Para Bianca Dias, que em sua conversação com Nadia Battella Gotlib, falou sobre o não-lugar de Clarice
Clarice não está. Bati na sua porta muitas vezes e sempre ecoava do outro lado a mesma resposta: Clarice não está. Fiquei preocupado com esta ausência. Queria entregar-lhe em mãos uns desencontros, uns textos que ao longo da vida havia escrito. Queria entregar-lhe algumas outras coisas: algumas lembranças, algumas gotas de orvalho estancadas na pedra, uma lágrima cristalizada por cima de uma notícia triste do jornal, alguns desejos, despejos e outros arrependimentos. Queria, quem sabe, entregar-lhe outras palavras que talvez nem mesmo existissem. Fossem só ficção. A palavra ficção é uma ficção? E a palavra amor? Como é que se escreve? A procurei desde cedo por isso.
Mas, sempre voltava de sua porta com a mesma resposta. Sempre, sempre, sempre. Como um eco surdo ou como uma voz diáfana por onde a claridade de sua voz, voz clariceana, deixava entrever palavras-luz, palavras-setas que perfuravam imagens, pensamentos e quebravam conceitos.
Foi então que comecei a perceber o não-lugar de Clarice. Ali aonde ela não estava deveria sua palavra advir. O não-lugar de Clarice era a palavra. Clandestina palavra. Descobria assim, a cada vez e aos poucos, que não adiantava procurá-la lá aonde eu pensava encontrá-la. Pois este outro lugar era sempre o lugar da invenção. E, nesta época, eu ainda era muito jovem para perceber isto que a cada dia descobria sobre ela. Ainda não tinha dezoito, mas ela já habitava em seu não-lugar. E eu a amava justamente por isso. Eu é que por muito tempo ainda insisti em querer dar um lugar para ela. Para ela em mim. Minha atopia.
Com o passar dos anos fui descobrindo que me era inútil querer encontrá-la, mas sempre que o desejo tornava-se insaciável - e isto era muito frequente -, corria para minha estante e fazia com que ela me achasse. Pois a cada vez e sempre e com maior força e intensidade, eu estava lá dentro daquelas páginas. Cada vez que eu me perdia em labirintos de mim eu quase me dava ao luxo de me reencontrar, atônito, entre Gê Agás, Lóris, Ulisses, Macabéias, Joanas.
Como era possível um não-lugar? Como era possível uma "terceira margem" clariceana? Até hoje ela me deixa num grande desassossego d'alma com este não-lugar. Até hoje não encontro respostas para ela. Então, como que querendo me consolar e atribuir quase que ao acaso (se houvesse) a resposta para todas as perguntas, abro uma página e leio: "a repetição de um enigma é a repetição do enigma. O que És e a resposta é: ÉS. O que existes? e a resposta é: o que existes. Eu tinha a capacidade da pergunta, mas não tinha a de ouvir a resposta."
Talvez tenha sido por isso. Já faz tanto tempo que nem lembro como tudo começou. Talvez muito amiúde e, com todo cuidado, é que afirmo com a emoção aos soluços este intraduzível desejo de ouvir. Escutar estes não-lugares. Quem sabe?
16 comentários:
Clarice... faltam-me as palavras... de todas as suas incríveis aparições fotográficas essa escolhida por você é uma das que mais amo.
beijos
Michelle
Nossa, Carlos, quanto tempo. O retorno foi tão bom quanto a descoberta. Escutar esses não-lugares... nossos sonhos... existe um lugar para eles.
Bom, depois de seis meses, voltei a escrever (assim espero... rs)
Preciso das suas críticas!!
Beijos,
Raquel.
