OS
PAIS
Bernardo atravessou a
sala correndo em busca de socorro. Não gritava talvez por falta de ar. Talvez
porque, ainda pequenino, não soubesse usar o tamanho dos seus passos com a
velocidade pretendida. O fato é que não achou ninguém ao redor. Foi até a cozinha
e lá estava Hercília, a antiga empregada que já vira uma geração inteira nascer
e agora acompanhava com gosto o crescimento dos meninos.
- Lila! Lila! Lila!
Gritou mais forte o menino de apenas três anos.
Sem demonstrar espanto,
prevenida pela idade com a gritaria de gralha dos miúdos, a generosa Hercília
resmungou qualquer coisa afetivamente como se dissesse: acalme-se menino. Não
precisa ficar tão afogueado assim. Tudo vai passar. E, como se Bernardo
adivinhasse o pensamento de Lila, gritou batendo as perninhas no chão:
- Jan quebou. Jan
quebou tudo. Vem logo. Vem Lila!
- Quebrou o quê,
menino? Vamos, diga porque estou atrasada preparando o almoço.
- Quebou o quato dele.
Tem sangue! Muito sangue nele! Bernardo,
irmão mais novo de Jean Paul com 13 anos e Lívia, com 8, ainda não conseguia
pronunciar o “erre”. Era o ‘Cebolinha’ da casa embora o caçula nem soubesse de
quem se tratava: o dos quadrinhos ou o tubérculo.
Estavam de férias,
nenhum dos três tinha hora para coisa alguma, mas Hercília gostava de manter a
tradição geracional de servir o almoço pontualmente sempre às 12:30hs. Quando
estavam em aula, JP e Lívia que já estudavam de manhã, almoçavam mais tarde,
por volta de 13:00hs. Bernardo ainda almoçava 11:30h por causa da condução que
o levava à escola. Hercília organizava a casa com precisão suíça como já havia
feito durante muitos anos na casa dos pais de Juliette. A mãe tinha 38 anos,
era uma arquiteta famosa pela sua criatividade e ousadia tanto nos projetos
arrojados quanto na ambientação da casa: o prestigiado design de interiores.
Gostava de misturar coisas simples encontradas em antigas fazendas em demolição
com o pós-moderno criando ambientes que davam um sutil toque de rústico-chic.
De descendência francesa, Juliette Bell-Ambroise, nasceu no Brasil porque sua
mãe que era voluntária na França dos Medecins
sans Frontieres, os médicos-sem-fronteiras. Veio ajudar e dar capacitação
para uma comunidade carente próximo a Crato, no interior do Ceará. Interessava-se
pelo Brasil porque nos anos 30, seu avô viveu aqui como diplomata. Gostava das
histórias que ele contava para sua filha, a Petite
Juju, como era carinhosamente chamada por ele. Apreciava também a
sonoridade da língua e principalmente a música. E foi ficando.
Juliette Bell-Ambroise nasceu
em Recife no dia 13 de junho de 1978, dia de Santo Antônio. Juliette, a
francesinha, era tipicamente uma parisiense descolada. Bolsa a tiracolo,
vestidos multicoloridos, olhos de lápis-lazúli e cabelos de fogo caídos com
suavidade sobre os ombros. Esguia, sardenta e sempre com um sorriso franco em
seus olhos que conquistava com sua simpatia, qualquer um por onde passasse. Era
bom ouvir seu falar recifense-cantado com um quê de sotaque francês oriundo de
sua casa. E foi em Olinda, dançando quadrilha no meio da rua em plena festa de
seus 19 anos, que Juliette encontrou Chico Só no meio da rua, no início da
vida.
Chico era órfão de pai
e mãe. Quando o pequeno Francisco tinha apenas 3 anos, idade atual de Bernardo,
seus pais morreram num trágico naufrágio no Rio São Francisco. Das 82 pessoas a
bordo na embarcação, apenas Chico e mais seis pessoas sobreviveram. Antônio,
seu pai, conseguiu amarrar o menino numa boia e implorar para que o salvassem.
Cumpriu-se o pedido, mas não se evitou de chamá-lo de Chico Só. Chico era
festeiro, adorava cerveja e pinga e dizia que uma era o tira gosto da outra.
