Temor e Terror no Mundo Globalizado - Sobre a Banalidade do
Mal
Carlos Eduardo Leal
Deixai toda esperança,
ó vós que entrais
Dante
- Inferno. Canto III
De que temos medo? De nosso corpo.
J. Lacan - A Terceira
A entrada no mundo não é sem
conseqüências. Parafraseando o poeta, se aquilo que herdamos de nossos pais,
devemos conquistar para fazê-lo nosso, a maior herança em questão é a
linguagem. E a entrada na linguagem, que é feita através de um significante que
já está à espera, é da ordem do traumático. “O Espírito Santo é a entrada do
significante no mundo”, ironiza Lacan.[1] O Mal, diz Mateus, o apóstolo, não é o que
entra em nossa boca mas o que sai dela. Então, é do Outro que vem o mal? Esta,
me parece que seja uma posição reivindicatória, ou seja, dizer que é do Outro
que vem o mal e não nos responsabilizarmos por aquilo que fazemos. O que é o
mal em sua banalidade, o mal entendido e o mal-estar do sujeito no mundo? Qual
é a posição ética do sujeito em relação ao seu desejo?
Que mundo é este que
herdamos hoje e que pretendemos deixar para nossos descendentes?
Na ópera Orfeu e Eurídice,
Esperança só irá acompanhar Orfeu até a entrada do Hades. Lá, diz o libreto
escrito por Monteverdi, ele encontrará a célebre frase de Dante: ‘Deixai toda a
Esperança, ó vós que entrais.’ Orfeu terá que ir por si próprio, ou melhor, na
certeza que seu canto de amor irá remover todos os entraves do caminho. A
Esperança não entra no inferno, assim como também não entra no céu, porque o
que mais se poderia esperar para os cristãos se já encontraram Deus? A
esperança está conectada aqui na terra ao campo da promessa. No inferno ela não
entra e no céu não há mais o que esperar porque já se encontrou com o Deus que
se esperava encontrar. Sobra para a esperança aqui na terra a dimensão de estar
fadada a ser um encontro faltoso. O que faz com que surja na clínica a dimensão
da dívida, do ressentimento e da culpa.
Por sua vez, Dante sabe que
para encontrar Beatriz ele deverá descer até ao inferno enfrentando toda a
sorte de transgressões: ‘incontinência, violência e fraude’[2]
que tentarão impedi-lo de seguir adiante até encontrar sua amada. Para isso ele
contará coma ajuda do poeta latino Virgílio, que será seu guia, seu senhor e
seu Mestre e irá desde então representar sempre a Razão humana, que é, na
concepção aristotélica adotada por Dante, condição da Virtude.
Então, é no plano da
condição humana que a esperança acaba por se desfazer diante das promessas não
cumpridas. E hoje sabemos através do campo da ética, o quanto a covardia moral
tem tornado as relações humanas em verdadeiras banalizações do mal[3].
Foi assim que Otto Adolf Eichmann,
capturado pelo Mossad, a polícia secreta de Israel, num subúrbio de Buenos
Aires na noite de 11 de maio de 1960, “foi levado a julgamento na corte
distrital de Jerusalém em 11 de abril de 1961, objeto de cinco acusações: entre
outros, cometera crimes contra o povo judeu. (...) A cada uma das acusações,
Eichmann declarou-se: ’Inocente, no sentido da acusação’.”[4]
“Em que sentido então”, pergunta-se Hannah Arendt, ele se considerava culpado?
Na longa inquirição do acusado, nem a defesa, nem a acusação, nem nenhum dos
três juízes se deu ao trabalho de lhe fazer essa pergunta óbvia. (...) ‘Com o
assassinato dos judeus não tive nada a ver. Nunca matei um judeu, dizia
Eichmann, nem um não-judeu - nunca matei um ser humano’. Segundo Hannah Arendt,
só havia provas de que ele podia ser acusado de “ajudar e assistir” à
aniquilação dos judeus...”[5]
Ainda segundo ela, a defesa não prestou a menor atenção à teoria do próprio
Eichmann, mas a acusação perdeu muito tempo num mal-sucedido esforço para
provar que Eichmann, pelo menos uma vez, matara com as próprias mãos um menino
judeu na Hungria. “Será”, pergunta
Arendt, “que ele teria se declarado culpado se fosse acusado de cumplicidade no
assassinato?”[6]
Aí está para mim a questão
principal que gostaria de debater: até que ponto estamos sendo cúmplices em
relação ao terror que se instala no mundo? Qual a nossa parcela de
responsabilidade sobre a banalidade do mal no mundo moderno? Será que por não
matarmos com nossas próprias mãos uma pessoa poderemos ser cúmplices? No dia a
dia, será que por muitas e muitas vezes não acabamos sendo cúmplices de
pequenos delitos da vida cotidiana? E será que estas micro relações possuem
alguma ligação com o macro social? Em que escala métrica de valores estamos
vivendo para pensarmos ou talvez até nos iludirmos, com o fato de que a nossa
não participação direta em algo não tem nada a ver com o que acontece, por
exemplo, atualmente no Iraque, no longo conflito entre judeus e suas parcas
fronteiras, ou na África aidética, ou mesmo ali ao sopé das Senzalas chamadas
de “Juramento”, “Mineira”, “Macacos”,
“Vidigal”, “Rocinha”, “Alemão” e tantos outros? Onde estamos no conforto das
nossas Casas Grandes entrincheirados atrás das enormes cercas elétricas e econômicas?
