terça-feira, 19 de março de 2013

Acomodações de restos: algumas questões sobre Clarice Lispector



Acomodações de restos: algumas questões sobre Clarice Lispector
                                                                     Carlos Eduardo Leal

Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei de criar sobre a vida. E sem mentir. C. L. -  A Paixão Segundo G.H.

Vou retomar a frase inaugural deste texto de Clarice para pensar algumas questões sobre a psicanálise e a literatura, esta acomodação de restos, tal como Lacan referiu-se a ela em Lituraterra.
Viver não é relatável.
A regra técnica fundamental de uma análise (é bom que ninguém se esqueça) é a associação livre. O convite a dizer tudo é, em si mesmo, um paradoxo, porque se por um lado sabe-se que o “dizer tudo” é impossível, por outro, a aposta de uma análise é que se possa dizer o impossível de ser dito, ou seja, dizer algo a partir do real. Fazer passar o real através do simbólico é o que Lacan nos convida no início do seminário sobre os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
O texto de Clarice desdobra-se em vários planos de intervenção em cada uma de suas frases. É preciso ler Clarice não com o intuito de respondê-la (já que ela mesma se dizia uma pergunta), mas no sentido mesmo de interrogá-la.
Vou criar o que me aconteceu.
Esta poderia ser a primeira frase de entrada em análise de um sujeito. E é assim que Clarice abre sua ficção: relatando em seguida que perdeu a terceira perna. Sua perna-sintoma que lhe dava sustentação. A perda desta terceira perna a introduz numa desorganização em sua vida, causando-lhe insegurança, pois agora quando ela parte não mais possui a garantia de poder voltar. Numa análise nunca se volta ao mesmo ponto, pois o que se repete é da ordem da diferença. A desestabilização é também seu desassossego.
Lacan, no Informe sobre Daniel Lagache, afirma que uma desestabilização no imaginário, produz uma ruptura no simbólico fazendo emergir o real.  A perda da terceira perna-sintoma, perna ilusória, vem desestabilizar as garantias imaginárias. Voltei a ter o que nunca tive: apenas as duas pernas. A dimensão da perda abre um abismo que é o prenúncio da angústia de castração: falta-a-ser. No entanto, é exatamente esta desestabilização que faz com que ela enxergue o que antes o sintoma tal como uma metáfora, encobria:
Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo – quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação.
Muitas vezes o sujeito procura uma análise não por causa de tal ou qual sintoma, mas justo o contrário. Procura-se uma análise porque o sintoma (terceira perna?) que lhe dava sustentação, garantias e sentido para a vida deixou de funcionar a contento. Digamos que a quota de gozo existente no sintoma ultrapassou em muito o ganho secundário e o prazer nele embutido. O gozo, que não serve para nada, serve para fazer o sujeito sofrer. Se só o amor permite ao gozo condescender ao desejo, talvez neste romance encontremos a saída para o sem sentido de G.H. A vida se desorganiza, perde-se o sentido e há certa nostalgia, mesmo que o antes não lhe fosse bom. Mas ao menos o sentido não era desconhecido.
É, portanto, diante do novo que o sujeito padece e faz surgir a angústia como um diabo a berrar-lhe aos ouvidos: Che Vuoi? O que o Outro quer do meu eu? O que eu era antes, não me era bom. Mas era desse não-bom que eu havia organizado o melhor: a esperança.
Aqui, através destas dimensões temporais “o que eu era antes” (passado) e “eu havia organizado o melhor: a esperança (futuro) é que se produz a quebra do simbólico porque já não há mais a palavra que garanta um sentido na vida de G.H. Enuncia-se a dimensão do real e faz com G.H. diga: Vou criar o que me aconteceu.
É um lindo recurso estilístico de linguagem e uma saída elegante para a entrada no romance, ou como disse, uma entrada em análise. Vou criar o que me aconteceu. É acentuar que tudo o que ela disser é ficção. Mas é a própria escritora que certa vez afirmou que quanto mais ficcional é um texto mais próximo ele estará da realidade. Quanto mais ficcional é um romance mais autobiográfico ele é. Portanto, recontar a história pessoal é, assim,  ficcionalizá-la. Ela vai criar o que lhe aconteceu e, sem mentir. Eu, a verdade, falo, é o aforismo lacaniano. Ou, “eu minto” e é aí quando o sujeito diz a verdade.
Então, ela está aprisionada entre dois significantes. S1= o que eu era antes, não me era bom; e S2= do meu próprio mal eu havia criado um bem futuro, o melhor, a esperança.
Ela perdeu o que tinha e não há mais esperança para o que virá. E o que sobra desta relação é um resto inassimilável: objeto a. Irrupção do real. É a partir deste instante que ela vai escrever, escreviver como disse José Castello. Escrever criando vida, ou seja, dizer o impossível de ser dito.
Clarice fala a partir de restos. É a partir daí que ela exerce seu efeito de transmissão. Em Lituraterra, Lacan logo na primeira página nos diz que a literatura é uma acomodação de restos. Em Clarice, a acomodação de restos é sua tentativa de tratar o real pelo simbólico, tal como Lacan define o que é sua práxis. A função da escrita em Clarice possui esta vertente de transmissão. É o que não cessa de não se escrever/inscrever.
Mais adiante ela diz: O inumano é o melhor nosso, é a coisa, a parte coisa da gente. Aqui, afirma-se o que na epigrafe já enunciava a questão: A vida não é relatável. Por isso, ao faltar-lhe outra palavra, ela chama de ‘a coisa’, seu Das Ding pessoal. A coisa inumana com a qual ela se defronta ao se defrontar-se com o seu mais íntimo-exterior é a barata. Ponto de gozo: angústia que recai sobre o corpo. Encontro com o pior de si mesma. Encontro com o horror que toca a fantasia fundamental. Lembro que G.H. encontra silhuetas de um homem e uma mulher em tamanho natural desenhadas a carvão na parede do quarto da empregada. E, diante das imagens fantasmagóricas nas quais ela mesmo está ali em sua incompletude mais devassável, escreve: Será preciso coragem para fazer o que vou fazer: dizer.
Aí está o real a atravessar. Contorno indefinível, corpo estranho, unheimlich que surge de um lugar de onde nada deveria advir. E ela precisa dizer sobre isso. Escreve: Adio a hora de me falar. Por medo?
Portanto, há o horror de ter visto mais do que devia como em Édipo. A respeito desta tragédia, Lacan nos faz ver no seminário 10, A Angústia: Qual é o momento da angústia?É a visão impossível que os ameaça, a de seus próprios olhos no chão. Édipo dá um passo a mais e vê o que fez.
E o que faz G.H.? Dá um passo a mais e encontra a verdade e como uma tentativa de solução de compromisso ou como que para apaziguar-se, afirma: Mas vê meu amor, a verdade não pode ser má. A verdade é o que é. Porém sabemos que a verdade sem um saber é a própria angústia. Pois é isso que a angústia é: a confrontação do sujeito com uma verdade sem anteparos, sem um saber que acomode os restos. E é esta verdade desnuda que é a coisa, o inumano, a barata, o real que ela deve comer para atravessar o pior dela mesma. E, continua ela, exatamente por ser imutavelmente o que é (a verdade), ela tem que ser a nossa grande segurança, assim como ter desejado o pai ou a mãe é tão fatal que isto tem que ter sido o nosso fundamento. ...por que teria eu medo de comer o bem e o mal? Se eles existem é porque é isto que existe.
Existirmos, a que será que se destina?, interroga Caetano.
A perda da terceira perna abre uma dimensão para o retorno do recalcado, trauma que volta sem que dele o sujeito possa dar conta. Por isso, G.H. diz:
Todo caso de loucura é que alguma coisa voltou. Os possessos, eles não são possuídos pelo que vem, mas pelo que volta. Às vezes a vida volta.