Não se sabia bem se a cerveja era o tira-gosto da pinga ou vice-versa, mas talvez
justamente por isso, o fato é que estava sempre alegre. De barba sempre por
fazer, nariz afilado, olhos negros, profundos, cabelos encaracolados e magro,
como se estivesse sempre com fome. Chico tinha 20, estudava jornalismo e, entre
uma cerveja, beijos e passos desequilibrados de frevo, os dois juraram amor
eterno.
Descobriram inúmeras coincidências:
estudavam na mesma universidade em Pernambuco, gostavam das mesmas músicas, da
necessidade imperiosa de olhar as estrelas, buscavam um amor que não se
liquefizesse após o álcool e tinham o mesmo desejo de morar no Rio de Janeiro.
Chico Só, terminou
jornalismo um ano antes de Juliette que tinha ido fazer um curso de design de
interiores em Milão com uma bolsa de estudos que havia recebido. Foram os oito
meses mais longos para os dois. Nunca haviam se separado nem por um único dia.
E, como há 18 anos atrás ainda não havia internet, facebook e WhatsApp,
telefonaram-se o quanto podiam e o dinheiro dava. Não raro as contas explodiam
e permaneciam em angustiante silêncio. Sabiam que o curso era importante para
Juju e como ela mesma era muito determinada, nada a impediria também de o fazer.
Sabia o que queria para sua vida profissional, embora também soubesse desde
cedo que encontrara em Chico um homem para dividir a vida. O sonho de uma vida
a dois divinamente equalizada era a garantia de uma trilha sonora feliz para o
resto da vida. Assim se sonha, assim se vive quando se é jovem, e também se
acorda para a realidade um pouco mais dura da vida.
Hercília tirou o
avental e subiu rapidamente as escadas em direção ao quarto de Jean Paul. Havia
sangue para todo lado. JP estava sentado no chão, branco como cal. Não dizia
uma única palavra. Em sua mão direita um caco de vidro e no esquerdo um corte
na altura do pulso. Lila deu um grito de socorro ao mesmo tempo em que
levantava JP para levá-lo para ao banheiro. Colocou o braço de JP debaixo
d’água na pia e logo viu que a extensão do corte não era tão grande.
- Acalme-se, meu filho.
Vou cuidar de você.
Lila secou
cuidadosamente o ferimento, abriu o armarinho embaixo da pia e lá achou o que
precisava: mercúrio cromo, gaze e esparadrapo. Quem tem criança pequena em casa
sempre tem estas coisas, mas sempre pensando em machucado e não em tentativa de
suicídio, pois era isso que à primeira vista aparentava. Levou JP de novo para
o quarto e só então foi que viu que Lívia estava acocorada no canto da cama
chorando muito.
Era este um drama
cotidiano, ou havia algo mais por detrás dos longos cabelos dourados de Jean
Paul?
- Tá doendo, manico? perguntou
Bernardo muito apreensivo. JP não dizia nada. Talvez envergonhado do que havia
feito, o fato é que se mantinha cabisbaixo ajudado a recolher-se em sua caverna
pela vasta cabeleira que encobria o ato quase fatal e o rubor.
Hercília virou-se para
Lívia e disse com ternura: Lili, preciso cuidar de seu irmão, depois falo
contigo, está bem? Lívia olhou para sua guardiã como quem pergunta o porquê da
vida desistida. Lívia, em seus oito anos começava a sentir que alguma coisa não
ia bem com seu irmão há algum tempo. E recordou-se quando ele se trancou dentro
do quarto no ano passado e lá ficou durante quase o dia inteiro. Quando os pais
resolveram arrombar a porta ele abriu e seu rosto era de estranha e angustiante
calmaria ao contrário de todos na casa. Na época, Lívia durante o ‘dia
infeliz’, como seus pais passaram a chamar aquela data, pensou que ele tinha
perdido a chave, ou estivesse dormindo, ou ainda que seu irmão mais velho
tivesse fugido pela janela dentro de uma nave intergaláctica. Jean Paul aos 13
era viciado em jogos eletrônicos e música clássica. Sem saber o porquê, Jean
Paul adorava Vivaldi, Bach, Mozart e achava a nona sinfonia de Beethoven algo
de outro mundo. Ode to Joy de Beethoven e As Seis Suítes para Violoncelo de
Bach, eram seus temas favoritos. Lívia,
que estava no auge do aprendizado das letras, gostava imensamente de livros e
revistas coloridas próprias para uma menina de 7 anos. Chico Só contava para a
filha algumas aventuras de Monteiro Lobato. Bernardo ainda estava nos blocos de
montar, rabiscar cores nas folhas e algumas vezes experimentá-las nas paredes
do seu quarto e assistir avidamente desenhos na televisão. Bernardo era luz
solar, Jean Paul, crepuscular e Lívia ainda flanava nas nuvens azuis num dia de
outono. Como toda família, havia algumas turbulências, mas nada que beirasse o
ato suicida cometido por Jean Paul nesta manhã de terça-feira. Hercília não
sabia o que fazer e os dois irmãos estavam atônitos. Aliás, neste caso só havia
mais uma coisa a fazer e, urgentemente: ligar para os pais.
