domingo, 20 de junho de 2010

A árvore


Para meu filho que, lá na Austrália, também realiza seu sonho.

Antonio havia caído da árvore. Há muito tempo estivera preso a ela como um dos seus galhos mais interessantes. Não era muito grosso, não era muitíssimo fino. Apenas alongava-se de maneira torta e elegante procurando sair debaixo das folhas que ofuscavam-lhe com sombras os raios de sol. Antonio sempre quis espraiar-se. Viver outras vidas. Incomodava-lhe aquela sensação de depender da seiva sugada através de suas genealogias. Havia crescido quase que como um apêndice daquele gigantesco flamboyant que produzia entre outubro a dezembro lindas flores. O tom vermelho-alaranjado nunca esteve perto de seu caule mais próximo. Apesar de achar aquela sua árvore de nascença muito especial e bonita, não se incomodava em não querer participar de sua majestosa floração. Antonio era um galho sem folhas e, portanto, sem flores. Achava simplesmente engraçado. E pronto. Diziam sobre ele que era um galho seco sem vida e sem nenhuma importância para a companhia dos outros. Mas ele pouco se importava. Continuava em sua vida a espreitar nuvens, pássaros que pousavam vez por outra em seu dedo alongado, ventos do sudoeste e chuvas esplendorosas. Amava os raios por mais que ele próprio pudesse ser uma de suas vítimas fatais, pois em sua forma física, terminava fininho para fora da grande copa e apontado para o céu. Antonio dizia para os outros galhos, flores e folhas que algum dia ainda o veriam fora dali e tendo seu sonho realizado. Mas, perguntado qual era seu sonho, não sabia responder. Apenas, por assim dizer, dava de ombros - se os tivesse - e seguia olhando tranquilo para o alto de seus pensamentos.
Ficava imaginando sim, mas isso ele não revelava para ninguém, que pudesse ser útil para os humanos homens que vez por outra vinham rondar a árvore e acabavam dormindo sob sua majestosa sombra. Principalmente, pensava ele, aqueles pequenos que gostavam de brincar por ali. Isolado no alto de uma montanha, mas cercado por um lindo pasto verdejante, aquele flamboyant havia crescido sem que ninguém houvesse oficialmente plantado. Talvez alguma sua semente tivesse sido trazida por um pássaro-vento.
Mas eis que um belo dia aconteceu. Quer dizer, não era tão belo assim porque chovia e ventava sem parar. E foi numa destas rajadas mais fortes que Antonio foi ao chão. Os outros galhos curvaram-se com temor premeditando o futuro nefasto e incerto daquele que havia sido o mais rebelde e diferente galho que eles até então haviam conhecido. Mas, estava ali a poucos metros da árvore. Agora, Antonio já não mais apontava para o céu. Em sua declinada horizontalidade, permanecia imóvel, desgarrado e para sempre banido da companhia de seus irmãos genealógicos.
O dia seguinte amanheceu azul com uma brisa fresca que fez acordar as folhas e os galhos com extrema leveza. Antonio continuava imóvel no chão e, algumas folhas, não se sabe pela chuva do dia anterior ou pelo orvalho da noite, pareciam chorar a sua ausência tão presente.
Ouviram vozes ao longe que foram ficando cada vez mais estridentes. Eram os pequenos humanos que se aproximavam velozes para brincar mais uma vez por ali.
Pedrinho tinha seis anos e foi o último a chegar. Chegou esbaforido, arfante. Dobrou-se sobre os joelhos com o intuito de buscar fôlego e, pela primeira vez, reparou numa varinha caída aos seus pés que parecia ter o tamanho e o formato ideal que há tanto ele procurava. Era Antonio. Apanhou aquele galho ainda úmido, retirou um pouco da terra que havia grudado nele e, olhando para os céus, bradou feliz sua varinha mágica. Deste dia em diante, Pedrinho não parou mais de sonhar acordado e, exultante, fazer sua vida acontecer como ele sempre sonhou.

sábado, 12 de junho de 2010

Outras palavras - Valsinha

Outras palavras é um espaço aqui aberto para que outros autores, escritores e eventuais pensadores ou poetas, publiquem suas criações. Esta, de Ana Carolina, é criação de criação: minha filha. Contaminada pelo livro "Essa história está diferente", também resolveu escrever sobre o Chico.