Mais, ainda.
Numa carta para Jung, Freud afirma que deveríamos “ver Helena em cada mulher”. Helena de Tróia.
No amor está em jogo um não saber. Na literatura também. Em ambos há uma acomodação de restos que se quer fazer signo para dar conta do inominável. O amante não sabe o que lhe falta e o amado não sabe o que ele tem. Agalma é o objeto a ser conhecido, capturado. O Edelweiss na beira do penhasco. Captura imaginária. Mas, na angústia, o que engana ao sujeito? É sua localização, nos diz Lacan no seminário sobre a transferência. O sujeito pensa que o capturável estaria nos objetos envelopados i(a), imaginários, quando na verdade está no real da fantasia S<>a, o que torna sua captura impossível. Objeto que falta. Objeto que escapa.
Freud nos fala de Helena como um modelo para as mulheres. Helena representa a mulher que escapa (não-toda) e aquela que é impossível capturá-la. E mais: é aquela que, como metáfora do objeto cobiçado, precipita, por sua ausência, a guerra e o amor. Na procura pelo amor está um saber ligado a um objeto causa, um saber ligado ao desejo, um saber não sabido.
Helena, um enigma. Clarice, uma pergunta.
Será que hoje poderíamos, com Freud, também dizer: Ver Clarice em cada mulher? 

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