A
sombra de Eleonora
No centro da sala persistia uma sombra: inquieta, deselegante. O
vazio da ausência da palavra denotava a angústia por vir. Um carro passou na
rua. Não era um carro. Fora um sonho que estava tendo. A casa é erma e os
pássaros lá fora já estavam a dormir. A distância entre a última palavra e a
próxima era ensurdecedora. O Concerto de Brandemburgo trazia a atmosfera
barroca de Bach para o interior da sombra. Tudo era um novelo em redemoinho.
Tudo era o peso atávico com que se tinha construído
aquela vida.
Eleonora já havia
pressentido esta cena milhares de outras vezes em sua história. Jogou os cabelos
para trás em desalinho consigo mesma. Dobrou seu corpo sobre seu ventre e
deixou-se lentamente cair no chão. Procurou a mão forte que durante tantos anos
lhe fizera companhia. Tateou procurando seus óculos, mas lembrou-se da
escuridão que fazia em seu interior. Quis enxergar uma dúvida, mas a verdade
fora ao seu encontro como um clarão de uma manhã de verão.
Não havia jeito de tamponar
aquela verdade. Estava só e era com isto que contava. Ou melhor, descontava-se.
Procurou saber da lágrima de sal que havia petrificado em seu vestido. Lambeu-a
como um animal lambe o sangue da cria recém-nascida. Lambeu suas entranhas. Lambeu
a si própria e provou do gosto amargo da existência que habitava fora de seu
útero. Dera a luz, mas não era mãe de nada. Dera a luz, mas era um vazio que
chorava por um colo inexistente. Dera a luz, mas a sombra encobria qualquer
possibilidade de ser.
Eleonora arriscou-se.
Mergulhou sobre si mesma e deu um passo corajoso em direção ao seu eu mais
sombrio. Precisava lamber o ventre seco. Precisava usurpar de si própria a vida
que havia deixado escapar. Deu mais um passo. E mais outro. Então, pela primeira
vez em todos aqueles anos, ela pode verdadeiramente abrir os olhos e ver o que
não poderia mais esquecer.
Um comentário:
que gostoso de ler, gostei muito, te sigo.
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