quinta-feira, 3 de junho de 2010

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Luísa amanheceu febril. Tinha febre de ler. Queria ler o que encontrasse pela frente. Sua infernal mãe já havia avisado que aquilo estava virando uma doença.
"Minha filha, ler é bom, mas você precisa descansar um pouco esta cabecinha. Daqui a pouco não saberei mais qual é a anatomia do teu rosto. Acho que você vai acabar virando um livro."
Pronto. Palavra de mãe é que nem praga. Basta falar para acontecer. Luísa que apenas tinha um gosto um pouco, digamos, exagerado pela leitura, agora não conseguia mais fechar os olhos diante de uma página com letras. Virou compulsão. Seus olhos ressecavam por ela não conseguir nem piscar. Lia um livro após o outro. Seu maior problema eram como conciliar o banho com a leitura. Gostaria que tivessem inventado um livro impermeável, de plástico de preferência. Palavras impermeáveis ela já sabia da existência. Mas agora ela queria absorver todas as palavras existentes em todos os livros do mundo. Entrava em um livro e saía em outro. Mergulhava num romance e emergia num dicionário russo. Mergulhava em Borges e ressurgia em Maiakóvski. Deitava com Shakespeare e sonhava acordada com Flannery O.
Assim é que dia a dia a força da palavra da sua mãe ia ganhando forma e consistência. O rosto de Luísa começou por aparecer umas letras ainda sem forma, mas pouco a pouco de letras imprecisas, começaram a surgir frases tempestuosas, estrofes que entravam por suas narinas e interrogações que saltavam de seus olhos. Vírgulas iam e vinham de seus ouvidos, pontos de exclamação brilhavam inquietos em suas sobrancelhas, cacos de palavras desusadas escorriam lúdicas, revigoradas do canto de sua boca. Luísa regozijava exultante em seu contínuo desfolhamento facial.
Cada vez que ela mexia a cabeça, uma nova frase vinha completar a anterior. Em certas ocasiões com muita dor, porque era um romance de amor, morte e paixões. Noutras vezes seu rosto assumia proporções bizarras por se tratar de uma novela de terror mexicana. Às vezes parecia alcançar o asco por não ter tido o cuidado de evitar palavras de auto-ajuda que teimavam em querer ficar para sempre em sua testa como aqueles espalhafatosos anúncios em neon no alto dos prédios. Em certas ocasiões estava radiantemente bela por sua face estar repleta de palavras de Virgílio. Mas, certo dia, Luísa surgiu com hieróglifos besuntados e espalhados por todo o rosto.
Então, sua mãe, sempre ela, tomada por um horror incomensurável, levou a feliz Luísa a uma dermatologista.
A médica, munida de um prazer inenarrável, pegou uma pinça e, uma a uma, começou a retirar todas as letras do rosto da menina. Para cada letra ou palavra arrancada, passava um algodão com um hidratante e, aquele monte de palavras, agora destroçadas, arrancadas sem dó, iam sendo jogadas na lata de lixo. Só Luísa parecia ouvir o gemido das frases desfeitas, das histórias por terminar, das memórias sem nenhuma invenção.
Quando Luísa voltou para casa não havia um só livro em sua estante. Antes de levá-la ao delírio do apagamento, sua mãe havia deixado a ordem de queimar tudo.
Assim que Luísa se olhou no espelho do banheiro não reconheceu aquele rosto todo queimado. Estava triste, mas a palavra lágrima já não mais existia. Estava cega. Nas órbitas de seus olhos gravitavam lindas cantigas de amor trovadoresco. Foi preciso extirpá-los.
Sua mãe sorria triunfante na soleira da porta. E, com um sorriso irônico, perguntou-lhe: "Filha, por que você não escreve sobre esta sua experiência?"

8 comentários:

Unknown disse...

Adorei!!!

bjs

Roberta Duarte.

Unknown disse...

Praga de mãe é fogo!
Muito bom,
beijos

Unknown disse...

Imagino que a Luísa deva estar por aí perdida pelo mundo, em busca dela própria, já que sem as letras/palavras até em seu próprio nome ela não mais se reconhece...

Adorei o texto!!!
Bjos

IsaBele disse...

Penso que a leitura, juntamente com as aprendências que nos traz, nunca morre. E luíza pode até ter ficado triste, mas as marcas e formas certamente foram para muito além do rosto, e não há como se apagar da alma.

Excelente o texto!

Michelle Siqueira disse...

Se há uma, a heroína é a mãe... "Minha filha, ler é bom (...)"

Se Luísa fosse livre para viver continuamente o consumo desenfreado dos livros, certamente perderia a chance de assimilar tudo isso e realizar-se na alquimia do aprendizado, que se não para benefício dela mesma, ao menos para o do mundo à sua volta.

Às vezes são as pessoas mais próximas que nos alertam, quase sempre as que mais nos amam, e interferem diretamente, ainda que exercendo alguma pressão grosseira, em nosso ritmo. Sofrer uma interferência é ser obrigado a parar e refletir quão vasta é a oferta de caminhos esperando pela nossa escolha.

Boa mãe. Boa filha será Luísa se aceitar o desafio de colher os frutos pelo amplo terreno outrora semeado.

Parabéns pela escolha do título! A contradição entre a sugestão dele e a contemplação da ideia real abordada é bastante conveniente e feita com muito inteligência.

Um abraço,
Michelle

Anne M. Moor disse...

A compulsão nos leva ao vazio retumbante...

Beijos
Anne

Keila Costa disse...

Adoro esse realismo fantástico, que faz o sentir vívido, materializado sem limites de superfícies, "o rosto livro", a alma livro...encantada...
Abraços

Unknown disse...

Quando soube que estava grávida, a primeira coisa que fiz foi comprar um livro infantil, desses que podem ir pra banheirinha de bebê. Sinto falta deles na versão 'adulta'.
Adorei o texto! Acho que existem poucas paixões que resistem ao Tempo. Essa, com certeza, é eterna. Eternizada nas descobertas e releituras.
abçs