Valsinha

Até as estrelas. Era o que Ele sempre dizia. Agora, com seu corpo cansado, mãos trêmulas, olhos fatigados, marcas dos dias vividos, Ele deixou de vê-la. Voltou-se para si próprio, ficando imerso em seus devaneios. O tempo levou suas palavras, as quais só ganhavam espaço no fechar dos olhos pela madrugada afora. Até pensar Ele evitava. Procurava se ocupar com toda espécie de atividade, assim a vida seguiria logo. Esta prosseguiria esquecendo-se dele, já que até Ele não se reconhecia mais. Não sabia mais o que um dia lhe dera prazer, seus gostos, seus afetos, suas vontades, tudo havia desaparecido. Estava só, apenas o que lhe acompanhava eram as suas funções vitais que insistiam em eternizar-se. Nem suas lembranças lhe pertenciam mais. Evitava resgatar suas memórias, daqueles dias em que tudo tinha uma cor. Cores que se decompunham em tantos sentimentos que transbordaram até deixá-lo vazio, oco. Forças lhe faltavam para preencher seus espaços, as tantas lacunas que nele se enraizaram. Às vezes tentava sentir dor. Talvez assim se sentiria vivo novamente. Ou quem sabe medo, para que lhe despertasse o desejo por um afago. Desejo? Isto ficara para trás, em algum canto escondido de seu âmago. Seguia descolado de si próprio, sem qualquer amargura, rancor ou desilusão. Apenas andava, movido por uma serenidade apática. Restava somente prosseguir, embora o rumo estivesse turvo. Sua vista, que ainda lhe permitia enxergar, não trazia qualquer percepção além daquela física que se apresentava diante dele. Apesar de nítida, a sombra que nele recaiu entorpeceu os seus múltiplos olhares. Eram infindáveis em sua juventude. Observava cada gesto, objeto e som que o circundava. E cada elemento despertava tantas sensações que seus pensamentos permaneciam em contínua profusão. Era intenso em suas emoções, em seus relacionamentos e nos seus escritos. A escrita era onde depositava tudo aquilo que não cabia em si, sua válvula de escape da realidade. Não ousava em se doar, fosse através das palavras ou por atitudes. Seu olhar o entregava, era sincero e facilmente desvendável. No dia em que a paixão o arrebatou, toda a sua doação voltou-se para Ela. Cantos, galanteios, flores, sorrisos e sussurros não faltavam nesta relação. Mas este incessante viver para o outro, que sempre permeou toda sua vida, o tornou ausente de si mesmo. Com isto a distância se impôs e uma barreira intransponível separou aqueles amantes. A partir daí fez-se o abismo. Passou a viver a esmo, submerso em suas reminiscências. Perdeu-se daquilo no que se tornara. Um dia, deitado em sua cama e possuído pela fraqueza que o invadia, resolveu caminhar até a porta de sua casa e abri-la. Talvez aquela seria a última vez que avistaria o que estava além de seus escombros. Ao fazê-lo, uma lembrança o dilacerou. Finalmente algo trouxe de volta um sentimento que deveria estar latente lá dentro dele. Não sabia que poderia sentir de novo, tampouco o que se passava naquele momento. Ao abrir aquela porta viu seu olhar refletido no dela e percebeu que Ela sempre estivera ali, naquela janela vizinha, esperando por qualquer sinal seu. Com as marcas da idade, os cabelos em tom branco reluzente, cuidadosamente penteados, as mãos enrugadas e manchadas pela vida percorrida, Ela nunca se esquecera da promessa recebida. Até que naquele dia, quando os olhares se encontraram, Ela percebeu que valeu a pena. Não foi em vão cada dia que passou procurando as estrelas que traduziriam o alcance daquele amor. Recebeu um único sorriso, a última expressão que Ele conseguira manifestar. Ele se foi preenchido de toda a ternura, pôde ver ao menos mais uma vez as ditas estrelas: aquele olhar que só Ela tinha quando do encontro com o seu.