Hercília, sempre tão
comedida e de atitudes não intempestivas conseguida através dos anos de
experiência naquela família, estava com a voz abafada, embargada e gaguejante
ao telefone.
- Juliette. Dona Juju.
- O que foi, Lila? Por
que esta voz assim? Mãe sempre percebe e fareja a raposa perto do
galinheiro. Mas desta vez o ferrão vinha
de dentro de onde se esperava tranquilidade e mansidão.
- A senhora precisa
voltar para casa.
- O que foi? Diga! Você
está me assustando, Hercília. Alguma coisa com as crianças? Como uma mãe
consegue? Como ela pode pressentir o mal a rondar-lhe a paz capturada no
exercício diário com os filhos?
Hercília não sabia
mentir. Ao menos quando se tratava da segurança das crianças. Era uma mulher fiel
aos seus princípios e sabia muito bem da importância do lugar que ocupava
naquela família. Era ancestral e hierárquica. Era firme e doce com os pequenos.
Era a segurança para que Juliette e Chico Só saíssem para trabalhar. Cuidou de
Juliette e agora cuidava dos filhos dela. Generosa, cabelos já quase todos
grisalhos e um pouco encurvada pelos dias diante da pia e do fogão, gostava do
que fazia e tinha prazer em vê-los crescer como se fosse seus.
Havia casado muito
nova, mas descobriu em Dermeval o sabor amargo da traição. Ele era um galinha,
dizia furiosa. Mas, depois, sorria vitoriosa e completava: o machinho aprendeu
de uma vez a lição. Ela nunca contou e ninguém nunca ousou perguntar o que ela
havia feito. Porém, o sorriso irônico de vitória indicava uma vingança à altura
da traição. Não teve filhos, mas cuidou de Juliette como se fosse sua e, agora,
cuidava dos filhos da patroa como se também fossem seus. Ao longo da vida teve
muitos namorados. Mas sabe-se que sua grande paixão foi o Val, como ela assim
se referia a ele. Uma mulher não esquece sua grande paixão, costumava dizer. Um
homem que faz uma mulher se sentir verdadeiramente uma mulher, vai ter um lugar
de amor ou ódio em seu coração para sempre. Medéia que o diga.
Quando Hercília
conheceu Dermeval, ele fazia teologia para se tornar pastor da Igreja da Eterna
Salvação. Comunidade evangélica criada pelo pai de Dermeval, o famoso Pastor
Epaminondas. Homem bom, correto, de boa família, Hercília, também temente a
Deus, jamais imaginou que a casa atrás da igreja fosse um reduto em que
Dermeval ‘cuidava’ espiritualmente de suas apóstolas. “Elas precisam de
orientação espiritual”, dizia o safado. Afirmava que a virgindade era um dom
divino e que só “deitaria na cama após o sagrado casamento. Amém?” Hercília,
que era muito fogosa em sua adolescência, a tudo escutava e, com o coração em
brasa esperava ansiosa pelo desfraldar das velas e se lançar no mar dos seus
desejos mais secretos. Val dizia, reinventando a Bíblia, que Adão e Eva foram
expulsos do Paraíso porque comeram do fruto proibido antes do tempo. Hercília,
maravilhada, a tudo ouvia em puro êxtase aquelas sábias palavras que saíam como
mel da boca do homem que ela havia decidido se entregar. Nós somos um em
Cristo, dizia. E achava lindo ele se guardar também para ela. Juntos iriam
descobrir o fogo que já lhe queimava o peito quando ficavam um pouco a sós.
