(...)
Mas meu pai não era apenas um restaurador. Era também
um arqueólogo aventureiro capaz de percorrer os quatro cantos do Brasil ou do
mundo para encontrar uma única peça do quebra-cabeças perdido. Tinha a certeza de que, com isso, conseguia legitimamente
dar vida nova à imagem destroçada.
Ao refazer imagens, dizia que não estava só restaurando
uma parte perdida da história da humanidade, mas religando-a aos céus. Ele
mesmo dizia que restaurar era proporcionar a justa harmonia que havia sido
perdida quando o homem e sua mulher deixaram o Paraíso.
Para mim era um Leonardo
da Vinci, obcecado pela perfeição. Mas,
se restaurar era como achar restos
humanos que haviam sido deixados para trás quando o homem e a mulher saíram do
paraíso como se, assim (re)fazendo, ele fosse ainda capaz de impedir a queda do
primeiro homem, então ele queria ser Deus? Ilusão? Fantasia religiosa ou crença
nas potestades divinas e na sua severa missão aqui na terra?
Enfim, restaurar era contar a mesma história através
de outras vozes, outros cânones ou reencontrar o Jardim das Delícias: delírio
que contaminava a todos naquela casa.
Pegadas, rastros, pequenos sinais de uma antiga
existência. Arqueologia das formas e das sensações perdidas. Escavações e
atavismos numa colônia de puzzles
históricos. Traços humanos, registros de uma época onde a delicadeza das formas
inaugurava as vias sacras ou os promontórios da fé. Restaurar era ressuscitar o
artista através da sua obra. Recriar o Criador no exato instante de seu Fiat lux. Restaurar era resgatar a luz,
fazê-la jorrar na escuridão do despedaçamento.
Quantas e tantas vezes nos sentimos assim. Despedaçados,
jogados no buraco negro da nossa memória perdida, à espera de uma bóia que nos
salve do afogamento sem guelras. Ar, ar, ar. Tudo que sempre buscamos foi um
pouco de ar que fizesse re-ligar nossos pedaços desaparecidos nas frestas da
nossa rarefeita história.
Mas minha família sofria do pior mal que uma gentalha
poderia sofrer. E naufragávamos num dilúvio imoral sem arca para nos salvar.
E, por acaso, muitas vezes não temos a transtornada
sensação de que nossa família é feita por milhões de braços e abraços
despedaçados que precisam ser restaurados? São milhares de ex-votos, pedaços de
corpos onde os pedidos estão perdidos entre letrinhas miúdas, papéis
amarelados, amargurados pelo esquecimento de quem espera pelo reconhecimento.
Re-conhecer é também outra maneira de restaurar. O problema é que nossa família
precisava de constantes restaurações, mas ninguém enxergava isso. Ou todos eram
míopes ou se faziam de cegos para não perceberem o mal que lhes rondava. (...)
4 comentários:
Perfeito.
Feliz por você estar escrevendo um novo livro. Arqueologia da família. Boa Viagem!
Ex-Cel-ente!
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