domingo, 31 de maio de 2015

É isto um homem? ou sobre O Sal da Terra

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É isto um homem?
Este é o título do livro de Primo Levi, mas que poderia servir como uma luva para o "Sal da Terra "(O homem é o sal da Terra) filme sobre a vida, o olhar e a fotografia de Sebastião Salgado.
Em "É isto um homem", Primo Levi, sobrevivente de Auschwitz, diz nas primeiras páginas que não vai narrar as atrocidades dos nazistas, mas simplesmente aquilo de que um ser humano é capaz de fazer com outro: a maldade sem fim.
O registro fotográfico de Sebastião Salgado no belo filme de Win Wenders e Juliano Ribeiro Salgado (filho de Sebastião) apoia-se na longa jornada de vida de um rapaz saído de Aimorés no Espírito Santo, a fuga para Paris em meio a ditadura e a descoberta quase ao acaso da fotografia através de uma máquina que Lélia, sua esposa, ganhou. Aos poucos Sebastião Salgado vai descobrindo o poder do registro da fotografia social com a denúncia de condições devastadoras da 'condição humana' (para retomar uma expressão de Hannah Arendt). Narrado algumas vezes pelo próprio Sebastião e noutras pelos diretores (Wenders/RibeiroSalgado) o filme mostra as tensões e conflitos, a morte e a miséria, as guerras e a fome em regiões esquecidas pelo resto do mundo. Obviamente o P&B de Salgado é maravilhoso e por vezes aplaca a dureza das imagens que fazem com que o próprio fotógrafo desabafe que muitas vezes deixou o equipamento no chão para chorar diante de tamanha brutalidade, por exemplo no genocídio na África entre os Tutsis e os Hutus com centenas de milhares de mortos despedaçados pelo chão. Pais e mães que mal tem tempo para enterrar os filhos.  Sebastião chegou a acompanhar por 2 anos os Médicos sem Fronteiras em condições severas e precárias.
 Por isto discordo do crítico de cinema José Geraldo Couto quando diz que faltou sal ao filme e dá como exemplo outro fotógrafo após tirar uma foto de uma criança e um abutre e ganhar o Pulitzer, se suicida. " Apenas a título de contraste incômodo (o sal que falta a O sal da terra), cabe lembrar, por exemplo, o destino do fotógrafo sul-africano Kevin Carter (1960-94), que ganhou o prêmio Pulitzer por uma imagem que correu o mundo: um abutre rondando uma criança famélica no Sudão. Semanas depois de conquistar repentina fama e fortuna, Carter sucumbiu a seus fantasmas e se suicidou aos 34 anos."
Era isto que ele queria para Sebastião Salgado? Que ele sucumbisse e se suicidasse? Sebastião não é Kevin Carter, Van Gogh (tão bem descrito por Antonin Artaud: Van Gogh o suicida da sociedade, com belo prefácio de Ferreira Gullar) ou o próprio Primo Levi que se suicida aos 80 anos após ter sobrevivido heroicamente a Auschwitz.
Há todo o drama do pai que se fasta por longos períodos da mulher e filhos (Juliano depois de 30 anos vai entender ao acompanhar o pai pelo mundo), o homem em crise com seu olhar pelo descaso das autoridades que poderiam alimentar, mas preferem virar as costas e deixar morrer milhares de pessoas...
Parece que os brasileiros possuem uma dificuldade enorme em reconhecer os brasileiros. O amor ao que não é nacional parece ser um mote para dificuldade de Couto em perceber que os livros de luxo feitos pelo fotógrafo não possam existir. Pergunto assustado: os livros precisam se suicidar também?
Para quem quiser tirar suas próprias conclusões recomendo vivamente o 'sal' de Salgado, O Sal da Terra. Afinal de contas, como se diz em culinária, "sal a gosto".

