HERANÇAS
Qual é a
maior herança que um pai pode deixar para seu filho? Ou, pensando de outra
maneira: o que um pai pode transmitir ao seu filho? Qual é a lição de uma vida?
O livro A maleta do meu pai, de Orhan Pamuk (Companhia das Letras), ganhador do Nobel de literatura de 2007, tenta resgatar a importância daquilo que um pai delega ao filho. Na verdade, este texto é o discurso de O. Pamuk na cerimônia de entrega do prêmio Nobel de Literatura do ano passado.
O livro A maleta do meu pai, de Orhan Pamuk (Companhia das Letras), ganhador do Nobel de literatura de 2007, tenta resgatar a importância daquilo que um pai delega ao filho. Na verdade, este texto é o discurso de O. Pamuk na cerimônia de entrega do prêmio Nobel de Literatura do ano passado.
É
inevitável lembrar de Quase Memória
(Objetiva), de Carlos Heitor Cony, que
também fala de uma relação entre pai e filho. O protagonista após receber um
embrulho misterioso, passa a identificá-lo como tendo sido enviado pelo seu pai
após a morte deste. A partir daí, Cony explora um delicado território que
oscila entre a ficção e a memória a partir das reminiscências do pai morto. Os
sentimentos contraditórios entre pai e filho, as amizades, as alegrias, as
tristezas e os anos de convívio e aprendizagem parecem estar contidos dentro
daquele embrulho preso por um barbante, com o qual só seu pai poderia ter dado
aquele nó. Nó que os enlaça num afeto de cumplicidade e saudade reinventada após
um período de adormecimento.
"Aquela
maleta", continua Pamuk, "era uma velha amiga, uma poderosa lembrança
dos meus tempos de menino, do meu passado, mas agora eu nem conseguia encostar
nela. Por quê? Sem dúvida por causa do peso misterioso do seu conteúdo. Agora
vou falar do que esse peso significa. Ela tem o significado daquilo que toda
pessoa cria quando fecha a porta e se refugia num canto, diante de uma mesa,
para exprimir os seus pensamentos – o significado da literatura." A partir
daí Orhan Pamuk irá descrever seu medo e encanto de encontrar um pai totalmente
desconhecido dentro daquela maleta. Um pai que por algum motivo pudesse ter
sido um grande escritor sem ter publicado um único livro; apenas suas
anotações. Mas, "a primeira coisa que me mantinha distante do conteúdo da
maleta era, claro, o medo de não gostar do que pudesse ler. Como meu pai sabia
disso, tomara a precaução de agir como se não desse muita importância ao seu
conteúdo. Depois de 25 anos trabalhando como escritor, isso me incomodou. Mas
não quis me irritar com meu pai por ele deixar de levar a literatura a sério...
Meu verdadeiro medo, a coisa crucial que eu não queria aprender ou descobrir,
era a possibilidade de que ele fosse um bom escritor. Era esse o medo que me
impedia de abrir a maleta." Para Pamuk, um escritor é uma pessoa que passa
anos tentando descobrir com paciência um segundo ser dentro de si.
"Escrever é transformar em palavras esse olhar para dentro, estudar o
mundo para o qual a pessoa se transporta quando se recolhe em si mesma – com
paciência, obstinação e alegria."
O medo de
encontrar um bom escritor no pai é porque ele sabia que seu pai amava a vida, a
liberdade, os amigos e muita gente ao seu redor. E um escritor é uma pessoa que
"fecha a porta e se recolhe com seus livros." Este é o belíssimo
contraponto deste texto: seu pai em suas viagens para fora da Turquia sempre
lhe trouxe livros de presente. Sempre recusou a mostrar-lhe um "mundo
dotado de um centro". Esse olhar que se costura por fora da margem dos
limites de seu país, era também um olhar construído a partir de alguém que
sabia que a literatura abria outros caminhos que não só aqueles que rivalizavam
o ocidente com o oriente. Assim, Pamuk aprendeu que viver era participar da
vida real modificando-a através da escrita, pois tal como diz Mallarmé, "tudo
no mundo existe para ser posto num livro".
Reconheço
em Orhan Pamuk um processo muito semelhante àquele que encontro na psicanálise.
Aliás, este mérito é do próprio Freud que dizia que os poetas e romancistas
sabem muito melhor descrever os processos psíquicos do que os próprios
analistas. "Para mim", diz Pamuk, "ser escritor é reconhecer as
feridas secretas que carregamos, tão secretas que mal temos consciência delas,
e explorá-las com paciência, conhecê-las melhor, iluminá-las, apoderar-nos
dessas dores e feridas e transformá-las em parte consciente do nosso espírito e
da literatura." Isso é exatamente o percurso de uma análise: explorar com
paciência as feridas secretas – do inconsciente – para que se possa iluminá-las
e dar-lhes outro destino. "O escritor fala de coisas que todos sabem, mas
não sabem que sabem." Não poderia haver definição melhor do que é o
estatuto do inconsciente: um saber não sabido. Seria isso uma literanálise?
Creio que seu pai não poderia ter lhe deixado uma herança melhor do que esta. A
transmissão de um mundo a ser continuamente reinventado através da ficção.
Carlos
Eduardo Leal
Psicanalista
e escritor
Para você
que gosta ler ouvindo música, não perca o cd da Stacey Kent: "The boy next
door"
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