Acomodações de restos: algumas questões sobre
Clarice Lispector
Carlos Eduardo Leal
Vou
criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível.
Terei de criar sobre a vida. E sem mentir. C. L. - A Paixão Segundo G.H.
Vou
retomar a frase inaugural deste texto de Clarice para pensar algumas questões
sobre a psicanálise e a literatura, esta acomodação de restos, tal como Lacan
referiu-se a ela em Lituraterra.
Viver não é relatável.
A
regra técnica fundamental de uma análise (é bom que ninguém se esqueça) é a
associação livre. O convite a dizer tudo é, em si mesmo, um paradoxo, porque se
por um lado sabe-se que o “dizer tudo” é impossível, por outro, a aposta de uma
análise é que se possa dizer o impossível de ser dito, ou seja, dizer algo a
partir do real. Fazer passar o real através do simbólico é o que Lacan nos
convida no início do seminário sobre os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise.
O
texto de Clarice desdobra-se em vários planos de intervenção em cada uma de
suas frases. É preciso ler Clarice não com o intuito de respondê-la (já que ela
mesma se dizia uma pergunta), mas no sentido mesmo de interrogá-la.
Vou criar o que me
aconteceu.
Esta
poderia ser a primeira frase de entrada em análise de um sujeito. E é assim que
Clarice abre sua ficção: relatando em seguida que perdeu a terceira perna. Sua
perna-sintoma que lhe dava sustentação. A perda desta terceira perna a introduz
numa desorganização em sua vida, causando-lhe insegurança, pois agora quando
ela parte não mais possui a garantia de poder voltar. Numa análise nunca se
volta ao mesmo ponto, pois o que se repete é da ordem da diferença. A
desestabilização é também seu desassossego.
Lacan,
no Informe sobre Daniel Lagache, afirma que uma desestabilização no imaginário,
produz uma ruptura no simbólico fazendo emergir o real. A perda da terceira perna-sintoma, perna
ilusória, vem desestabilizar as garantias imaginárias. Voltei a ter o que nunca tive: apenas as duas pernas. A dimensão da
perda abre um abismo que é o prenúncio da angústia de castração: falta-a-ser.
No entanto, é exatamente esta desestabilização que faz com que ela enxergue o
que antes o sintoma tal como uma metáfora, encobria:
Mas tenho medo do que é
novo e tenho medo de viver o que não entendo – quero sempre ter a garantia de
pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação.
Muitas
vezes o sujeito procura uma análise não por causa de tal ou qual sintoma, mas
justo o contrário. Procura-se uma análise porque o sintoma (terceira perna?)
que lhe dava sustentação, garantias e sentido para a vida deixou de funcionar a
contento. Digamos que a quota de gozo existente no sintoma ultrapassou em muito
o ganho secundário e o prazer nele embutido. O gozo, que não serve para nada,
serve para fazer o sujeito sofrer. Se só o amor permite ao gozo condescender ao
desejo, talvez neste romance encontremos a saída para o sem sentido de G.H. A
vida se desorganiza, perde-se o sentido e há certa nostalgia, mesmo que o antes
não lhe fosse bom. Mas ao menos o sentido não era desconhecido.
É,
portanto, diante do novo que o sujeito padece e faz surgir a angústia como um
diabo a berrar-lhe aos ouvidos: Che Vuoi? O que o Outro quer do meu eu? O que eu era antes, não me era bom. Mas era
desse não-bom que eu havia organizado o melhor: a esperança.
Aqui,
através destas dimensões temporais “o que eu era antes” (passado) e “eu havia
organizado o melhor: a esperança (futuro) é que se produz a quebra do simbólico
porque já não há mais a palavra que garanta um sentido na vida de G.H.
Enuncia-se a dimensão do real e faz com G.H. diga: Vou criar o que me aconteceu.
É
um lindo recurso estilístico de linguagem e uma saída elegante para a entrada
no romance, ou como disse, uma entrada em análise. Vou criar o que me
aconteceu. É acentuar que tudo o que ela disser é ficção. Mas é a própria
escritora que certa vez afirmou que quanto mais ficcional é um texto mais
próximo ele estará da realidade. Quanto mais ficcional é um romance mais
autobiográfico ele é. Portanto, recontar a história pessoal é, assim, ficcionalizá-la. Ela vai criar o que lhe
aconteceu e, sem mentir. Eu, a verdade, falo, é o aforismo lacaniano. Ou, “eu
minto” e é aí quando o sujeito diz a verdade.
Então,
ela está aprisionada entre dois significantes. S1= o que eu era antes, não me era bom; e S2= do meu próprio mal eu havia criado um bem futuro, o melhor, a esperança.