Carlos Eduardo Leal

terça-feira, 12 de maio de 2015

A Vertigem da Palavra

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A vertigem da palavra

Era uma vez uma palavra velha, amarrotada, gasta pelo mal uso em geral que faziam dela. Não era uma palavra mal-dita (disto ela até ficaria orgulhosa), mas antes, era uma palavra dita de qualquer maneira, sem ênfase, sem acentuação nenhuma, até sem afetação. Ela se via num estado quase-morto, quase-isto, pouco aquilo. Nas escolas não entrava mais. Nas conversas pela internet tinha sido reduzida, mutilada e só lhe restava uma espécie de interjeição gutural inexprimível.
Andava assim quase a ponto de osso, sem circunflexos, sinônimos ou mesmo uma metaforonímia que fosse. Nada aplacava sua dor de existir. Nada tirava de seu semblante uma nuvem carregada de ninguém. Havia nascido no lugar errado e na hora errada, pensava com suas letras esparsas e quase apagadas pelo tempo. Pensou que fosse uma palavra-esperanto e quis se jogar do ponto mais alto da estante. Pensou que fosse uma palavra-latim e franziu por pouco tempo as circunflexas sobrancelhas na esperança que algum filósofo ou douto empertigado quisesse fazer uso formal em algum empolado discurso.
Estava condenada à extinção, pensou mais uma vez sem pressa de concluir o que realmente era inconclusivo: uma palavra em abismo. Vertigo.
Estava lá na oitava prateleira dentro de um antigo livro que por falta de uso já não lembrava mais do título. Era o resto do resto. Lembrou que certa vez passeou durante dias na bolsa de uma mulher empertigada que parava nos cafés e fingia ler. Aquilo a aborrecia demais. Era só uma leitora fake. Tudo menos isso. Tudo menos fingir-se de letra morta. Tudo menos ser aparência de aparência. Queria a essência do texto. Queria estar numa plateia, envaidecida por circular pelos ouvidos atentos daqueles estudantes sempre ávidos de saber. Sim, tinha lá em seus recônditos suas antigas convicções narcísicas. Ainda lhe restava alguma auto-estima. Já não lembrava mais onde, mas mesmo assim o pouco que tinha permitia o não amarelar por completo de suas páginas. Mas já era um fiapo de vida. Já era um sopro rudimentar de um velho bêbado numa noite escura e fria de inverno. Já via se cobrindo com o manto negro e sufocante do corvo de Poe ou na ponta da lança ensandecida de Quixote a lhe varar as vogais sempre tão mais aveludadas que as consoantes.
Lembrou de Racine, Sófocles, Eurípedes e sua desconsolada Medeia. Nem tinha filhos para matá-los. Muito menos havia marido para feri-lo segundo a desconcertante tragédia. Sua vida havia sido um drama medíocre sem tragédias. E isto era bem pior, pensou. Não haveria ninguém para recontá-la como se faz ad nauseum com as tragédias que não cansam de renascer nos arautos dos mais jovens. A tragédia não esquece por si mesma. Ela lembra de rememorar. Como uma compulsão ela não cessa de não se inscrever.
Quis pedir ajuda a um vetusto livro bem ao lado, mas não teve mais forças. Olhou para baixo e sentiu asco de sua própria vertigem. Estava na Roda da Fortuna e a sorte escorria-lhe entre uma sílaba e outra. Não tinha pena de si mesma, mas o sentimento de desamparo era fatal.
Estava nesta vertigem de si mesma, pronta para o ato final quando um curioso e sedento menino, vindo não se sabe de onde, empurrou a enorme porta da sala e avançou feroz e sorridente em sua direção como quem acha um grande tesouro há muito procurado...

Carlos Eduardo Leal

terça-feira, 5 de maio de 2015

Clarice Lispector: o amor e a verdade inventada

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Clarice Lispector: o amor e a verdade inventada
                                                              Carlos Eduardo Leal

O inferno mesmo é o do amor. Amor é a experiência de um perigo maior – é a experiência da lama e da degradação e da alegria pior.

