sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Brasília, capital satélite. Cidade bipolar entre a 'vontade criadora' e o subdesenvolvimento.

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Congresso nacional, Carlos Bracher (2006)

Brasília, capital satélite. Cidade bipolar entre a 'vontade criadora' e o subdesenvolvimento.

O que me leva a escrever este texto foi um vídeo circulado na internet. Nele aparece o Eduardo Cunha desembarcando no Aeroporto Santos Dumont. No filmete feito com celular, surge primeiro pessoas xingando o Cunha e, logo depois, uma senhora vem apressada perguntar se ele era o Cunha. Ao ser confirmada sua hipótese, ela se arremete contra ele (no áudio não dá para ouvir o que ela fala), mas logo em seguida ele cai de tapas nele. Todos riem com escárnio da cena. Fim do filme.
A humanidade é assim desde seus primórdios:
1) Quer fazer justiça com as próprias mãos.
2) Possui seus momentos de barbarismos.
3) Tem arroubos que se não controlados, passam à passagem ao ato na forma extrema de linchamento.
4) A turba tem o poder de sentimento invencível (Gustave Le Bon, Psicologia das Multidões, 1923, Francisco Alves), de onde Freud extraiu elementos para o seu Psicologia das Massas e Análise do Ego. O indivíduo na multidão é anônimo, o que lhe dá o sentimento de uma força hercúlea.
5) A intolerância é crescente quando a população se sente injustiçada, ou ver fazerem alguma retaliação e/ou discriminação contra alguém mais fraco: criança, comunidades LGBT, negros, agressões contra a mulher, molestação sexual, pedofilia, etc.
6) O sentimento de desamparo diante de catástrofes naturais, crises financeiras e sociais (desemprego, analfabetismo, corrupções, peculato-roubo de dinheiro público, etc) podem levar a multidão à um sentimento de solidariedade (catástrofes naturais)  e vingança (crises de desemprego...) para que a justiça seja feita pelas próprias mãos. Em nossas cidades, a nefasta milícia assumiu este papel que outrora era do Esquadrão da Morte (Scuderie LeCocq).
7) A percepção da brutal desigualdade produz dois sentimentos caros ao ser humano: inveja e ciúme. Destes surgem todo um corolário assertivo de todo ódioenamorado que até então tenha sido sentido, como se inveja e ciúme (e seus atos subsequentes) fossem justificados (de novo os paladinos da justiça: leia-se, justiceiros) pela bipolar desigualdade.

Então, pergunto-me o que é Brasília? E busco uma resposta em Milton Santos. A expressão "Vontade criadora (de JK) e o subdesenvolvimento" é do geógrafo em seu livro "A Cidade nos Países Subdesenvolvidos ".SANTOS, Milton  (1965). A Cidade nos Países Subdesenvolvidos. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira.
"Cidade “artificial” surgiu de uma vontade criadora que haveria de se manifestar na prévia definição de diversos aspectos materiais e formais. A intenção que presidiu à sua criação é que orientaria aquela vontade criadora. Brasília já nascia com um destino predeterminado: ser “a cabeça do Brasil”, o “cérebro das mais altas decisões nacionais”. Capital administrativa e canteiro de obras, essas duas realidades - a realidade planejada e a realidade condição para a primeira - vão contribuir para lhe dar uma fisionomia, um ritmo de vida, um conteúdo. (...) O subdesenvolvimento comparece como um elemento de oposição,
diante daquela “vontade criadora”, modificando os resultados esperados. Reduz as possibilidades de uma rápida construção da cidade; refletindo-se sobre as atividades principais, explica as demais funções, o quadro, a fisionomia atual, a estrutura e os problemas; e é o responsável pela “dualidade” de Brasília, que tanto a aproxima das demais capitais latino-americanas. Vontade criadora e subdesenvolvimento do país são, pois, os termos que se afrontam na realização efetiva de Brasília. É da sua confrontação que a cidade retira os elementos de sua definição atual”.

É esta bipolaridade descrita tão bem por Milton Santos que baseio meu argumento de Brasília como uma capital planejada, mas que, tal como suas cidades satélites (Taguatinga, Ceilândia, Samambaia), tornou-se, ela própria, uma capital satélite do Brasil. Isolada em seu planejamento de vontade criadora num universo subdesenvolvido. A capital grita no 'ao-longe' (expressão cara à Guimarães Rosa), a excomunhão do povo que para lá chegar produz uma espécie de romaria como se estivesse indo à um santuário tupiniquim. Louve-se o belíssimo projeto arquitetônico de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, mas o fato político é desastroso e não há volta como atesta o próprio Milton Santos. Para lá refugiaram-se os políticos. É uma cidade não sustentável e que, por isso, precisa arrecadar de todo o país as condições de sua sustentabilidade. Aí está o cerne do problema que constato. Como os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário estão afastados geograficamente do povo, eles quase tornam-se invisíveis, é preciso criar mecanismos regulatórios paralelos ao governo quando o próprio TCU deveria ser responsável, como o Transparência Brasil entre outros. Não que a corrupção e os desmandos não aconteçam em outros países, mas no Brasil esta dicotomia ficou gritante. Até nos nomes das casas: mansões do Lago Paranoá, Mansões dos Ministros, a chácara do Chefe da Casa Civil, do Presidente do Congresso, como testemunhamos a do Eduardo Cunha em processo recente. A fragilidade destas instituições, sua clara capilaridade e mais o afastamento torna o Homo-Politicus quase um mito. Entre a adoração e o desprezo é difícil constatar sua existência.
Por isso, foi preciso a senhorinha cair de tapas em cima do Eduardo Cunha para provar sua consistência Imaginária, porque no Simbólico de nossas palavras ele já existia há muito tempo. E no real de nossas angústias também.

Carlos Eduardo Leal é psicanalista e escritor