A vigésima
sétima letra
Quando criança escutava
a inquietante história contada pelo meu avô sobre a letra inexistente. Era uma
ficção com certeza inventada pela sua mente fértil, mas que era contada com
tanta veracidade que às vezes custava a dormir pensando numa letra que não existia.
Achava um pouco absurda a história, mas entre desacreditar meu avô e ficar
maravilhado pelas suas fabulações, preferia sempre este último caminho. Para
mim, que sempre fui tão cartesiano, tão racional e obsessivo, as coisas eram ou
não eram. Como o Pausânias de Platão: o ser é e o não ser não é. Simples assim.
E a vida se resolvia numa equação que nunca deixava restos. Isto era a
felicidade alcançada.
Por sorte, herdei a
estupenda biblioteca do meu avô. Seu gosto pela leitura veio também sem nenhum
esforço. Todos os dias após o jantar acendia o abajur, pegava um livro na
estante e recostava-me na poltrona da sala para devorá-lo noite adentro.
Certa noite, sem saber
que livro escolher, deparei com um antigo Dicionário de Masculinos e Femininos
da Língua Portuguesa de Aldo Canázio da Livraria Freitas Bastos. Uma bela
edição de capa dura, lombada em couro, com filetes dourados, de 1923. Sem me
importar a razão, mas apenas movido pela curiosidade, abri o enorme dicionário
no colo e passei a folhear distraidamente as grossas páginas. Já estava quase
fechando, porque minhas pálpebras igualmente o faziam, quando me deparei com
uma página em branco. De início pensei ser apenas uma falha de impressão, mas
logo minha vista desceu até o canto inferior esquerdo. E lá estava ela. A letra
inexistente. Senti um frio correr pela minha espinha e lembrei imediatamente da
história do meu avô. Então seria verdade? Ou já era um truque do meu sono que
me aprontava uma iguaria para meus sonhos? Esfreguei os olhos para certificar-me
que estava bem desperto. Senti minhas pernas dormentes pelo peso daquele enorme
livro. Eu estava muito acordado em meu desassossego. O que não deveria existir
estava, no entanto, bem defronte dos meus olhos.
Agora eu tinha certeza.
Era a vigésima sétima letra da qual meu avô tanto falara. Fiquei inquieto e uma
espécie de estupor hipnótico tomou conta de mim. Conto isso para que vocês
testemunhem comigo a verdade deste relato. O que era ficção, a partir daquele
instante tornava-se realidade. Dura, difícil e incompreensível realidade, devo
admitir.
Desde aquela noite não
durmo mais. Minha vida acabara de se tornar uma página em branco e eu era
fustigado pela letra ausente a todo instante. Comecei a querer estudá-la e
percebi que ela só surgia pela sua omissão ou pelo vazio que denotava. Uma
letra que não está no lugar onde se espera lhe dá a possibilidade de estar em
qualquer lugar. Eu era invadido por uma estanha paranoia persecutória. Eu que
tanto caçara as letras e as palavras, me via agora numa posição de vítima
diante de seu algoz.
Tentei escrevê-la para
ver se, ao fazer isto, me livrava daquele incômodo. Mas percebi que fui tomado
por uma compulsão e que jamais pararia de escrevê-la. Inundei páginas e mais
páginas de um antigo caderno de anotações. Tudo foi em vão. Pela sua ausência
tornava-se insistentemente presente. O que de início pareceu-me novidade,
acabou por se tornar um estorvo. Já não conseguia dormir, pois passava a noite
a procurá-la como num jogo de adivinhações em que a cada pergunta respondida fazia
surgir imediatamente outra imperiosa pergunta ainda mais misteriosa e
desafiadora. O benefício da escolha não me fora dado. Eu tinha que responder à
existência daquela letra.
Estava inapetente,
magro e já apresentava sinais evidentes de fraqueza. Como não saía mais de casa
a pele amarelava sob a luz artificial que me consumia. Tudo era artificial tanto
quanto aquela verdade que não queria se calar. Ficava horas olhando para os poros
da minha pele escamosa, pois desenvolvi a precisa convicção de que a letra
poderia aparecer em qualquer parte do meu corpo. Aquilo se tornou uma obsessão
e andava tão deprimido que preferia já estar morto. Aliás, eu era um
morto-vivo. Mortificava-me pela vigésima sétima letra. Aquela que não existia.