“Um dia, ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar
Olhou-a de um jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar
E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar
E nem deixou-a só num canto, pra seu grande espanto, convidou-a pra rodar
E então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar
Com seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar
Depois os dois deram-se os braços como há muito tempo não se usava dar
E cheios de ternura e graça, foram para a praça e começaram a se abraçar
E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou
E foi tanta felicidade que toda cidade se iluminou
E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouvia mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu
Em paz” (Chico Buarque).

Ana Carolina Nunes Vianna

sexta-feira, 11 de junho de 2010

A queda da palavra: a perda da inocência


A queda da palavra: a perda da inocência

“A inocência é como uma mariposa que não prevê sua morte na luz que a ilumina” – Dito da minha bisavó

“Nem com seu lápis nem com seu bastão nem

Nem luzes luzes quero dizer

Nunca coisa alguma

Mais nada

Nunca mais”. Samuel Beckett

A horta da minha bisavó era sem fim. Poderia andar nos meus passos miúdos por horas, talvez dias a fio que não veria nem o contorno rente ao céu da última plantação. Descobri a existência do céu por acaso. Engraçado que o mesmo tempo da descoberta, foi o tempo da tempestade. Minha bisavó me ensinou a olhar para o chão para prestar atenção na festa das joaninhas por debaixo das folhas de inhame, a dança tresloucada da minhoca que arejava ideias sobre os musgos por entre as pedras comestíveis, para os sulcos na terra-húmus escavados durante a última chuva, para os tubérculos que de tão envergonhados recolhiam-se debaixo da terra - e eu, muitas vezes, era tão tubérculo para minha vida ainda diminuta -, para os rastros das lesmas, para os rastros do homem, para os rastros da vida.

Assim, olhava encantado para aquele mundo-chão, para aquele mundo-fértil. E eu ria com as infinitas possibilidades que a cada dia iam, o tempo e o vento me revelando. Não, nunca havia olhado para o céu. Não daquela maneira. É claro que eu sabia que existiam estrelas. É claro que a luz do sol iniciava o douramento da minha pele e eu sentia que a vida também começava por ali: fotossíntese era o que havia em mim. Por isso aquela horta era tão extensa. Ela não cabia na minha imaginação. Eu transbordava.

O que aconteceu de extraordinário foi numa manhã que parecia mais uma manhã como outra qualquer. Mas não foi isto que aconteceu. Era um dia ensolarado. Céu azul sem uma mancha de nuvem. Eu e minha bisavó estávamos tropeçando em estrofes que havíamos plantado recentemente e já davam os primeiros sinais de rimas, quando dei um grito: "vó, uma estrela cadente!" E fiquei como um louco olhando para o céu e rindo. Deixei-me cair por terra, barriga para cima, olhos estáticos e os braços abertos em crucifixo. O sol furava meus poros e eu ardia em febre. Não queria mais sair dali.

-"Você viu o que não devia", falou seca minha bisavó. Era a primeira vez que ela falava assim comigo. Quase ralhando. Eu vira prematuramente? Criança não podia ver o que em êxtase eu via? Tudo girava e as palavras não cabiam na minha língua. Descobri, naquele instante, que a linguagem é coisa encantada, mas que é um erro santificá-la. Talvez por isso, um pouco por intuição, outro tanto por medo, eu tenha sentido necessidade de estar rente ao chão.

-"Você nunca mais repita isto à luz do dia." Sua voz abrandara, mas o mal estava feito. Eu vira além do que podia ter visto e cometi o pecado de falar. A palavra escorreu em minha boca para nunca mais secar.