Mas eis que o destino
prega suas peças e um belo dia, a própria mãe de Hercília pediu que sua filha
lhe acompanhasse à casa de oração para buscar o xale que ela havia esquecido no
culto dominical. E, sabendo que a porta da igreja da frente já estava fechada,
passaram por uma pequenina porta lateral, rodearam a pequenina casa de
aconselhamento espiritual quando ouviram umas risadas. Antes que Hercília
falasse alguma coisa, Dona Esmeralda tapou-lhe a boca e fez com o dedo em riste
um sinal de silêncio. Avançaram até uma pequenina janela em basculante que
ficava entre a casa e o muro. E eis que as duas não conseguiram se conter
diante da cena e, como se houvessem combinado, gritaram em uníssono o mesmo
palavrão. Hercília correu para o outro lado e gritava para que Dermeval abrisse
a porta. A vizinhança com o barulho da gritaria foi chegando. Na calçada já
havia uma pequena multidão que não entendia o que estava acontecendo. Eram
pessoas simples que frequentavam a Igreja da Eterna Salvação. - Safado! Safado!
Abre esta porta que eu vou te bater muito seu pilantra. Abre se você for homem!
Do lado de dentro não se ouvia um único ruído. Foi então que alguém resolveu
chamar o pastor. E quando chegou, Rosinha Felícia saiu em disparada lá de
dentro cobrindo o rosto de vergonha. Passou pela furiosa Hercília não sem antes
levar um puxão de cabelo e uns dois tapas que todo mundo aplaudiu. Nem a força
do pastor conteve Hercília que passou por ele antes mesmo que ele dissesse seu
famoso, amém? E o que se ouviu foi o que toda pequena cidade de Brejo da Madre
de Deus, no agreste pernambucano, comentou. A confissão em público durante o
culto no outro domingo, fez com que o perdão divino caísse sobre a desconfiança
do povo. Além de Rosinha Felícia, mas outras três meninas juravam que haviam
sido emprenhadas pelo ‘bondoso’ filho do pastor. O que aconteceu com ele que
ficou “doente” durante mais de três semanas em casa, ninguém soube ou ousou
perguntar. Soube-se apenas que foi logo após uma inesperada visita ao ex-noivo
que este caiu de cama com febre ardente. Ao menos esta era a versão oficial
contada pela boca do próprio pastor.
Foi neste cenário que
Dona Esmeralda pegou a filha e as duas vieram tentar a sorte em Recife e
acabaram encontrando numa feira, Judith, a mãe de Juliette. Encantadas por
nunca terem visto um cabelo louro e uns olhos tão azuis como aqueles, as duas
recém-chegadas do árido agreste, ficaram como que hipnotizadas. Assim surgiu a
amizade entre elas.
Assim também irrompeu
porta adentro Juliette gritando pela Lila.
- O que foi que
aconteceu, Lila? Aonde estão vocês?
Estavam todos no andar
superior da casa no quarto de Jean Paul. Lívia continuava encostada no canto da
cama, Bernardo brincava no chão e JP estava deitado no colo de Hercília que
carinhosamente passava a mão em seus longos cabelos louros. Juliette botou a
mão na boca quando viu a gaze em volta dos punhos de seu primogênito.
- O que foi que você
fez, meu amor? Quem te machucou assim? Não queria acreditar na evidência do
sangue no lençol. Não queria acreditar que seu filho pudesse ter atentado
contra a própria vida. Assim como não quis acreditar quando sua mãe morreu com
uma bala perdida numa comunidade perto da capital. Era a morte em vida naquela
cena. Era uma punhalada em seu próprio coração materno. Não existe ex-filha ou
ex-mãe, pensou com lágrimas no triste azul de seus olhos.
- Ele se machucou sem
querer. Socorreu a aflita Hercília.
- Não foi isso, mãe. E
você sabe. Disse Jean Paul levantando envergonhado os olhos. Escondido sob o
domínio da tristeza, JP sentia que sua opção de vida, que ora se delineava, não
era compreendida por quem ele muito amava: seu pai. Meu pai não gosta de mim.
Sentenciou seco.
- Claro que gosta.
Gosta a maneira dele.
- Você sempre diz isso.
- Digo porque é a
verdade. Ele gosta, só não sabe demonstrar.
- Ah, ele demonstra
sim. Demonstra não deixando meus amigos gays virem aqui.
- Mas tem seus irmãos
menores...
Jean Paul a cortou
bruscamente e saiu do quarto batendo a porta atrás de si. Então Lila contou o
que sabia e Lívia contou a sua versão e Bernardo não sabia contar coisa alguma.
Só ficou com muito medo do sangue escorrendo do ‘baço’ do irmão.
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