A minha identificação com Clarice sempre foi imensa. Meu primeiro namorado se tornou meu primeiro amor, depois que eu fiz uma des-coberta surpreendente: dois textos de Clarice sobre Brasilia-cidade do rapaz. Clarice esteve lá em 62 e escreveu uma crónica assombrada. Doze anos depois voltou e então escreveu uma nova crónica juntando as primeiras impressões com uma visão mais secular da cidade.Eu consegui esse texto na epoca e carregava ele comigo, quando conheci Fernando.Precisei de alguns anos de analise para entender que eu sempre esperei que o Outro me conduzisse para fora de mim, para um lugar completamente novo- o não- lugar clariceano. Brasília era o não-lugar para Clarice. Ela dizia: Brasilia e uma cidade abstrata. Não há como concretizar essa cidade sem esquinas, mas Brasília e esplendor. Estou assustadissima! Ele foi meu primeiro namorado, porque, em alguma medida, entendeu essa relação textual profunda da minha
condição com as palavras de Clarice lispector. Achava que fosse encontrar Clarice entre Niemeyer e Athos bulcão, mas ela não estava lá ! Eu continuo procurando Clarice também. Acho que ela sempre vai escapar, mas o amor vai sempre existir nessas veredas minhas e de quem tenta, ao menos, inscrever esse assombro de não pertencer! Lindo texto!
Talvez Clarice esteja num "entre-lugar" a nos fazer ouvir ecos de nós mesmos, quem sabe, quem sabe, quem sabe, quem sabe?....
Bj
Adriana.
Olá Carlos Eduardo, belo texto, outros vetores na caminhada. No campo do impossível quem sabe surgirá uma possibilidade fugaz de ouvir os não-lugares... mas acho que tudo dependerá da sintonia, essa linha bem sutil.
Beijo grande.
Oi Carlos Eduardo,
Pareceu-me entrar por um novelo de lã macia,onde o desprezo aos fios como se eles fossem uma massa única fez com que eu escorregasse para o centro ôco,um não lugar -entre.
Belo perceber os não lugares,os não ditos,os não audíveis.Clarice por vezes é um pressentimento...
Bom estar por aqui.
Beijo,
Cris
Se há "não lugares" é porque "há lugares". Escutar lugares é ouvir. E o fazes com muito carinho por Clarice.
Estou encantada com suas palavras. Você tem o dom da escrita e escolheu nada mais que Clarice, grande Clarice. Ela realmente se ajustou em um "não-lugar", com uma sensibilidade imensa e uma destreza sem tamanho pra dizer o não-dito. Voltarei sempre pra encantar-me mais com seu trabalho e preencher-me da boa literatura. Abraço!
Se vc puder ler esta mensagem, sinal de que eu a encontrei. Risos.
Bjos,
Ana Paula
Estou de volta
Professor, que lindo o seu blog! posso dizer com toda a certeza que tenho muito orgulho em te ter como meu mestre. desculpa por não ter o mesmo dor das palavras que você tem (coisa que eu admiro de montão), mas gostaria que soubesse do meu contentamento por te ter conhecido e então poder ter você como um dos meus exemplos de vida. obrigada! abraços! Bárbara Figueiredo.
Clarice está em todos os nossos não-lugares, no imenso espaço que ocupa aquilo que não vemos, mas sentimos, imaginamos, no fundo imprescrutável do nosso SER. Parabéns pelo texto.
Os "não lugares" são espaços que vemos com os olhos interiores e preciosos para nossa sanidade!
Beijos
Anne
Olá, Carlos. Encontrei seu blog pelo comentário que li no Blog da Marli. Gostei daqui...
O texto sobre a Clarice é pertubardor. Passei dias digerindo. Uma pena eu não ter dedicado muito tempo à ela quando tive oportunidade. Mas ainda pretendo.
Acompanharei as novidades deste seu blog.
Uma abraço,
Michelle
Oi Carlos....ate que enfim um comentario meu rs
"Eu tinha a capacidade da pergunta, mas não tinha a de ouvir a resposta."
...quantas vezes buscamos em textos alheios respostas para nossas questoes mais intimas...e quando nos deparamos com tais, descobrimos que as respostas se encontram ecoando dentro de nos mesmos...
Admiravel seu Blog...
Bjs e boa tarde!
Mary
E como não amar Clarice? Ela toma esse não-lugar, onde nós quando a ouvimos e a encontramos, nos achamos também. Como não amar Clarice? E a foto, só uma coisa a dizer: magnífica!
Um abraço
Encantada com o seu encanto por Clarice!
Ou...encantada como você diz bem do MEU encanto por Clarice!
Seguindo-te.
significantess.blogspot.com
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