Godofredo em teoria
O carteiro carrega nas
costas um mundo de palavras, todas elas, seja em que língua for, o peso é
sempre o mesmo e a tradução é uma só: esperança.
Godofredo era um bom carteiro,
aliás, um homem bom. Tinha duas coisas das quais muito se orgulhava. Uma penca
de filhos e uma penca de cartas que ele distribuía como uma árvore distribui
suas folhas no outono. Deixava cair cada envelope, cada pacote, cada misteriosa
encomenda diretamente nas mãos dos destinatários. Não gostava das caixas de
correios, pois as julgava frias. Pensava em quem havia escrito cada carta e a
saudade do encontro ali depositada. Mãos velhas de tanto capinar, mãos jovens
de tanto se masturbar, mãos trêmulas necessitando se amparar e outras
solitariamente desgarradas precisando se entrelaçar.
Com apenas o segundo grau
completo - o que era exigido por profissão – Godofredo, se não tinha a
instrução necessária para ler muitos livros, sabia da importância das palavras
na vida de cada um. Sabia também que ele era o último elo que faltava na
corrente da memória das distâncias intransponíveis. Via com uma lucidez
espantosa o rumo das vidas percorrerem nas suas costas o fardo do perdão, a
alegria do reencontro, a tristeza de uma eterna despedida, a possibilidade de
um novo emprego, o rito sumário da demissão indesejada, a convocação para uma
assembléia, a mala-direta comercial, a convocação sempre incômoda do dentista,
a carta de amor perfumada e o telegrama aflito do ciúme doentio da paixão:
‘Estou muito mal sem você. Preciso te ver. Urgente’.
Aconteceu certa vez de entregar
mais uma carta para D. Clara, uma mulher dos seus quarenta e poucos anos (Godofredo
não era muito bom em correlacionar a fisionomia com a idade). Na verdade, D.
Clarabóia do Brasil Teixeira. Achava engraçado aquele nome. Uma Clarabóia para
o Brasil. E sorria caminhando, apertando os passos com seus sapatos corroídos
pelo asfalto quente ou pela chuva impiedosa. Sempre andando para chegar a tempo
ao esperado destino. Deveria, segundo seus cálculos, ser a décima terceira
carta. “Número da sorte dona. É a décima terceira carta do Sr. Renato para a
senhora”, disse o encabulado God, que quase nunca puxava assunto com as pessoas
para não parecer intrometido ou descomposturado, conforme ele mesmo gostava de
dizer. Foi então que ele ouviu pela primeira vez a voz que correspondia àquela
destinatária. “Ele só vive em teoria. Promete, promete, mas não cumpre nunca o que
escreve.” Godofredo sorriu agradecido sem saber o que dizer ou o que contrapor
para continuar o assunto. Ajeitou o boné azul com a bandeira do Brasil na
cabeça, arremessou a pesada mochila amarela com o restante das cartas para as
costas, e ficou só com a metade da frase: ‘ele vive em teoria’. É bem verdade
que a gente só ouve o que quer, mas God, por educação e respeito hierárquico,
não quis ouvir o resto. Achou sonoro aquele ‘viver em teoria’ e percebeu que
aquelas palavras traduziam de maneira formidável a vida que ele levava. Se ele
levava cartas, papéis escritos por inúmeras pessoas para tantas outras
inalcançáveis, ele deduziu que também levava a vida em teoria. Sorriu
encabulado, agradeceu a frase que ela parecia ter-lhe destinado por encomenda.
Achou estranho por que em geral ele não era o destinatário, mas o meio caminho,
a ponte-levadiça, o pombo-correio, o fiel mensageiro, o arauto entre a mão por
dizer e o coração por escutar.
Foi a partir deste dia que as
coisas começaram a andar um pouco estranhas para o carteiro. Botou na cabeça
que queria ser uma palavra. Qual? Não importava. Achou tão bonito aquilo de se
levar uma vida em teoria, embora sua interpretação não estivesse lá bem de
acordo com a D. Clarabóia, mas para ele que havia se agarrado como um marisco à
rocha, só a primeira parte da frase deveria ser levada a sério. No fundo, só
aquela vida em teoria importava. Achava assim um sentido que faltava à sua
vida. Era um bom homem, como já disse, mas cumpria o seu destino, como Isaac
diante da adaga na mão impiedosa do pai. Caravaggio que o diga! Aquela frase
havia revelado uma epifania em sua vida que ele iria doravante tratar de
lavrá-la como um bom ourives faz diante do seu tesouro.
Queria ser uma palavra. Já se
disse. Mas, a pergunta insistia. Qual? Não nele, mas em mim. Ele não estava
preocupado com qual palavra, mas simplesmente A palavra. E qualquer que fosse a
palavra ele já ficaria satisfeito, pois estaria se transformando em teoria. Era
fácil, muito simples até. Mais simples do que a simplicidade humilde com a qual
tinha vivido até então: a profissão de carteiro, o cuidado com os inúmeros
filhos – isso sabia fazer bem, jactava-se orgulhoso - da mulher iletrada, mas
mãe zelosa, do culto aos domingos na igreja vizinha da sua casa. Sua mulher ia
sempre ao culto do pastor Antenor Diógenes, mas ele mostrava-se zeloso por
tanta coisa por fazer que nunca quis se ater à demanda divinatória. Até que um
dia, por opção ou osmose, acabou cedendo aos louvores e pulou o muro da
incredulidade.