Ela
perdeu o que tinha e não há mais esperança para o que virá. E o que sobra desta
relação é um resto inassimilável: objeto a. Irrupção do real. É a partir deste
instante que ela vai escrever, escreviver como disse José Castello. Escrever
criando vida, ou seja, dizer o impossível de ser dito.
Clarice
fala a partir de restos. É a partir daí que ela exerce seu efeito de
transmissão. Em Lituraterra, Lacan logo na primeira página nos diz que a literatura é uma acomodação de restos. Em
Clarice, a acomodação de restos é sua tentativa de tratar o real pelo
simbólico, tal como Lacan define o que é sua práxis. A função da escrita em Clarice possui esta vertente de
transmissão. É o que não cessa de não se escrever/inscrever.
Mais
adiante ela diz: O inumano é o melhor
nosso, é a coisa, a parte coisa da gente. Aqui, afirma-se o que na epigrafe
já enunciava a questão: A vida não é
relatável. Por isso, ao faltar-lhe outra palavra, ela chama de ‘a coisa’,
seu Das Ding pessoal. A coisa inumana com a qual ela se defronta ao se
defrontar-se com o seu mais íntimo-exterior é a barata. Ponto de gozo: angústia
que recai sobre o corpo. Encontro com o pior de si mesma. Encontro com o horror
que toca a fantasia fundamental. Lembro que G.H. encontra silhuetas de um homem
e uma mulher em tamanho natural desenhadas a carvão na parede do quarto da
empregada. E, diante das imagens fantasmagóricas nas quais ela mesmo está ali
em sua incompletude mais devassável, escreve: Será preciso coragem para fazer o que vou fazer: dizer.
Aí
está o real a atravessar. Contorno indefinível, corpo estranho, unheimlich que surge de um lugar de
onde nada deveria advir. E ela precisa dizer sobre isso. Escreve: Adio a hora de me falar. Por medo?
Portanto,
há o horror de ter visto mais do que devia como em Édipo. A respeito desta
tragédia, Lacan nos faz ver no seminário 10, A Angústia: Qual é o momento da angústia?É a visão impossível que os ameaça, a de
seus próprios olhos no chão. Édipo dá um passo a mais e vê o que fez.
E
o que faz G.H.? Dá um passo a mais e encontra a verdade e como uma tentativa de
solução de compromisso ou como que para apaziguar-se, afirma: Mas vê meu amor, a verdade não pode ser má.
A verdade é o que é. Porém sabemos que a verdade sem um saber é a própria
angústia. Pois é isso que a angústia é: a confrontação do sujeito com uma
verdade sem anteparos, sem um saber que acomode os restos. E é esta verdade
desnuda que é a coisa, o inumano, a barata, o real que ela deve comer para
atravessar o pior dela mesma. E,
continua ela, exatamente por ser
imutavelmente o que é (a verdade), ela tem que ser a nossa grande segurança,
assim como ter desejado o pai ou a mãe é tão fatal que isto tem que ter sido o
nosso fundamento. ...por que teria eu medo de comer o bem e o mal? Se eles
existem é porque é isto que existe.
Existirmos,
a que será que se destina?, interroga Caetano.
A
perda da terceira perna abre uma dimensão para o retorno do recalcado, trauma
que volta sem que dele o sujeito possa dar conta. Por isso, G.H. diz:
Todo caso de loucura é
que alguma coisa voltou. Os possessos, eles não são possuídos pelo que vem, mas
pelo que volta. Às vezes a vida volta.
Mais,
ainda.
Numa
carta para Jung, Freud afirma que deveríamos “ver Helena em cada mulher”.
Helena de Tróia.
No
amor está em jogo um não saber. Na literatura também. Em ambos há uma
acomodação de restos que se quer fazer signo para dar conta do inominável. O
amante não sabe o que lhe falta e o amado não sabe o que ele tem. Agalma é o objeto a ser conhecido,
capturado. O Edelweiss na beira do
penhasco. Captura imaginária. Mas, na angústia, o que engana ao sujeito? É sua
localização, nos diz Lacan no seminário sobre a transferência. O sujeito pensa
que o capturável estaria nos objetos envelopados i(a), imaginários, quando na
verdade está no real da fantasia S<>a, o que torna sua captura
impossível. Objeto que falta. Objeto que escapa.
Freud
nos fala de Helena como um modelo para as mulheres. Helena representa a mulher
que escapa (não-toda) e aquela que é impossível capturá-la. E mais: é aquela
que, como metáfora do objeto cobiçado, precipita, por sua ausência, a guerra e
o amor. Na procura pelo amor está um saber ligado a um objeto causa, um saber
ligado ao desejo, um saber não sabido.
Helena,
um enigma. Clarice, uma pergunta.
Será
que hoje poderíamos, com Freud, também dizer: Ver Clarice em cada mulher?
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