Aqui não há segregação étnica como na Bósnia? O que é o Brasil hoje? Quem somos
nós e o que queremos quando queremos nos reunir para falar dos nossos medos? Se
o que temos medo é do nosso corpo, como nos diz Lacan, é porque ‘concentrada
está nossa alma’ na irredutível dor do corpo em sofrimento.
Qual é a política do medo?
Lacan cita Renan para dizer que a
estupidez humana dá uma idéia do infinito.[7] A política do terror é a destruição da
palavra, do diálogo. A violência é o que destrói a palavra. Hannah Arendt, em
seu livro Sobre a Violência, enuncia a seguinte fórmula que nos parece muito
apropriada: ela diz que “a forma extrema de poder é o Todos contra Um, a forma
extrema da violência é o Um contra Todos”.[8]
Ela faz uma distinção importante entre o poder e violência. Para Arendt, a violência
tem sido incrementada pela revolução tecnológica.[9]
Ela diz neste livro que o poder é legítimo. O poder é sempre poder outorgado e
reconhecido pelos outros, enquanto que a violência está no campo da impostura
perversa e da usurpação. Para ela, o tema político mais crucial é, e sempre
foi, a questão sobre “quem domina quem.[10]
Poder, vigor, força, autoridade e violência seriam simples palavras para
indicar os meios em função dos quais o
homem domina o homem.”[11]
Não dá para não nos remetermos aqui ao dizer de Freud em seu texto Mal-Estar na Civilização, sobre de onde
provém nosso sofrimento. Ele diz que vem de três direções: do poder superior da
natureza, da fragilidade de nossos corpos - do
que temos medo? de nosso corpo - e do domínio de um homem sobre o outro. E
cita Plauto: Homo homini lupus.[12]
O homem é o lobo do homem. E mais
adiante ao falar sobre o ‘narcisismo da pequenas diferenças’ diz que “não é
fácil aos homens abandonar a satisfação para a agressão”.[13]
Se tentamos pensar o social,
não devemos esquecer uma crítica do próprio Lacan de que a psicanálise não pode
ser uma espécie de remédio social. [14]
Crítica que permanece atual, mas que temos que nos aparelharmos com as
implicações do nosso tempo para repensarmos as categorias que nos estão sendo impostas
pela dimensão globalizadora do terror. É, porque há aí um gozo, um gozo a mais
que é pura destrutividade. A violência implementada toma a forma do
desconhecido, que não é mais só da ordem do unheimlich
freudiano. A impotência gera a violência.[15]
O objeto do terror já não é
mais o objeto do fetiche nem mais o objeto da fobia. O medo de Hans jamais será
igual ao terror dos tempos modernos. O medo de Hans é localizável e funciona
como um apelo ao pai. Mas, a quem apelar hoje em dia? Qual instância institucional
é apelável quando as fronteiras deixaram de ter alfândegas - os exemplos vão da
internet à invasão dos EUA sobre o Iraque contrariando a resolução da ONU - ou
quando as fronteiras tornaram-se apenas linhas imaginárias tais como se
recortou antigamente a Terra entre meridianos e paralelos.
O que alguns filósofos
políticos, tais como Habermas e Derrida[16]
têm dito que o que se deve fazer é criar um organismo internacional que tenha a
força de Lei que a ONU e o Tribunal Internacional de Haia já não possuem mais.
O objeto do terror adquire
um certo ar topológico já que ele está dentro desde fora, isto é, o objeto do
terror pode ilusoriamente aparecer como i(a) disfarçado na multidão, quando na
realidade ele é uma célula do Hamas, ou da Al Qaeda pronto para explodir tudo à
sua volta. Portanto, o objeto do terror já não pertence mais à categoria do unheimlich por maior angústia que esta
inquietante estranheza possa nos causar. Parece que ele nos leva à condição do
que tenho chamado de certeza instável,
que é uma categoria de eventos não lineares e que estão abertos à dimensão do
evento, como nos fala Badiou, ou do Espanto (Thaumatdzein) tal como nos fala Hannah Arendt retomando a dimensão
platônica em seu olhar sobre o mundo. Esta categoria, pode e creio que deva ser
pensada como algo que faz uma desestabilização das garantias Imaginárias,
produzindo quebras no Simbólico e fazendo a irrupção do Real.[17]
Esta certeza instável é produto dos nossos dias, produto da volatilidade das
relações e do trabalho, produto da fragilidade do futuro e produto do
desenraizamento do passado. Creio que o exercício do nosso pensamento e das
nossas ações devam se mover na lacuna entre o passado e o futuro para que
possamos encontrar saídas éticas e não tão sombrias para os dias atuais.