A vida me consumia e não achava mais graça em viver. Desenvolvi um rígido
pensamento sobre o suicídio, mas a complexidade era tanta que precisava
eliminá-la antes de me matar. Mas como eliminá-la se não conseguia encontrar nem
vestígios de sua existência? E, no entanto, estava lá. Presente como se fosse
um duplo de mim.
A ideia fixa de
encontrá-la era o fio de ilusão que ainda alimentava alguma esperança
quotidiana. O telefone tocava e eu não atendia. Ouvia baterem à porta e ficava
horas em mortal silêncio para fingir-me de morto. Para quem? De certo que para
ela. O mundo lá fora não tinha mais nenhuma importância para mim. Tudo me era
cinzento. O pensamento possuía esta cor. Naufragava vertiginosamente num abismo
da alma.
Por acaso a vida
estaria reduzida a uma letra? Como era possível? Eu me inundava de perguntas
infrutíferas mal surgiam os primeiros raios da manhã. Passava dias inteiros
ardendo em febre, suando e sem forças sequer para tomar banho. Meu estado não
era nada bom.
Ao longo dos anos havia
construído uma notável biblioteca. Costumava dizer aos amigos que não casara,
não tivera filhos, mas tivera livros. Em abundância. Herança avoenga, com
certeza. Alguns achavam esquisitice minha esta mania com os livros, mas tinha
amigos fiéis que costumavam vir a minha casa nos finais de semana para
conversarmos sobre literatura e bebermos um bom vinho. A minha condição de
funcionário público razoavelmente bem remunerado, rendia-me certas regalias
como o horário previsível e a condição de ter conseguido financiamento para a
compra do meu apartamento próprio. Desde o início pensei num quarto que seria
transformado em biblioteca, mas com o passar dos anos, as estantes
alastraram-se pela casa. A rotina diária dava-me segurança e conforto. Tudo me
era previsível.
Mas, com tantos livros
ao meu redor, com estas mesmas estantes rodeadas por milhares de palavras, percebia
derrotado que nenhuma era suficiente para preencher a ausência que aquela letra
que possuía. Ela continha todas as significações possíveis e, ao mesmo tempo
nenhuma. Estava em todos os lugares, mas não existia. O meu conforto e a minha
rotina havia sido estraçalhadas.
Uma grave melancolia
preenchia pesadamente a minha alma. Uma espessa bruma me envolvia tal como um
sapo que com sua língua nojenta, engole num brejo lodoso, o minúsculo inseto
pousado sobre o limo de uma pedra.
E era eu o inseto
larvar. Era eu o inseto que não conseguia se libertar da teia que aquela letra
tecia ao redor de mim. Mumificava-me para uma eternidade que eu não havia
pedido. Sentia-me como um condenado à forca que não sabe o crime que cometeu.
Teria sido ouvir demais o meu avô? Será que algum dia ele com suas histórias
quis me alertar para jamais abrir este livro? Então por que não me avisou sobre
este infortúnio? Teria sido esta herança que ele quisera me presentear? Agora
ouvia-o bem ao explicar-me as mil razões do aparecimento da vigésima sétima
letra. Agora fazia algum sentido do por que ele insistentemente me contava a mesma
história. Uma história sem fim nem começo, mas da qual eu sabia muito bem o
enredo. E era deste mesmo enredo que eu sofria a dor de existir.
Os anos passavam
arrastados. As pessoas passavam ao largo de mim. Meu pensamento já não me
ajudava a sair daquele torvelinho. Sabia que meu fim estava próximo. Meu corpo
havia envelhecido precocemente. Sim. Estava severamente doente. Doente de uma
doença incurável. O vigora da minha idade havia se esvaído como o sangue de uma
jugular aberta a navalha. Quantos anos eu tinha? Um século, talvez. Tudo era
secular. Tudo me era antigo que já não cabia nenhuma palavra nova. As rugas
dobravam-se pesadamente sobre aquele dicionário pousado como uma densa sombra
sobre meu colo. Havia afundado num poço sem desejos. Portanto, sem promessas
nem esperanças. Não, não havia mais nenhuma esperança.
Foi quando num último
esforço supremo, dotado de uma coragem hercúlea, tive o ímpeto de virar a
página em branco.
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