade.

Jeff Negromonte

Antônio disse...

Genial. Não é preciso nem mais uma palavra pra descrever este belo manuscrito. *-*

Parabéns ^^

Leonardo Villa-Forte disse...

Muito bom, Carlos, gostei muito mesmo. Do enredo, das palavras, dos cortes, da métrica. Continue nos presenteando com textos com um olhar angulado como esse. Parabéns.

Unknown disse...

CEL,
Mais um conto incrível de bonito!
Cada passada por aqui, uma surpresa sublime.
Seus contos são mágicos e esses posts com referências e links são demais...
Domingo chuvoso em Búzios, I´m the The Laziest Girl in Town...rs
bjs
Mabel

:: mar.cele linha.res disse...

fiquei encantadíssima com seu blog e com essa história de mar... lembrou-me a parábola invertida de mario quintana em "velha história": http://voilamonessence.blogspot.com/2010/03/agua.html

tenho um modesto blog que posto meus textos e de outrem... fique à vontade para fazer visitas...

abs,
marcele.

Unknown disse...

Boa noite Carlos,
vim agradecer a visita e naturalmente conhecer o seu blog.
Acredite que este fabuloso texto me deixou um nó na garganta. Muito bem escrito, com fantasia bem sei, mas sério o suficiente para conseguir transmitir na integra a dor da perda.

Adorei!

Beijinhos,
Ana Martins
Ave Sem Asas

Leitores do Mira disse...

Adorei esse texto, Eduardo. Me lembrei de um conto do Gabriel Garcia Marques chamado, A LUZ É COMO A ÁGUA. Que imagem linda a sua, de se entregar pelo cansaço à maré, à vida.
Um grande abraço,
Adriana.

:: mar.cele linha.res disse...

psicanálise e arte... parece mto interessante!
qq coisa que eu possa ajudar será um prazer =) segue meu email...

abs!

marcelelinhares@gmail.com

Unknown disse...

brilhante!!!

Unknown disse...

Nada como me inundar das suas palavras e me afogar neste mar de poesia.

Incrível este conto, amei!
Muitos beijos

Joana Dias da Cruz disse...

Genial!
Genial o texto, e genial a sugestão da leitura com a música. Amo ler ouvindo uma belíssima canção... simplesmente encantador. No seu próximo livro, favor indicar as músicas que poderão ser ouvidas enquanto viajamos em suas palavras.
Bjss

Anne M. Moor disse...

Carlos Eduardo

Muito nadar fazemos antes de nos afogar na vida, nadando mais nas entrelinhas da vida até conseguir subir para tomar ar e colocar os pés firmemente no viver...

Belo texto!

Bjos
Anne

Ana Rebello disse...

Carlos Eduardo, obrigada pela viagem estimulante que o seu texto me proporcionou. Que fantasia mais real. bjs, Ana

Unknown disse...

Oi CEL,
É impressionante ver como seu talento =ara escrever expandiu!
De Fragmenta (que já era muito legal) para coisas como "O Menino que Queria ser Mar" foi uma evolução incrível...
Particularmente está me inspirando a me raproximar da Arquitetura e fazer uma dobradinha aqui de "pães e casas"...às vezes o mundo gira e encontramos o nosso essencial ali na frente....
Seus movimentos em algum sentido estão inspirando os meus no encontro do verdadeiro ofício...
Beijos,
Mabel.

Anônimo disse...

Oi Carlos,

Obrigada pela visita. Confesso que me surpreendi com o seu comentário, pois, bem me lembro, quase não o via por lá... Em todo o caso, gostei muito.

Bom, eu apareci para lhe retribuir a sua gentil atenção, uma vez que me encontro afastada do blog e por tempo indeterminado.

À propósito, aprecio os seus textos, como este, o de agora.

Beijos e bom final de semana,

Maria Regina de Souza disse...

Gostei muito do conto! Uma enchente de sensibilidade e emoção...Tal qual a perda de um pai ou o encontro com a vida!
Obrigada pelo elogio à minha poesia, fiquei lisongeada, pois, muito admiro seus escritos.
Um abraço

Unknown disse...

Adorei o conto professor. É uma leitura que me faz viajar em silêncio.

Abraços.