sábado, 12 de junho de 2010

Outras palavras - Valsinha

Outras palavras é um espaço aqui aberto para que outros autores, escritores e eventuais pensadores ou poetas, publiquem suas criações. Esta, de Ana Carolina, é criação de criação: minha filha. Contaminada pelo livro "Essa história está diferente", também resolveu escrever sobre o Chico.


Valsinha

Até as estrelas. Era o que Ele sempre dizia. Agora, com seu corpo cansado, mãos trêmulas, olhos fatigados, marcas dos dias vividos, Ele deixou de vê-la. Voltou-se para si próprio, ficando imerso em seus devaneios. O tempo levou suas palavras, as quais só ganhavam espaço no fechar dos olhos pela madrugada afora. Até pensar Ele evitava. Procurava se ocupar com toda espécie de atividade, assim a vida seguiria logo. Esta prosseguiria esquecendo-se dele, já que até Ele não se reconhecia mais. Não sabia mais o que um dia lhe dera prazer, seus gostos, seus afetos, suas vontades, tudo havia desaparecido. Estava só, apenas o que lhe acompanhava eram as suas funções vitais que insistiam em eternizar-se. Nem suas lembranças lhe pertenciam mais. Evitava resgatar suas memórias, daqueles dias em que tudo tinha uma cor. Cores que se decompunham em tantos sentimentos que transbordaram até deixá-lo vazio, oco. Forças lhe faltavam para preencher seus espaços, as tantas lacunas que nele se enraizaram. Às vezes tentava sentir dor. Talvez assim se sentiria vivo novamente. Ou quem sabe medo, para que lhe despertasse o desejo por um afago. Desejo? Isto ficara para trás, em algum canto escondido de seu âmago. Seguia descolado de si próprio, sem qualquer amargura, rancor ou desilusão. Apenas andava, movido por uma serenidade apática. Restava somente prosseguir, embora o rumo estivesse turvo. Sua vista, que ainda lhe permitia enxergar, não trazia qualquer percepção além daquela física que se apresentava diante dele. Apesar de nítida, a sombra que nele recaiu entorpeceu os seus múltiplos olhares. Eram infindáveis em sua juventude. Observava cada gesto, objeto e som que o circundava. E cada elemento despertava tantas sensações que seus pensamentos permaneciam em contínua profusão. Era intenso em suas emoções, em seus relacionamentos e nos seus escritos. A escrita era onde depositava tudo aquilo que não cabia em si, sua válvula de escape da realidade. Não ousava em se doar, fosse através das palavras ou por atitudes. Seu olhar o entregava, era sincero e facilmente desvendável. No dia em que a paixão o arrebatou, toda a sua doação voltou-se para Ela. Cantos, galanteios, flores, sorrisos e sussurros não faltavam nesta relação. Mas este incessante viver para o outro, que sempre permeou toda sua vida, o tornou ausente de si mesmo. Com isto a distância se impôs e uma barreira intransponível separou aqueles amantes. A partir daí fez-se o abismo. Passou a viver a esmo, submerso em suas reminiscências. Perdeu-se daquilo no que se tornara. Um dia, deitado em sua cama e possuído pela fraqueza que o invadia, resolveu caminhar até a porta de sua casa e abri-la. Talvez aquela seria a última vez que avistaria o que estava além de seus escombros. Ao fazê-lo, uma lembrança o dilacerou. Finalmente algo trouxe de volta um sentimento que deveria estar latente lá dentro dele. Não sabia que poderia sentir de novo, tampouco o que se passava naquele momento. Ao abrir aquela porta viu seu olhar refletido no dela e percebeu que Ela sempre estivera ali, naquela janela vizinha, esperando por qualquer sinal seu. Com as marcas da idade, os cabelos em tom branco reluzente, cuidadosamente penteados, as mãos enrugadas e manchadas pela vida percorrida, Ela nunca se esquecera da promessa recebida. Até que naquele dia, quando os olhares se encontraram, Ela percebeu que valeu a pena. Não foi em vão cada dia que passou procurando as estrelas que traduziriam o alcance daquele amor. Recebeu um único sorriso, a última expressão que Ele conseguira manifestar. Ele se foi preenchido de toda a ternura, pôde ver ao menos mais uma vez as ditas estrelas: aquele olhar que só Ela tinha quando do encontro com o seu.

“Um dia, ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar
Olhou-a de um jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar
E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar
E nem deixou-a só num canto, pra seu grande espanto, convidou-a pra rodar
E então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar
Com seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar
Depois os dois deram-se os braços como há muito tempo não se usava dar
E cheios de ternura e graça, foram para a praça e começaram a se abraçar
E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou
E foi tanta felicidade que toda cidade se iluminou
E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouvia mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu
Em paz” (Chico Buarque).

Ana Carolina Nunes Vianna

11 comentários:

Unknown disse...

Que lindo filha. Você é demais. Sempre tão sensível e surpreendente. Adorei. Te amo! Beijos, MÃE.

Unknown disse...

Eduardo,

pode lamber a cria, moço!!! parabéns a vc e à filhota! estou até emocionada! o tempo o tempo...

Telma Miranda disse...

Ana. Pelo visto foste contaminada pelo Amor, pelo Chico, pelas Palavras, pela "Coisa". Pelo que tenho visto, é um caminho sem volta. Mas não tema: nunca há volta e sempre voltamos. Seja lá de onde para onde. Mas, ao final, creio que são esses "encontros" contagiosos que valem a vida. E o dia. Que sempre amanhece em paz. Grande beijo. Telma.

Unknown disse...

Oi Ana,
gostei do modo como você vai tecendo as palavras, dos pequenos detalhes que vão se formando, se desfazendo, se refazendo em outro lugar, com calma.
Um abraço.
Michelle

Maria Regina de Souza disse...

Lindo! Uma escrita descritiva e cheia de paisagens. Pude ver cada uma!
Um abraço
Maria Regina

Unknown disse...

Puxa, filha de peixe...rs
Muito sensível!
Repleto de imagens e sutilezas sobre emoções e sensações que podem derivar do efeito do tempo...
A mágica da sempre possível regeneração também está lá.
Parabéns!
Mabel

Unknown disse...

Olá Carlos,
Linda esta postagem. Voltarei sempre para apreciar...
Muitas pessoas...muitos dons.
A beleza da escrita e os inúmeros códigos.
Um forte abraço para todos!

Nirma Regina

Anne M. Moor disse...

Ana
Que texto lindo! Um texto que flui por uma história de estrelas, de amores...

"Mas este incessante viver para o outro, que sempre permeou toda sua vida, o tornou ausente de si mesmo."

Este trecho bateu fundo em mim! Parabéns moça, continua escrevendo que nós agradecemos!

Bjos
Anne

Unknown disse...

A todos que comentaram ou passaram por aqui, meu sincero muito obrigada. Estou apenas me aventurando pelo mundo das palavras!

Beijos,

Ana Carolina.

Unknown disse...

Carol,

Parabéns pelo texto, muito lindo mesmo!
Até as estrelinhas.
Te amo
Bjus
Dani

Leitores do Mira disse...

Ana, a delicadeza do seu texto e as imagens que ele provoca são infinitas. Mas, além de Chico, acho que um certo Carlos te inspirou também, não é?
Talvez agora (tomara que isso aconteça) vc não consiga mais parar de escrever.
Adoraria poder sempre te ler.
Parbéns e um grande bj,
Adriana.