sábado, 17 de abril de 2010

João Luís e os pássaros



João Luís morava no sítio do meu avô. Era filho do filho do caseiro. Estranha genealogia aquela. A mãe de sua mãe havia desaparecido juntamente com sua mãe, assim que João Luís nasceu. Avó e mãe de uma vez. Mas, estranhamente, João Luís não era um menino triste. Eu que tinha exatamente a sua idade, tinha minhas crises de subir em árvore e só descer quando já haviam cansado de procurar por mim e a lua alcançava a ponta do galho mais alto. Nestes dias andava triste como se fosse minha mãe que havia esquecido de nascer para mim. A mãe de João Luís, sempre achei isso, havia esquecido de nascer para ele. Pensava como ela podia tê-lo abandonado.
Mas João Luís definitivamente não era triste. Andava sempre de mãos dadas com a alegria. Parecia que sempre tinha um sorriso dentro do bolso de seu short pronto a ser usado em qualquer ocasião, em qualquer encontro. De dia ou madrugada. Na chuva de trovoada ou no calor dos desabrigos eternos.
Eu o invejava. Mal sabia o que era música e Billie Holiday já cantava dentro de mim. Era dado a nuvens escassas, atemporais, enquanto ele, muito mais inteligente, era dado a sabiás, melros e coleros.
Fiquei extasiado na primeira vez que o vi fazer aquilo. Pensei que eu estivesse sonambulando, dormindo ou fosse pura magia. Mas, repetiu-se uma outra vez. E mais outra. E muitas mais. Estávamos num vale verdejante entre árvores de troncos convidativos para subirmos. No alto de uma destas árvores havia um ninho de coleros. Pensei que me faltava coragem para subir até aquele galho fininho só para espiar os ovinhos dos filhotes por vir.
Foi quando vi uma andorinha dar um voo mais baixo e João Luís sem nenhum esforço pegou-a no ar. Olhou-a enternecido, abriu dois dedos para me mostrar por inteiro e devolveu ao ar. A andorinha custou a entender a posse de sua liberdade. Ou devia ter achado a mão de João Luís aconchegante. O fato é que ela ainda ficou por ali alguns preciosos segundos como que querendo me mostrar que era fácil capturá-la. Perguntei como ele havia feito aquilo, enquanto a andorinha agora ganhava o azul do céu. Ele não me respondeu e fiquei com a impressão de algum blefe ou que o passarinho estivesse com uma asa quebrada. Mas não podia, pensei, pelo voo altaneiro que havia nos deixado deslumbrados. E para provar que não havia sido mero acaso, João Luís repetiu o feito com um sabiá da terra que voava a mais de vinte metros do solo. Fiquei estupefato. Pegar passarinho no ar era o grande sonho de todo menino da roça. Mas, a mais de vinte metros de altura era uma façanha que Hércules gostaria de ter feito. Quis chamar Monteiro Lobato, mas não o encontrei.
Estava só com o enigma João Luís e maravilhado em ser de criança que se arregala com tudo aquilo que não entende. E eu não entendia. Não entendia como o céu podia ser tão afeito ao João Luís. Será que ele havia achado uma brecha que trocasse a orfandade de mãe e avó pela possibilidade de ser mais leve do que o ar? E eu era mais pesado que o pensamento, pois eu não podia alcançar como ele conseguia fazer tudo aquilo. E fazia brincando. Talvez fosse por isso. Eu queria fazer a sério. Minhas brincadeiras eram a sério, enquanto ele ria e ria e ria. De noite os pássaros eram sempre mais escassos, mas sua astúcia não. Bastava ter um pouco de lua para que João Luís estivesse fazendo eclipse entre ela e a terra. E descia feliz com um pequeno passarinho entre seus dedos.
Muitos anos depois retornei ao sítio do meu avô. João Luís continuava lá. Ou melhor, aquilo que eu achava que era ele. Vi algumas vezes uma silhueta cruzar muito rápida pelo céu fazendo todas as folhas curvarem-se diante de seu voo. Pelo tamanho do contorno do corpo continuava um menino. Ao contrário de mim. Ele continuava voando pelos horizontes. Ainda intrigado como ele conseguia, perguntei ao Seo Nonô, o velho faz-tudo lá do sítio no que ele me respondeu:
- E o senhor não sabe? Não sabe mesmo o que ele faz para conseguir voar?
Olhando atordoado, respondi negativamente apenas balançando a cabeça de leste a oeste. E, como quem desvenda um grande enigma, disse muito resoluto.
- Ele sempre acredita que está segurando as mãos de sua mãe enquanto voa. É assim que consegue.

9 comentários:

Unknown disse...

Sujeito espertinho esse João Luís...rsrs
Aposto que se ele morasse na cidade, adoraria as brincadeiras que Ella Fizgerald fazia com sua voz...
Lindo texto!
Abraços,
Bruno Portes.

Anônimo disse...

Nossa, maravilhoso. Insólito, sutil e ao mesmo tempo emocionante e emocional. Adorei.
A figura materna sempre provocando as mais diversas reações da mente. Algumas pessoas acham isso inexplicável...O seu conto não explica, exemplifica. E o faz lindamente. Parabéns.

Anne M. Moor disse...

Carlos Eduardo!
A força da mente é algo surpreendente...

Beijão
Anne

Anônimo disse...

Oi Carlos,

Gostei de sua visita. Foi uma surpresa bastante agradável.

Sabe, a minha mãe perdeu a sua mãe (minha avó) quando tinha apenas um ano e meio de idade. E sempre que ela está preocupada, pede ajuda para essa sua mãe, a chamando de mãezinha. Até hoje, quando ela diz que o meu falecido pai conheceu a sua mãe (mãe dela, minha avó), o seu semblante é de uma menininha feliz... E eu, claro, fico curiosa, admirada e feliz por ela... Digo sempre: "- É mesmo...?! E como foi isso...?! Quantos anos tinha o meu pai...?!" Parece que a história é sempre nova para mim, nesse caso...

Beijos,

Tati Lemos disse...

gostei muito do cantinho!

Beijos

Anônimo disse...

Rs... Que inspiração foi aquela, Carlos...?!Rs Achei meio Dr. Spock..., de Jornada nas Estrelas!!Rs Bom, eu gostava...

Vou deixar sempre um café acabado de fazer para lhe receber mais vezes...

Beijos e boa semana para você, contando com o feriado de amanhã,

Silvia King Jeck disse...

Que delicadeza! Fez-me lembrar Manoel de Barros e seus pássaros.
Teu João Luiz descobriu a força do eterno por ter coração aberto aos anjos.

Anônimo disse...

Oi Carlos,

Passei para lhe desejar um bom final de semana...

Beijos,

Anônimo disse...

Oi Carlos,

Pois é, preciso ter mais tempo para observar os encantos de Penedo. Ela toda é bastante acolhedora. Da próxima vez, eu vou procurar esse restaurante que mencionou, Vernissage. E pode aguardar que lhe darei a minha opinião sobre ele. Claro, vou saborear uma truta, já que, sem dúvida, eu adoro esse peixe.

Beijos,