
domingo, 20 de junho de 2010
A árvore

sábado, 12 de junho de 2010
Outras palavras - Valsinha
Outras palavras é um espaço aqui aberto para que outros autores, escritores e eventuais pensadores ou poetas, publiquem suas criações. Esta, de Ana Carolina, é criação de criação: minha filha. Contaminada pelo livro "Essa história está diferente", também resolveu escrever sobre o Chico.
Valsinha
Até as estrelas. Era o que Ele sempre dizia. Agora, com seu corpo cansado, mãos trêmulas, olhos fatigados, marcas dos dias vividos, Ele deixou de vê-la. Voltou-se para si próprio, ficando imerso em seus devaneios. O tempo levou suas palavras, as quais só ganhavam espaço no fechar dos olhos pela madrugada afora. Até pensar Ele evitava. Procurava se ocupar com toda espécie de atividade, assim a vida seguiria logo. Esta prosseguiria esquecendo-se dele, já que até Ele não se reconhecia mais. Não sabia mais o que um dia lhe dera prazer, seus gostos, seus afetos, suas vontades, tudo havia desaparecido. Estava só, apenas o que lhe acompanhava eram as suas funções vitais que insistiam em eternizar-se. Nem suas lembranças lhe pertenciam mais. Evitava resgatar suas memórias, daqueles dias em que tudo tinha uma cor. Cores que se decompunham em tantos sentimentos que transbordaram até deixá-lo vazio, oco. Forças lhe faltavam para preencher seus espaços, as tantas lacunas que nele se enraizaram. Às vezes tentava sentir dor. Talvez assim se sentiria vivo novamente. Ou quem sabe medo, para que lhe despertasse o desejo por um afago. Desejo? Isto ficara para trás, em algum canto escondido de seu âmago. Seguia descolado de si próprio, sem qualquer amargura, rancor ou desilusão. Apenas andava, movido por uma serenidade apática. Restava somente prosseguir, embora o rumo estivesse turvo. Sua vista, que ainda lhe permitia enxergar, não trazia qualquer percepção além daquela física que se apresentava diante dele. Apesar de nítida, a sombra que nele recaiu entorpeceu os seus múltiplos olhares. Eram infindáveis em sua juventude. Observava cada gesto, objeto e som que o circundava. E cada elemento despertava tantas sensações que seus pensamentos permaneciam em contínua profusão. Era intenso em suas emoções, em seus relacionamentos e nos seus escritos. A escrita era onde depositava tudo aquilo que não cabia em si, sua válvula de escape da realidade. Não ousava em se doar, fosse através das palavras ou por atitudes. Seu olhar o entregava, era sincero e facilmente desvendável. No dia em que a paixão o arrebatou, toda a sua doação voltou-se para Ela. Cantos, galanteios, flores, sorrisos e sussurros não faltavam nesta relação. Mas este incessante viver para o outro, que sempre permeou toda sua vida, o tornou ausente de si mesmo. Com isto a distância se impôs e uma barreira intransponível separou aqueles amantes. A partir daí fez-se o abismo. Passou a viver a esmo, submerso em suas reminiscências. Perdeu-se daquilo no que se tornara. Um dia, deitado em sua cama e possuído pela fraqueza que o invadia, resolveu caminhar até a porta de sua casa e abri-la. Talvez aquela seria a última vez que avistaria o que estava além de seus escombros. Ao fazê-lo, uma lembrança o dilacerou. Finalmente algo trouxe de volta um sentimento que deveria estar latente lá dentro dele. Não sabia que poderia sentir de novo, tampouco o que se passava naquele momento. Ao abrir aquela porta viu seu olhar refletido no dela e percebeu que Ela sempre estivera ali, naquela janela vizinha, esperando por qualquer sinal seu. Com as marcas da idade, os cabelos em tom branco reluzente, cuidadosamente penteados, as mãos enrugadas e manchadas pela vida percorrida, Ela nunca se esquecera da promessa recebida. Até que naquele dia, quando os olhares se encontraram, Ela percebeu que valeu a pena. Não foi em vão cada dia que passou procurando as estrelas que traduziriam o alcance daquele amor. Recebeu um único sorriso, a última expressão que Ele conseguira manifestar. Ele se foi preenchido de toda a ternura, pôde ver ao menos mais uma vez as ditas estrelas: aquele olhar que só Ela tinha quando do encontro com o seu.
