Salvador Dali
Há partes de mim impressionistas, outras cubistas, outras renascentistas que ainda não nasceram. Tudo que é não-eu resvala-se sobre tintas e pincéis em cores surrealistas ou nunca usadas. Há outras partes de mim parnasianas, barrocas, modernistas e quase-contemporâneas. Desprezo as palavras que me completam, os livros que me orientam, os autores que me autoajudam. Habito o inconcluso e é a partir deste mal-estar que caminho por entre Vivaldi, Mozart, Bach, Beethoven, Mahler e Wagner. De Toscanini roubei o virtuosismo de sua batuta, de Van Gogh a palheta, de Salvador Dali seu desvario, de Artaud seu teatro, de Samuel Beckett seus silêncios, de Freud o inconsciente, de Lacan seu olhar de futuro-anterior, de Clarice seus enigmas, de Guimarães suas veredas... Do oceano recebo o murmurar das ondas, das gaivotas o voo curvo em arco, das borboletas o mimetismo com os troncos das árvores, da hiena o riso de escárnio, da coruja o gosto pelo noturno, dos rios a descida vertiginosa. Em dias assim, os lagos me aborrecem com sua calmaria, a falta de vento clama tempestades, as caixas de som por um jazz pulsante, os ouvidos pelo teu nome exultado em meu coração.
Há outras partes de mim que bem sei, gostariam de estar presentes no dia de hoje. Mas, infelizmente, em dias assim, pressentindo o pior, elas me abandonam e, sinceramente, não sei quando retornam. Portanto, nada posso dizer ou saber sobre elas. Fico repleto de espaços silenciosos e ocos como um bambu. Não me criei para flautas, mas para violoncelos. A gravidade melancólica do instrumento não faz nenhuma fronteira ao meu corpo. Eu e ele somos um só instrumento. As Seis Suítes para Violoncelo de Bach fazem parte das minhas entranhas. Sim, sou composto por acordes de um Boccherini ou Rostropovich para as notas graves e outras que compõe minha Saraband.
Acordei com o pescoço alongado de um Modigliani, a dissonância da guitarra de Hendrix, os olhos arredondados de um mangá e os dedos compridos de Glenn Gould. A sedução de Frida Kahlo por Diogo Rivera tempera os outros eus-pessoanos que habitam partes invisíveis do meu corpo. Para uma metamorfose kafkiana nada falta. Talvez só o empuxo ao livro. Cego-me com as serpentes cabeça da Medusa e faço com meus heterônimos a assinatura possível para corromper o dia.
Sim, corrompo palavras, destrato outras, defloro outras tantas ainda virgens de mim e, assim, reinvento o dia.
O que sobrar de minhas horas vadias vou debulhar para o amanhã.