Hoje, com a jornada dos dias, invariavelmente ando com a garganta seca. Os olhos lacrimejam na saudade. A palavra escorreu definitivamente para fora do Jardim, mas foram os olhos da minha bisavó que permaneceram lá. Intactos. Eram os olhos na inocência.

sábado, 5 de junho de 2010

2012: o fim



Prazeres já estava com 92 anos. Próximo, portanto, de seu fim. Mas, extremamente lúcido e sempre vivaz e independente, sentou-se à escrivaninha, pegou papel e caneta e começou escrever uma carta para Clarice, sua bisneta. Mesmo com as mãos trêmulas, ainda mantinha a caligrafia esmerada dos antigos cadernos pautados.
E resolveu contar apenas as partes mais pitorescas de sua vida. Queria fazer circular entre as pessoas apenas seu lirismo e seu fino humor, resultantes tanto da sua vesguice crônica, quanto do seu andar torto, por haver quebrado o fêmur quando foi atropelado por uma charrete aos doze anos. Além de sua miopia galopante. Prazeres sempre foi contra a cirurgia para correção tanto da vesguice, quanto da miopia. "Quem tem a seu favor a possibilidade de não olhar de frente a vida e, ao mesmo tempo, de olhá-la bem de pertinho enxergando tudo?", dizia rindo. Sua memória, ainda de todo não corroída, seria sua herança, seu legado às futuras gerações. Por sua bisneta estar fazendo faculdade de letras pensou que ela seria a melhor destinatária.
Escreveu sobre o primeiro tombo de cavalo quando resolveu subir as escadarias da igreja da cidadezinha do interior onde morava. Escreveu a tragicomédia da carroça o atropelando. Escreveu sobre ter colocado outras crianças em cima de um formigueiro. Escreveu sobre o dia em que aprendeu a correr nas valas apoiando o pé manco no degrau mais alto e o outro dentro da vala. Mecanismo que o fazia equilibrar e correr como todos os outros garotos. Às vezes até mais, se corria de casa de marimbondo jogada no chão. Escreveu sobre como conheceu sua falecida esposa na quermesse da paróquia local. Foi uma paixão arrebatadora: após dois meses deram-se as mãos e o primeiro beijo veio quatro meses e meio depois. Tudo isso ele escrevia com graça e acrescentando aqui e ali um pouco de verdade ficcional. E ainda escreveu muitas outras histórias de caça de bichos ferozes no meio do mato e de pescador. Era tudo verdade, ou quase. Mas era a sua história.
Quando terminou a carta foi olhar no calendário a data que havia esquecido de escrever. Era dia 13 de agosto de 2012, que segundo o calendário Maia e o velho Nostradamus, seria o fim do mundo. Deu de ombro às previsões, pois pensou: "arre, já vivi até agora, talvez meu último ato seja postar esta carta nos correios."
Prazeres já não saía de casa há muito tempo sozinho. Vestiu seu terno de linho branco e foi até a agência dos correios que ficava duas quadras de distância. No lugar da agência encontrou um prédio alto de mármore e vidro. Olhou ao redor e não reconheceu mais nada. Andou por mais de duas horas perguntando e ninguém parava para falar com ele ou simplesmente diziam que não conheciam nenhuma agência daquelas. Por mais de uma vez indicaram uma agência bancária. Prazeres estava desolado. Ficou desorientado sem saber como voltar para sua casa. O calor fora de época estava deixando-o atordoado.
Finalmente reconheceu a velha banca de jornais do Alceu, seu grande amigo há mais de cinquenta anos. Mas lá estava um rapaz alto, bigodes finos, magrela, olhos fundos, cabelo espetado para os céus. "Esta não é banca do Alceu?", perguntou ao jovem. "Era. Meu avô morreu há uns oito anos." Prazeres se deu conta de há quanto tempo não visitava o amigo. Resmungou triste com um pesar notório sobre seus ombros, mas encontrou forças para perguntar ao jovem onde ele poderia colocar uma carta nos correios. "Carta escrita?", perguntou o incrédulo rapaz. "Sim, meu jovem". E retirou o envelope amassado que jazia em seu bolso interno do paletó. "Meu senhor, isso de cartas escritas e correios não existe mais. Ninguém escreve mais cartas. E as remessas de qualquer encomenda são colocadas nas caixas coletoras dentro dos prédios e retiradas todos os dias pelo sistema a vácuo".
Prazeres ainda tentou balbuciar uma ou duas palavras, mas seus lábios tremeram, foi ficando roxo e não saiu uma única voz.
Enquanto pensava desolado como faria para que aquela carta-memória chegasse às mãos da sua bisneta, caiu morto dentro da banca de jornais.
O jovem jornaleiro recolocou a carta dentro do bolso do paletó de Prazeres. Suas memórias foram enterradas com ele.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