Mas agora era diferente. E qual
era esta magnífica diferença? É que a escolha era genuinamente dele. Sem
influência dogmática ou ritos impostos. Sentia-se feliz nesta liberdade de
poder escolher. E sem saber muito bem o porquê, esta idéia de querer ser uma
palavra era a coisa mais sublime que poderia fazer na sua vida. Nada poderia
atrapalhá-lo ou mesmo detê-lo. Na verdade, não havia razões explícitas para
tal, mas dentro do seu peito borbulhava uma espécie de comichão ou êxtase como
se estivesse prestes a alcançar o Nirvana. Já fazia muito tempo que não
estudava, mas com algum esforço e pesquisa num caderno de português de um dos
meninos, reencontrou o sentido quase exato para a palavra teoria. Anotou numa folha avulsa que arrancou de um
dos cadernos das crianças: O
substantivo theoría (achou que o filho tinha copiado errado a palavra. Tinha
um agá ali de intrometido, pensou. Precisava mais tarde chamar a atenção do
menino na hora da cópia. Escreveu ao lado da página: corrigir o Aristeu no ditado. Teoria e não theoria.) significa ação de contemplar, olhar,
examinar, especular e também vista ou espetáculo. Também pode ser entendido
como forma de pensar e entender algum fenômeno a partir da observação. Conjunto
sistemático de opiniões, regras ou leis. Escreveu também. Construção imaginária; utopia, sonho, fantasia.
É isto! Exclamou feliz. Utopia, sonho,
fantasia. Viver a vida em teoria é viver a palavra sonhada. Contemplação,
olhar, espetáculo. Mas é tudo isso que eu vivo cotidianamente! Gritou
exultante. Só não sabia que era isso. Vou virar mesmo uma palavra. Cantou
exultante. Uma palavra contemplada, uma palavra-espetáculo, uma palavra olhada.
E passou a se dedicar a cada minuto do seu trabalho em ser uma palavra. A cada
passo que dava queria ser uma palavra difrente: nos primeiros dias quis ser uma
palavra azul, depois uma palavra luz, depois uma palavra jardim, depois uma
palavra surda, depois a palavra vampiro. E teve medo. Mas depois, as palavras
iam-lhe e vinham-lhe numa velocidade espantosa sem que ele pudesse retê-las ou
abandoná-las. Gostava disso, gostava principalmente das palavras que não
compreendia de imediato, mas que depois iam-lhe abrindo os poros assim como as
lágrimas da chuva cavavam sulcos na terra ressequida. O barulho que estas lhe
faziam parecia infernal, mas à medida que as compreendia eram os mais lindos
sons. Foi assim que ouviu pela primeira vez a palavra ‘Celta’ e um som
extremamente melodioso invadiu-lhe o passado, de forma que o atavismo das
experiências esquecidas retornaram como se estivessem adormecidas há séculos. Agora
lhe eram extremamente familiares e ele falava e compreendia uma profusão de
línguas.
Godofredo andava diferente. Quem o olhava
passar percebia que ele estava contínuamente falando sozinho. Andava com
um olhar distante, mas com um inseparável sorriso nos lábios. Foi no final de
uma tarde de verão, num dia de extremo calor, enquanto Godofredo voltava para
casa, que Natanael, o açougueiro, deu o grito: gente! Venham ver! A sombra da
perna do Godofredo transforma-se num A quando ele anda. Vejam só! É quando ele
abre as pernas. Sua sombra é um A. Gritava espantado e surpreso.
Pois bem, se
a primeira letra foi o alfa, antes de se chegar ao ômega, a sombra de Godofredo
denunciava no chão uma infinidade de outras letras, que se juntavam em palavras
para se desfazerem na próxima passada. Algumas crianças corriam divertidas ao
seu lado tentando adivinhar a palavra que ele ia formar. Alguns faziam cantigas
das palavras, os poetas rimavam poesias, os amantes recolhiam entusiasmados
pequenos montículos da palavra paixão, os mal-educados abaixavam-se para pegar
os palavrões e lançar contra o próprio God, que sem se importar continuava seu
caminho coberto por outras palavras que lhe protegiam dos arranhões. Caminhava
enquanto pensava cada vez mais crédulo que elas eram uma parte do seu corpo,
assim como suas mãos eram apenas a continuação dos seus braços. As palavras
continuavam através do seu corpo tornando-o cada vez mais infinito. Definitivo.
A última vez
que viram o Godofredo, se é que ainda se pode dar este nome a ele, já não tinha
mais nada que se assemelhasse a um corpo. Era uma montanha de letras que se
acotovelavam umas por cima das outras, cada uma querendo fazer mais e mais
parte daquele ser. E, se por ventura uma caía ao chão, logo era substituída por
mais duas, dez ou mesmo trinta. A velocidade com que isso ocorria era
espantosa. Parece que agora ele estava virando uma página. Talvez já pudesse
até mesmo ser uma carta de amor ou um livro por fazer...
Carlos
Eduardo Leal
Um comentário:
Adorei!
Interessante pensar no carteiro como alguém que entrega palavras e não apenas um mensageiro. Na leitura de alguns textos aprendi que tudo é palavra, mas quando fui atravessada por isso, ganhei de presente um olhar mais poético.
Essa semana me arrisquei numa mensagem para as professoras da escola onde atuo com a intenção de levá-las a uma reflexão sobre as palavras escolhidas por elas no tratamento com as crianças. Escrevi dando fala a própria palavra, na primeira pessoa. Acho que ficou bom...rs...
:)
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