“Um dia, ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar
Olhou-a de um jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar
E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar
E nem deixou-a só num canto, pra seu grande espanto, convidou-a pra rodar
E então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar
Com seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar
Depois os dois deram-se os braços como há muito tempo não se usava dar
E cheios de ternura e graça, foram para a praça e começaram a se abraçar
E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou
E foi tanta felicidade que toda cidade se iluminou
E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouvia mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu
Em paz” (Chico Buarque).
Ana Carolina Nunes Vianna
sexta-feira, 11 de junho de 2010
A queda da palavra: a perda da inocência
A queda da palavra: a perda da inocência
“A inocência é como uma mariposa que não prevê sua morte na luz que a ilumina” – Dito da minha bisavó
“Nem com seu lápis nem com seu bastão nem
Nem luzes luzes quero dizer
Nunca coisa alguma
Mais nada
Nunca mais”. Samuel Beckett
A horta da minha bisavó era sem fim. Poderia andar nos meus passos miúdos por horas, talvez dias a fio que não veria nem o contorno rente ao céu da última plantação. Descobri a existência do céu por acaso. Engraçado que o mesmo tempo da descoberta, foi o tempo da tempestade. Minha bisavó me ensinou a olhar para o chão para prestar atenção na festa das joaninhas por debaixo das folhas de inhame, a dança tresloucada da minhoca que arejava ideias sobre os musgos por entre as pedras comestíveis, para os sulcos na terra-húmus escavados durante a última chuva, para os tubérculos que de tão envergonhados recolhiam-se debaixo da terra - e eu, muitas vezes, era tão tubérculo para minha vida ainda diminuta -, para os rastros das lesmas, para os rastros do homem, para os rastros da vida.
Assim, olhava encantado para aquele mundo-chão, para aquele mundo-fértil. E eu ria com as infinitas possibilidades que a cada dia iam, o tempo e o vento me revelando. Não, nunca havia olhado para o céu. Não daquela maneira. É claro que eu sabia que existiam estrelas. É claro que a luz do sol iniciava o douramento da minha pele e eu sentia que a vida também começava por ali: fotossíntese era o que havia em mim. Por isso aquela horta era tão extensa. Ela não cabia na minha imaginação. Eu transbordava.
O que aconteceu de extraordinário foi numa manhã que parecia mais uma manhã como outra qualquer. Mas não foi isto que aconteceu. Era um dia ensolarado. Céu azul sem uma mancha de nuvem. Eu e minha bisavó estávamos tropeçando em estrofes que havíamos plantado recentemente e já davam os primeiros sinais de rimas, quando dei um grito: "vó, uma estrela cadente!" E fiquei como um louco olhando para o céu e rindo. Deixei-me cair por terra, barriga para cima, olhos estáticos e os braços abertos em crucifixo. O sol furava meus poros e eu ardia em febre. Não queria mais sair dali.
-"Você viu o que não devia", falou seca minha bisavó. Era a primeira vez que ela falava assim comigo. Quase ralhando. Eu vira prematuramente? Criança não podia ver o que em êxtase eu via? Tudo girava e as palavras não cabiam na minha língua. Descobri, naquele instante, que a linguagem é coisa encantada, mas que é um erro santificá-la. Talvez por isso, um pouco por intuição, outro tanto por medo, eu tenha sentido necessidade de estar rente ao chão.
-"Você nunca mais repita isto à luz do dia." Sua voz abrandara, mas o mal estava feito. Eu vira além do que podia ter visto e cometi o pecado de falar. A palavra escorreu em minha boca para nunca mais secar.
Hoje, com a jornada dos dias, invariavelmente ando com a garganta seca. Os olhos lacrimejam na saudade. A palavra escorreu definitivamente para fora do Jardim, mas foram os olhos da minha bisavó que permaneceram lá. Intactos. Eram os olhos na inocência.
sábado, 5 de junho de 2010
2012: o fim

quinta-feira, 3 de junho de 2010