As incertezas e as
especulações sobre como quando e aonde acontecerá novamente o ato terrorista,
tudo isso trai a incapacidade que as pessoas possuem de pelo menos determinar a
magnitude do perigo. Assim, o medo a respeito da infinitização da banalidade do
mal do homem sobre ele mesmo, acaba por produzir uma ferida constantemente
aberta diante do futuro, e não só do passado.
Para concluir, gostaria de
retomar o conceito de frustração no seminário Livro 4, A Relação de Objeto: “A
frustração é, por excelência, o domínio da reivindicação. Ela diz respeito a
algo que é desejado e não obtido, mas, que é desejado sem nenhuma referência a
qualquer possibilidade de satisfação nem de aquisição. A frustração é por si
mesma o domínio das exigências
desenfreadas e sem lei.”[18]
Ora, a nossa sociedade está
perversamente reorientada para um gozo desenfreado compulsivo onde impera o
domínio das exigências desenfreadas e sem lei. Em R.S.I. Lacan dirá que o gozo
é aquilo que não se submete a Lei. Parece que o terror é desta ordem, isto é,
um gozo fundamentalista do Outro que massacra adultos e crianças inocentes como
recentemente em Beslam na escola da Rússia.
Será que para nos guiarmos
pelas veredas da terra teremos que encontrar um poeta, tal e qual Dante lançou
mão de Virgílio, ou será que nós, analistas, estamos numa posição ética tal que
possamos em nossas práticas clínicas, em nossos depoimentos, ou na psicanálise
aplicada, encontrar meios que possam permitir a outros a atravessarem a fúria
diabólica do terror?
Conclamo a cada analista,
que cotidianamente, se ponha a responder estas questões que há muito foram
propostas para Lacan em Televisão: Que
posso saber? Que devo fazer? Que é-me permitido esperar?
[1] Lacan,J.
O significante e o Espírito Santo, in, A Relação de Objeto, livro 4. Jorge
Zahar Editor. RJ. 1995.
[2]
Alighieri,D. Inferno, Canto I, in, A Divina Comédia. Editora 34, SP. p.25
[3] Arendt,
H. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Cia das Letras.
SP. 2000.
[4] ibid. p.
32
[5] ibid. p.
33
[6] ibid. p.
35
[7] Lacan,
J. ibid. p. 24.
[8] Arendt,
H. Sobre a Violência. Relume Dumará. RJ. 1994. p. 35.
[9] Neste
sentido é interessante citarmos Jacques Derrida em sua entrevista logo após ao
atentado ao WTC em 11 de setembro de 2001, quando ele diz que “a relação entre
Terra, terra, território e terror mudou, e é necessário saber que isso ocorreu
por causa do conhecimento, isto é, por causa da tecnociência. É a tecnociência
que empalidece a distinção entre guerra e terrorismo. Borradori,G. Filosofia em Tempo de Terror:
Diálogos com Habermas e Derrida. J. Z. E. RJ. 2004. p. 111.
[10] ibid.
p. 36.
[11] ibid.
p. 36. grifo nosso.
[12] Freud,
S. O Mal-Estar na Civilização. [1930(1929)]. ESB. Imago Editora. RJ. Vol XXI.
p. 133.
[13] ibid. p. 136.
[14] Lacan, J ibid.. p. 17.
[15] “O
terror global que culminou com o ataque de 11 de setembro carrega os traços
anarquistas da revolta impotente
dirigida contra um inimigo que não pode ser derrotado em qualquer sentido
pragmático. O único efeito possível que ele pode exercer é chocar e alarmar o
governo e a população”. Borradori,G.
Filosofia em Tempo de Terror: Diálogos com Habermas e Derrida. J.Z. E. RJ.
2004. p. 46. Para isto, ver também a
citação que Eric Laurent faz sobre Habermas como um filósofo político que pensa
sobre a insurreição como modo de ir contra certos tipos de poder e o horror.
Laurent cita três horrores nomeados por Lacan: “o horror da verdade, o horror
do ato, e o horror de saber.” , in, A
Escola e o Pior, Opção Lacaniana n. 7e8. 1993.
[16]
Borradori, G. Filosofia em Tempo de Terror: Diálogos com Habermas e Derrida.
Jorge Zahar Editor. RJ. 2004.
[17]
“Tecnicamente falando, uma vez que nossas sociedades complexas são altamente
suscetíveis a interferências e acidentes, elas certamente oferecem as
oportunidades ideais para a pronta interrupção das atividades normais. (...)O
terrorismo global é extremo, tanto em sua falta de metas realistas como na
exploração da vulnerabilidade dos sistemas complexos.” Um diálogo com Jürgen
Habermas. ibid. p.46.
[18]
Lacan,J. ibid.p. 36.
Um comentário:
Ótimo artigo! abraços
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