No amor há um ponto de não-retorno. Assim como quem atravessa um grande deserto, o sujeito chega num determinado ponto em que a dimensão do inevitável emerge e não há mais como retornar para começar tudo de novo. A estrada, o percurso, as veredas e a própria vida é sempre outra. Se o caminhante quiser retornar de sua travessia do deserto de sal (como vi recentemente na tv um homem atravessar o Salar, o maior deserto de sal do mundo no altiplano da Bolívia) ele estará se condenando a morte. Só se pode continuar. Assim é também na vida e no amor. Há um ponto de não-retorno para quem inicia a jornada: só lhe resta avançar. Lacan dizia que sobre a cena da vida ele avançava. Pois não é assim também nas (in)consistências do amor? Então, se não há como retroceder o que nos resta é reinventá-lo. E esta não será nossa pior verdade? Nossa alegria banhada nas margens do pior? Este inferno, esta alegria pior. Mas o que é uma alegria pior? Como escaparmos desta dualidade, desta contradição a qual nos convida Clarice: que seja alegria e que seja pior?  
Inferno ou passagem que vira travessia: no amor a alegria pior é o confrontar-se com um ponto de não-retorno. Penso o não-retorno na literatura como um ponto epifânico e na vida como o surgimento do real no qual algo que até então sustentava e dava a garantia cotidiana e necessária se desamarra, desestabilizando o sujeito para fora de seu campo de compreensão. Qual é o ponto certo da estrutura no qual o laço de amor deveria ser um lago especular, narcísico e sem ondulações? Qual é o ponto no qual o amor fica cego ao invés de ser reflexo de reflexo dando ao sujeito esta dimensão de amor infinito como dois espelhos paralelos? Dois olhos apaixonados que se olham como narciso diante do lago a pensar ilusoriamente na eternidade que sua beleza emanava. Pobre Narciso.
É o poeta Ovídio quem nos responde: A mãe do jovem efebo ao perguntar ao oráculo se o filho teria vida longa, responde: ‘se não se conhecer’. E mais adiante uma deusa enciumada diz: “que ele ame e não possa possuir o objeto amado!” “Enquanto bebe,” prossegue Ovídio, “arrebatado pela imagem de sua beleza que vê, apaixona-se por um reflexo sem substância, toma por corpo o que não passa de uma sombra.”(...) “Deseja a si mesmo, em sua ignorância, e louvando, é a si mesmo que louva. Inspira a paixão que sente, e, ao mesmo tempo, acende e arde. Quantas vezes beijou em vão a água enganosa! Quantas vezes, para abraçar o pescoço que via, mergulhou os braços na água, sem conseguir abraçar-se! Não sabe o que vê; mas o que vê o inflama, e o mesmo erro que ilude seus olhos lhe excita o desejo. Afasta-te do que amas, e o verás desaparecer. Essa sombra que vês é o reflexo de tua imagem. Nada é por si mesma. Contigo, ela aparece e permanece; com tua partida desaparecerá, se tiveres a coragem de partires.”
A infinitização do olhar produz a ilusão da perfeição. Porém, “o mesmo erro que ilude seus olhos lhe excita o desejo” A quebra desta ilusão também desmantela o desejo e a pulsão sexual fica à deriva. Por isso Freud diz que o encontro com um objeto de amor na verdade é o reencontro dele, pois um dia em nossa idílica infância narcísica nós ilusoriamente o retivemos em nossos sonhos. E ao nos deparamos com o novo objeto amado o sentimento oceânico de amor volta a nos invadir dando-nos esta dimensão de eternidade. Pois então, como pode existir esta alegria pior no amor? Como pode existir este inferno do amor?
Com Ana, no conto Amor do livro de Clarice Lispector, Laços de Família, também houve este ponto que tenho chamado de não-retorno. Ana, protagonista do conto, era uma mulher comum com bons filhos que “cresciam, tomavam banho e exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. Como um lavrador ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas.” (...) “Ana dava a tudo, tranquilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.” (...) “Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca.”