facebook


Luísa amanheceu febril. Tinha febre de ler. Queria ler o que encontrasse pela frente. Sua infernal mãe já havia avisado que aquilo estava virando uma doença.
"Minha filha, ler é bom, mas você precisa descansar um pouco esta cabecinha. Daqui a pouco não saberei mais qual é a anatomia do teu rosto. Acho que você vai acabar virando um livro."
Pronto. Palavra de mãe é que nem praga. Basta falar para acontecer. Luísa que apenas tinha um gosto um pouco, digamos, exagerado pela leitura, agora não conseguia mais fechar os olhos diante de uma página com letras. Virou compulsão. Seus olhos ressecavam por ela não conseguir nem piscar. Lia um livro após o outro. Seu maior problema eram como conciliar o banho com a leitura. Gostaria que tivessem inventado um livro impermeável, de plástico de preferência. Palavras impermeáveis ela já sabia da existência. Mas agora ela queria absorver todas as palavras existentes em todos os livros do mundo. Entrava em um livro e saía em outro. Mergulhava num romance e emergia num dicionário russo. Mergulhava em Borges e ressurgia em Maiakóvski. Deitava com Shakespeare e sonhava acordada com Flannery O.
Assim é que dia a dia a força da palavra da sua mãe ia ganhando forma e consistência. O rosto de Luísa começou por aparecer umas letras ainda sem forma, mas pouco a pouco de letras imprecisas, começaram a surgir frases tempestuosas, estrofes que entravam por suas narinas e interrogações que saltavam de seus olhos. Vírgulas iam e vinham de seus ouvidos, pontos de exclamação brilhavam inquietos em suas sobrancelhas, cacos de palavras desusadas escorriam lúdicas, revigoradas do canto de sua boca. Luísa regozijava exultante em seu contínuo desfolhamento facial.
Cada vez que ela mexia a cabeça, uma nova frase vinha completar a anterior. Em certas ocasiões com muita dor, porque era um romance de amor, morte e paixões. Noutras vezes seu rosto assumia proporções bizarras por se tratar de uma novela de terror mexicana. Às vezes parecia alcançar o asco por não ter tido o cuidado de evitar palavras de auto-ajuda que teimavam em querer ficar para sempre em sua testa como aqueles espalhafatosos anúncios em neon no alto dos prédios. Em certas ocasiões estava radiantemente bela por sua face estar repleta de palavras de Virgílio. Mas, certo dia, Luísa surgiu com hieróglifos besuntados e espalhados por todo o rosto.
Então, sua mãe, sempre ela, tomada por um horror incomensurável, levou a feliz Luísa a uma dermatologista.
A médica, munida de um prazer inenarrável, pegou uma pinça e, uma a uma, começou a retirar todas as letras do rosto da menina. Para cada letra ou palavra arrancada, passava um algodão com um hidratante e, aquele monte de palavras, agora destroçadas, arrancadas sem dó, iam sendo jogadas na lata de lixo. Só Luísa parecia ouvir o gemido das frases desfeitas, das histórias por terminar, das memórias sem nenhuma invenção.
Quando Luísa voltou para casa não havia um só livro em sua estante. Antes de levá-la ao delírio do apagamento, sua mãe havia deixado a ordem de queimar tudo.
Assim que Luísa se olhou no espelho do banheiro não reconheceu aquele rosto todo queimado. Estava triste, mas a palavra lágrima já não mais existia. Estava cega. Nas órbitas de seus olhos gravitavam lindas cantigas de amor trovadoresco. Foi preciso extirpá-los.
Sua mãe sorria triunfante na soleira da porta. E, com um sorriso irônico, perguntou-lhe: "Filha, por que você não escreve sobre esta sua experiência?"