quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Êxtase


Êxtase de Santa Teresa - Gian Lorenzo Bernini
Lívia acordou com algo muito importante para falar com André. Rolou sobre os lençóis procurando o corpo de seu homem, mas sua mão tocou no vazio e afundou numa espécie de abismo dela mesma. Dobrou-se aninhada  abraçando as pernas. Ficou ali sem entender como que em 3 meses ela ainda não se acostumara com a solidão. Tomou um banho bem demorado, passou um hidratante sobre sua pele, elevou os cílios com rímel (sua única vaidade feminina desde criança), fez café, torradas, queijo magro. Voltou ao quarto e escolheu uma roupa alegre. Precisava virar aquela página de sua vida. Precisava sair de seu luto quotidiano. As amigas da redação do jornal já tinham avisado sobre quem era André, o fotógrafo freelancer
- Este frila é meio safado, Lívia. Cai fora desta roubada. Dizia Luísa sua melhor amiga desde a faculdade e que agora dividiam uma baia na redação. - Além de tudo o cara te explora. Tira teu dinheiro. É um duro. 
Mas paixão não escolhe caráter. Quem vê caráter são os pais e, sabe-se lá, alguns amigos. Quem está apaixonado idealiza o outro e pronto. 
E Lívia tinha uma queda para a coisa. Com Tadeu, sobrinho de um bicheiro, não tinha sido diferente. O cara não podia ver umas pernas cruzadas que logo queria descruzá-las. Abri-las ao seu bel prazer. Nandinho depois que fumava um bagulho (que ela odiava) e bebia todas, sumia no mundo por uns tantos dias quanto ele quisesse e depois vinha sorrindo com a cara mais lavada do mundo dizendo que havia se internado numa clínica para desintoxicar. Lívia fingia que acreditava, mas no fundo ela gostava de apanhar e isso ele sabia como fazê-la se contorcer de prazer. - Geme, geme para mim. E ela sorria ainda mais desvairada como ela era por sexo, e pedia em seu código secreto que muitos deles não entendiam: "encore, encore".
Mas André entendeu o seu "Mais, ainda, mais, ainda". E, pela primeira vez ela havia realmente se desnudado diante de alguém. E quando se está nu e, não apenas sem roupa, a pessoa torna-se vulnerável. E foi no auge de sua vulnerabilidade que um dia ela acordou e passou a mão instável sobre o vazio de sua cama. E seu corpo foi projetado para fora dela mesma. Caiu sobre si como quem acorda de um soluço de tempo. Um hiato diante do qual ela nunca pode se enxergar. Caiu em si. 
Mas hoje era dia dela se levantar. Dar a volta por cima em seu masoquismo servil diante dos homens. Reacender na mulher que existia, a feminilidade devastada. Estava decidida a mudar de vida. Estava decidida a deixar de ser passiva diante de sua própria história. André havia revelado um outro lado que ela própria não conhecia.
De noite foi até a casa dele. Tocou a campainha. Ele abriu e ela o seduziu ali mesmo na cozinha. A princípio ele estranhou a mudança na posição sexual, mas como numa espécie de covardia, foi se encolhendo e deixando ela fazer o que quisesse com ele, ao contrário do que sempre acontecia. Até que no auge do êxtase ela pegou uma faca e o matou. Não o matou uma vez, mas duas, três, quatro, muitas vezes. Matou a todos que habitavam aquele homem. Sorriu na certeza maior de seu feito. Deu um último beijo frio, indiferente, naquela boca que já esfriava.
Desabitou a casa e sumiu em êxtase sobre a noite.   




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6 comentários:

Anônimo disse...

Eros e Tânatos: pulsões de vida e de morte! Tão contemporâneas, né, poeta?
A literatura é mesmo um instrumento
ímpar na representação de todo esse trajeto do pensamento.
Um abraço!

celeal disse...

Rita, a literatura me leva a vida para além da vida. Obrigado pela sua leitura sensível.
abraços

Anônimo disse...

Adorei!!!! Eu daria só um tiro no meio da testa... rs
certeiro...
rs...
bjs
Elaine Pauvolid

celeal disse...

Cada um, ou uma, que escolha suas armas rs
abçs

Felipe disse...

Pesado!

=)

Anônimo disse...

quantas vezes precisamos nos matar para nos sentirmos livres?nos reinventarmos? A transmutaçao deve ser pacifica .legitimaçao e eficacia