Aí está Clarice nos convidando para um ápice, um voo supremo para lá do alto nos aplicar seu golpe fatal e epifânico: o encontro com o perigo maior. E, a partir disto, para produzir uma saída: ter que se haver com uma verdade inventada. “Dias calmos, tranquilidade com os filhos, tudo passível de aperfeiçoamento; a vida podia ser feita pela mão do homem”.
Onde encontrar a imensidão destes primeiros dias tranquilos de Ana? Como encontrar com ela estes laços de família que por serem tão precavidos constrangem o entardecer? ‘a hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela’.  Teria ela na alcova do lar, neste casamento com um homem verdadeiro e filhos igualmente verdadeiros a aptidão para uma “exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável?”   
Engana-se quem lê o mundo na aparência. Debaixo do dia há muito mais da vida a ser provada como quem prova a beleza do intragável. Por debaixo da vida há um muro. Por detrás do muro há um mundo. E de fora do mundo que brota o amor que não cabe em qualquer significação. Ana não poderia saber disso. Nós, oh, pobre de nós leitores, jamais adivinharíamos aonde Clarice quer nos levar e, no entanto, quando iniciamos a sua leitura constatamos que estamos inexoravelmente numa topologia dentro/fora do mundo que é preciso lê-la com quem lê um mundo sem legendas. É como cegos que tateamos suas palavras através dos trilhos deste bonde chamado desejo. O lugar descarrilado para fora dos trilhos habituais onde a palavra acaba por se acomodar no signo. E o que é o amor senão a busca por um signo que o acalente? Que diga sim. Que diga venha que te espero e outro responda com sua chegança. Sim, o amor quer fazer signo. Uma carta que seja, mas, ah, já não se escreve mais cartas como antigamente. E isto faz-me lembrar da máxima do correio francês. Quando quem escreve esquece de colocar algo que localize corretamente o destinatário, o correio francês usa um carimbo que diz: lettre um souffrance. Uma carta à espera, em suspenso/em suspense. Uma letra que ficou sem encontrar seu amor e fazer signo. Que fosse uma palavra tola, porque as cartas de amor são assim mesmo, ridículas. Mas que chegasse ao seu destino. Edgar Allan Poe teria escrito a partir daí sua Carta Roubada? Ou esta fala dos trilhos dos significantes e já outra coisa?
 Lettre en souffrance que traduzo literalmente: cartas em sofrimento. Falta-lhes a marca final. Falta-lhes o signo do amor.
Vejam que a marca final é também a que inaugura a esperança, assim como o significante do Nome-do-Pai, desde antes, desde sempre, é quem inaugura para a criança um mundo novo e a acolhe no desamparo.
Mas, e quanto a Ana? Estaria submetida a um signo do amor? Que estranho lugar é este que desaloja o sujeito de suas mais redundantes certezas? Certezas e garantias imaginárias. Tudo arrumado. Tudo em seus devidos lugares. Nada faltando... Uma vida chata com toda certeza.
Que lugar é este para o qual Clarice nos convida e nos conduz com sua desescrita? Uma escrita para se refazer no insistente apagamento do novo sobre o antigo que reaparece como um retorno do recalcado. Reaparece de um lugar de onde nada deveria advir. Assim: lá onde isso estava deve o eu permanecer. Mas, não. O aforisma freudiano correto é: lá onde o isso estava deve o eu advir. Lá onde estava o não dito deve um novo significante ser bem-dito. No sentido do bem dizê-lo. (e não como contrário ao mal dito). Mas que lugar é este para o qual Clarice conduz nosso olhar?
O que devo olhar quando ando distraído?
Shakespeare nos adverte quando Horácio diz para Hamlet: “cuidado meu amigo, basta um cisco para turvar os olhos do espírito”. Basta uma fagulha para desalojar, tirar da loja, tirar do invólucro que garantia com segurança nossa sobrevivência. Clarice não nos adverte de nada. Nem a sua Ana. Não é mesmo com bons sentimentos que se faz literatura. Nem é com bons sentimentos que se faz a vida, muito menos o amor. O amor é narcísico, Freud adverte. Ele quer tudo para si. Ela é egoísta. Lacan vai além: amar é dar ao Outro aquilo que não se tem. E vai mais adiante: amar é dar ao outro sua própria castração. Freud, no Mal-Estar na Civilização nos diz que ele não pode concordar com o mandamento cristão de amor ao próximo. O que ele diz com todas as letras é que você pode amar a quem te ama, a quem do amor lhe dê reciprocidade. Mas não amar ao próximo como a ti mesmo. Só para lhes avivar a memória na concordância com esta afirmação freudiana, basta que lembremos do sujeito masoquista que vê em seu sofrimento o gozo com o qual deambula dolorosamente através dos corredores em sua vida. Amaria ao próximo como a si mesmo? Não creio ser o melhor para o outro...
