sexta-feira, 11 de junho de 2010

A queda da palavra: a perda da inocência


A queda da palavra: a perda da inocência

“A inocência é como uma mariposa que não prevê sua morte na luz que a ilumina” – Dito da minha bisavó

“Nem com seu lápis nem com seu bastão nem

Nem luzes luzes quero dizer

Nunca coisa alguma

Mais nada

Nunca mais”. Samuel Beckett

A horta da minha bisavó era sem fim. Poderia andar nos meus passos miúdos por horas, talvez dias a fio que não veria nem o contorno rente ao céu da última plantação. Descobri a existência do céu por acaso. Engraçado que o mesmo tempo da descoberta, foi o tempo da tempestade. Minha bisavó me ensinou a olhar para o chão para prestar atenção na festa das joaninhas por debaixo das folhas de inhame, a dança tresloucada da minhoca que arejava ideias sobre os musgos por entre as pedras comestíveis, para os sulcos na terra-húmus escavados durante a última chuva, para os tubérculos que de tão envergonhados recolhiam-se debaixo da terra - e eu, muitas vezes, era tão tubérculo para minha vida ainda diminuta -, para os rastros das lesmas, para os rastros do homem, para os rastros da vida.

Assim, olhava encantado para aquele mundo-chão, para aquele mundo-fértil. E eu ria com as infinitas possibilidades que a cada dia iam, o tempo e o vento me revelando. Não, nunca havia olhado para o céu. Não daquela maneira. É claro que eu sabia que existiam estrelas. É claro que a luz do sol iniciava o douramento da minha pele e eu sentia que a vida também começava por ali: fotossíntese era o que havia em mim. Por isso aquela horta era tão extensa. Ela não cabia na minha imaginação. Eu transbordava.

O que aconteceu de extraordinário foi numa manhã que parecia mais uma manhã como outra qualquer. Mas não foi isto que aconteceu. Era um dia ensolarado. Céu azul sem uma mancha de nuvem. Eu e minha bisavó estávamos tropeçando em estrofes que havíamos plantado recentemente e já davam os primeiros sinais de rimas, quando dei um grito: "vó, uma estrela cadente!" E fiquei como um louco olhando para o céu e rindo. Deixei-me cair por terra, barriga para cima, olhos estáticos e os braços abertos em crucifixo. O sol furava meus poros e eu ardia em febre. Não queria mais sair dali.

-"Você viu o que não devia", falou seca minha bisavó. Era a primeira vez que ela falava assim comigo. Quase ralhando. Eu vira prematuramente? Criança não podia ver o que em êxtase eu via? Tudo girava e as palavras não cabiam na minha língua. Descobri, naquele instante, que a linguagem é coisa encantada, mas que é um erro santificá-la. Talvez por isso, um pouco por intuição, outro tanto por medo, eu tenha sentido necessidade de estar rente ao chão.

-"Você nunca mais repita isto à luz do dia." Sua voz abrandara, mas o mal estava feito. Eu vira além do que podia ter visto e cometi o pecado de falar. A palavra escorreu em minha boca para nunca mais secar.

Hoje, com a jornada dos dias, invariavelmente ando com a garganta seca. Os olhos lacrimejam na saudade. A palavra escorreu definitivamente para fora do Jardim, mas foram os olhos da minha bisavó que permaneceram lá. Intactos. Eram os olhos na inocência.

6 comentários:

Vanessa Moiseieff disse...

Nossa, maravilhoso... de verdade eu queria gritar para todo mundo ouvir. Foi melhor do que assistir alice no país das maravilhas

Obrigada pela visita....

Grande beijo
voltarei!

Unknown disse...

Palavras inspiradoras...
Limdo texto! (como os outros!)

Unknown disse...

...lindo...rsrs

Anne M. Moor disse...

Carlos Eduardo

Essa tua ligação que fazes, tão fortemente, entre palavras e a natureza me encanta!

Bjos
Anne

Leitores do Mira disse...

Eduardo,
seu texto traduz a dimensão mais bonita de uma EPIFANIA.
Adorei!
Bj pra vc e parabéns pela filhota,
Adriana.

Keila Costa disse...

E tudo não é mesmo palavra, mesmo travestida? Que poesia nesses 'tubérculos envergonhados' e na 'festa das joaninhas'...e em tantos outros lugares desse belo texto! Obrigada