Congresso nacional, Carlos Bracher (2006)
Brasília, capital satélite.
Cidade bipolar entre a 'vontade criadora' e o subdesenvolvimento.
O que me leva a escrever este texto foi um vídeo circulado na internet.
Nele aparece o Eduardo Cunha desembarcando no Aeroporto Santos Dumont. No
filmete feito com celular, surge primeiro pessoas xingando o Cunha e, logo
depois, uma senhora vem apressada perguntar se ele era o Cunha. Ao ser
confirmada sua hipótese, ela se arremete contra ele (no áudio não dá para ouvir
o que ela fala), mas logo em seguida ele cai de tapas nele. Todos riem com
escárnio da cena. Fim do filme.
A humanidade é assim desde seus
primórdios:
1) Quer fazer justiça com as
próprias mãos.
2) Possui seus momentos de
barbarismos.
3) Tem arroubos que se não
controlados, passam à passagem ao ato na forma extrema de linchamento.
4) A turba tem o poder de
sentimento invencível (Gustave Le Bon, Psicologia das Multidões, 1923,
Francisco Alves), de onde Freud extraiu elementos para o seu Psicologia das
Massas e Análise do Ego. O indivíduo na multidão é anônimo, o que lhe dá o
sentimento de uma força hercúlea.
5) A intolerância é crescente
quando a população se sente injustiçada, ou ver fazerem alguma retaliação e/ou
discriminação contra alguém mais fraco: criança, comunidades LGBT, negros,
agressões contra a mulher, molestação sexual, pedofilia, etc.
6) O sentimento de desamparo
diante de catástrofes naturais, crises financeiras e sociais (desemprego,
analfabetismo, corrupções, peculato-roubo de dinheiro público, etc) podem levar
a multidão à um sentimento de solidariedade (catástrofes naturais) e vingança (crises de desemprego...) para que
a justiça seja feita pelas próprias mãos. Em nossas cidades, a nefasta milícia
assumiu este papel que outrora era do Esquadrão da Morte (Scuderie LeCocq).
7) A percepção da brutal
desigualdade produz dois sentimentos caros ao ser humano: inveja e ciúme.
Destes surgem todo um corolário assertivo de todo ódioenamorado que até então
tenha sido sentido, como se inveja e ciúme (e seus atos subsequentes) fossem
justificados (de novo os paladinos da justiça: leia-se, justiceiros) pela
bipolar desigualdade.
Então, pergunto-me o que é Brasília? E busco uma resposta em Milton
Santos. A expressão "Vontade criadora (de JK) e o subdesenvolvimento"
é do geógrafo em seu livro "A Cidade nos Países Subdesenvolvidos
".SANTOS, Milton (1965). A Cidade
nos Países Subdesenvolvidos. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira.
"Cidade “artificial” surgiu
de uma vontade criadora que haveria de se manifestar na prévia definição de
diversos aspectos materiais e formais. A intenção que presidiu à sua criação é
que orientaria aquela vontade criadora. Brasília já nascia com um destino
predeterminado: ser “a cabeça do Brasil”, o “cérebro das mais altas decisões
nacionais”. Capital administrativa e canteiro de obras, essas duas realidades -
a realidade planejada e a realidade condição para a primeira - vão contribuir
para lhe dar uma fisionomia, um ritmo de vida, um conteúdo. (...) O
subdesenvolvimento comparece como um elemento de oposição,
diante daquela “vontade
criadora”, modificando os resultados esperados. Reduz as possibilidades de uma
rápida construção da cidade; refletindo-se sobre as atividades principais,
explica as demais funções, o quadro, a fisionomia atual, a estrutura e os
problemas; e é o responsável pela “dualidade” de Brasília, que tanto a aproxima
das demais capitais latino-americanas. Vontade criadora e subdesenvolvimento do
país são, pois, os termos que se afrontam na realização efetiva de Brasília. É
da sua confrontação que a cidade retira os elementos de sua definição atual”.
É esta bipolaridade descrita tão bem por Milton Santos que baseio meu
argumento de Brasília como uma capital planejada, mas que, tal como suas
cidades satélites (Taguatinga, Ceilândia, Samambaia), tornou-se, ela própria,
uma capital satélite do Brasil. Isolada em seu planejamento de vontade criadora
num universo subdesenvolvido. A capital grita no 'ao-longe' (expressão cara à
Guimarães Rosa), a excomunhão do povo que para lá chegar produz uma espécie de romaria
como se estivesse indo à um santuário tupiniquim. Louve-se o belíssimo projeto
arquitetônico de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, mas o fato político é desastroso
e não há volta como atesta o próprio Milton Santos. Para lá refugiaram-se os
políticos. É uma cidade não sustentável e que, por isso, precisa arrecadar de
todo o país as condições de sua sustentabilidade. Aí está o cerne do problema
que constato. Como os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário estão
afastados geograficamente do povo, eles quase tornam-se invisíveis, é preciso
criar mecanismos regulatórios paralelos ao governo quando o próprio TCU deveria
ser responsável, como o Transparência Brasil entre outros. Não que a corrupção
e os desmandos não aconteçam em outros países, mas no Brasil esta dicotomia
ficou gritante. Até nos nomes das casas: mansões do Lago Paranoá, Mansões dos
Ministros, a chácara do Chefe da Casa Civil, do Presidente do Congresso, como
testemunhamos a do Eduardo Cunha em processo recente. A fragilidade destas
instituições, sua clara capilaridade e mais o afastamento torna o
Homo-Politicus quase um mito. Entre a adoração e o desprezo é difícil constatar
sua existência.
Por isso, foi preciso a
senhorinha cair de tapas em cima do Eduardo Cunha para provar sua consistência
Imaginária, porque no Simbólico de nossas palavras ele já existia há muito
tempo. E no real de nossas angústias também.
Carlos Eduardo Leal é psicanalista e escritor
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