Então, o que devo olhar quando ando distraído? Seria bom se com Paulo Leminski pudéssemos dizer que “distraídos venceremos”. Talvez pudesse evocar esta frase para o texto clariceano “Das vantagens de ser bobo”, mas esta é outra história.
Ana está desavisada nos dias de sua vida. No bonde sem desejo Ana sacolejava no vacilamento dos trilhos. O vento soprava “mais do que o fim da tarde, soprava o fim da hora instável.” Ao respirar fundo Ana deu ao seu rosto um ar de mulher. Há ali uma mulher, podemos afirmar. Há ali uma mulher na tranquilidade de seus dias. Olhando para sua vida sem olhar para o mundo. Mas, eis que o mundo, lá de onde ela menos esperava olhou para ela.
Maurice Merlau-Ponty, em seu livro O Olho e o Espírito nos diz que quando o artista olha uma paisagem é por que algo lá dentro daquela paisagem também olhou para ele e a única maneira de sair de lá é pintando um quadro. Ana, não é pintora. Ela é uma mulher neste momento. Que apenas caminha, mas ainda não atravessa. Ou melhor, é conduzida pelo motorneiro e pela vida, mas não as tem em suas mãos.
“Foi então que olhou para o homem parado no ponto.” E, lembro que o ‘ponto’ é uma escansão a fazer metáfora. Metáfora que remete a outra coisa. “A diferença entre ele e os outros”, continua Clarice, “ é que ele estava realmente parado”. Há aqui um congelamento da cena como se ela quisesse estancar o bonde com o que virá. Como se aquela cena contivesse o mundo e quando uma cena quer conter todo o mundo o que acontece é que você é violentamente jogado para fora dele. Para fora de suas certezas, suas garantias imaginárias, como disse anteriormente. Conter o incontornável é um risco de um perigo maior. O homem que ela viu não a via. E aqui jogo com a homofonia: ele não a via (de ver) e não havia (no sentido de existir). Como é que algo que não existia (nela, é claro) pode de uma hora para outra caber dentro de sua vida? A resultante é um transbordamento, este é o auge da epifania clariceana, o auge do contato com o real, quando um impossível na cena da vida surge e é preciso que se dê conta disto sob o perigo da crise que se abaterá para sempre. Em Laços de Família, Clarice nos diz textualmente: “Em que momento é que a mãe,  apertando uma criança, dava-lhe esta prisão de amor que se bateria para sempre sobre o futuro homem.”
Lacan, em “Intervençao sobre Daniel Lagache”, um texto de seus Escritos, nos diz que “uma desestabilização imaginária, produz uma quebra no simbólico, fazendo emergir o real”. Estamos neste ponto, neste ápice da angústia por vir em Ana. 
“A diferença entre ele e os outros”, retomo Clarice, “ é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era cego.
O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranquila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicletes...Um homem cego mascava chicletes.” Em A Paixão Segundo G.H. ela afirma: “Mas vê, meu amor, a verdade não pode ser má. A verdade é o que é.”  E o que é esta verdade? O encontro com o real, o impossível de se dizer. Mas o que acontece com Clarice? Ela vai e diz. Não o óbvio. Ela não responde ao impossível de ser dito, mas digo que ela empurra a cena da vida apara mais adiante para que o confronto com o amor se dê em sua incerteza mais radical. Que o amor lhe venha de um lugar totalmente novo. Ao se descortinar uma verdade, não há mais como escondê-la. Por isso Lacan diz que a angústia é da ordem de uma certeza. Mas, é uma certeza desacompanhada de um saber. Isto é o que desaloja o sujeito de sua garantias. Isto desassossega. Leiam Fernando Pessoa em seu Livro do Desassossego.
