quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

A sombra de Eleonora





A sombra de Eleonora

No centro da sala persistia uma sombra: inquieta, deselegante. O vazio da ausência da palavra denotava a angústia por vir. Um carro passou na rua. Não era um carro. Fora um sonho que estava tendo. A casa é erma e os pássaros lá fora já estavam a dormir. A distância entre a última palavra e a próxima era ensurdecedora. O Concerto de Brandemburgo trazia a atmosfera barroca de Bach para o interior da sombra. Tudo era um novelo em redemoinho. Tudo era o peso atávico com que se tinha construído aquela vida.
Eleonora já havia pressentido esta cena milhares de outras vezes em sua história. Jogou os cabelos para trás em desalinho consigo mesma. Dobrou seu corpo sobre seu ventre e deixou-se lentamente cair no chão. Procurou a mão forte que durante tantos anos lhe fizera companhia. Tateou procurando seus óculos, mas lembrou-se da escuridão que fazia em seu interior. Quis enxergar uma dúvida, mas a verdade fora ao seu encontro como um clarão de uma manhã de verão.
Não havia jeito de tamponar aquela verdade. Estava só e era com isto que contava. Ou melhor, descontava-se. Procurou saber da lágrima de sal que havia petrificado em seu vestido. Lambeu-a como um animal lambe o sangue da cria recém-nascida. Lambeu suas entranhas. Lambeu a si própria e provou do gosto amargo da existência que habitava fora de seu útero. Dera a luz, mas não era mãe de nada. Dera a luz, mas era um vazio que chorava por um colo inexistente. Dera a luz, mas a sombra encobria qualquer possibilidade de ser.
Eleonora arriscou-se. Mergulhou sobre si mesma e deu um passo corajoso em direção ao seu eu mais sombrio. Precisava lamber o ventre seco. Precisava usurpar de si própria a vida que havia deixado escapar. Deu mais um passo. E mais outro. Então, pela primeira vez em todos aqueles anos, ela pode verdadeiramente abrir os olhos e ver o que não poderia mais esquecer.


quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

EXODUS Novo romance (re-escrevendo)


(...)
Mas meu pai não era apenas um restaurador. Era também um arqueólogo aventureiro capaz de percorrer os quatro cantos do Brasil ou do mundo para encontrar uma única peça do quebra-cabeças perdido.  Tinha a certeza de que, com isso, conseguia legitimamente dar vida nova à imagem destroçada.
Ao refazer imagens, dizia que não estava só restaurando uma parte perdida da história da humanidade, mas religando-a aos céus. Ele mesmo dizia que restaurar era proporcionar a justa harmonia que havia sido perdida quando o homem e sua mulher deixaram o Paraíso.
Para mim era um Leonardo da Vinci, obcecado pela perfeição. Mas, se restaurar era como achar  restos humanos que haviam sido deixados para trás quando o homem e a mulher saíram do paraíso como se, assim (re)fazendo, ele fosse ainda capaz de impedir a queda do primeiro homem, então ele queria ser Deus? Ilusão? Fantasia religiosa ou crença nas potestades divinas e na sua severa missão aqui na terra?
Enfim, restaurar era contar a mesma história através de outras vozes, outros cânones ou reencontrar o Jardim das Delícias: delírio que contaminava a todos naquela casa.
Pegadas, rastros, pequenos sinais de uma antiga existência. Arqueologia das formas e das sensações perdidas. Escavações e atavismos numa colônia de puzzles históricos. Traços humanos, registros de uma época onde a delicadeza das formas inaugurava as vias sacras ou os promontórios da fé. Restaurar era ressuscitar o artista através da sua obra. Recriar o Criador no exato instante de seu Fiat lux. Restaurar era resgatar a luz, fazê-la jorrar na escuridão do despedaçamento.
Quantas e tantas vezes nos sentimos assim. Despedaçados, jogados no buraco negro da nossa memória perdida, à espera de uma bóia que nos salve do afogamento sem guelras. Ar, ar, ar. Tudo que sempre buscamos foi um pouco de ar que fizesse re-ligar nossos pedaços desaparecidos nas frestas da nossa rarefeita história.
Mas minha família sofria do pior mal que uma gentalha poderia sofrer. E naufragávamos num dilúvio imoral sem arca para nos salvar.
E, por acaso, muitas vezes não temos a transtornada sensação de que nossa família é feita por milhões de braços e abraços despedaçados que precisam ser restaurados? São milhares de ex-votos, pedaços de corpos onde os pedidos estão perdidos entre letrinhas miúdas, papéis amarelados, amargurados pelo esquecimento de quem espera pelo reconhecimento. Re-conhecer é também outra maneira de restaurar. O problema é que nossa família precisava de constantes restaurações, mas ninguém enxergava isso. Ou todos eram míopes ou se faziam de cegos para não perceberem o mal que lhes rondava.     (...)