“Inclinada,” continua Clarice, “olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. E mastigava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir – como se ele a tivesse insultado.” É neste movimento de ir e vir, fort-da, ausência e presença, neste movimento da criança que joga o carretel para trás da cama e grita “fort” foi embora, e logo ao recolher grita exultante “da” apareceu, que o insulto à vida lhe é feito. Aí está o drama da compulsão à repetição, da pulsão de morte que só pode surgir da epiderme do real. Do insulto da compulsão á repetição que Clarice faz Ana enxergar no movimento de sorrir e deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir. Assim fazendo, produz na protagonista a desestabilização de suas certezas atávicas. Retirando-a para fora de seus dias, de seus trilhos urbanos. Demasiadamente humanos. Viria o amor de algo que desestabiliza que joga o sujeito para fora de seus dias? Não teria ele a face bondosa de um cupido com seu arco e flecha? Não estamos mais no romantismo alemão, mas se quiserem uma cena do amor, que lembremos do gozo místico de Santa Teresa de Ávila esculpida por Gian Lorenzo Bernini.  Ali há dor e prazer. Sofrimento e gozo beatífico.
Por isso quem passasse e olhasse para Ana pensariam que ela tinha ódio, mas não era. Era a outra face da moeda que vem acompanhada desta dimensão que não é feita apenas com bons sentimentos. Ser desalojada de seus dias para o imponderável exigia-lhe uma dor sem igual. Mas era inevitável que vivesse, pois agora não havia só uma mulher, mas a própria Ana que existia em sua intensidade, em sua alegria pior.
O mal estava feito. Este é o Mal-Estar do qual Freud fala no Mal-Estar na Civilização. Trata-se muito menos do social do que das apenas injunções subjetivas que atravessam a vida do sujeito e que, uma vez que aparecem surge um ponto de não-retorno. Este Mal-Estar faz com que ela seja “expulsa de seus próprios dias”. O que poderia haver de pior? Como se organizar no pensamento, para tomarmos uma expressão kantiana, se ela está exilada de seus dias?
“O que chamava de crise viera afinal.” Clarice não nos poupa de olharmos o que não deveríamos ter visto. Assim também é com G.H. e a barata. “E sua marca (a marca da crise) era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. (...)Um cego mascando chicletes mergulhara o mundo em escura sofreguidão. O cego despedaçou, estilhaçou como uma bomba fragmentária a mulher que existia e fazendo com que Ana caísse numa bondade extremamente dolorosa.
A partir de então, “ela amava o mundo, amava o que fora criado – amava com nojo. ...lhe haviam ferido os olhos.” “Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. (...) A vida arrepiava-a, como um frio.” (...) O que o cego desencadeara caberia nos seus dias?”
Já em casa, o marido, num gesto que não lhe era natural, “segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.”
Viver é negócio muito perigoso, afirmava Guimarães Rosa e suas Veredas: travessias do sertão.
Não há amor sem que haja travessia. É preciso se haver com algo imponderável, algo que lhe retire dos eixos e provoque a certeza de estar para sempre alijado de seus dias. Um ponto de não-retorno. Assim é com G.H. diante da barata. Para sair de si e atravessar a porta da vida, é preciso nomear o inominável. Comer a barata, mastigar o nojo nominativo, o nojo  nomear os fantasmas que assolam o real do inconsciente do sujeito. Quota de gozo ou empuxo ao pior de si mesmo? Não querer saber sobre a vida é diferente de querer não sabê-la. O primeiro é uma alienação e o segundo é uma posição na qual, mesmo com o temor há que enfrentá-la.
Não há possibilidade de viver e amar senão vivendo e amando. “Para se ter o incenso,” diz G.H. “o único meio é o de queimar o incenso.”  A grande transmutação em G.H. é botar na boca a massa branca da barata. E que assim me aproximaria do...divino? do que é real? O divino para mim é o real.” PSGH

“ O amor já está, está sempre. Falta apenas o golpe da graça – que se chama paixão.” PSGH