quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Sonho de Fernando Pessoa


Na noite de 16 de abril de 1914, Fernando Pessoa teve um sonho:
Pessoa havia vestido o fato e colocado seu chapéu quando alcançou a rua. Estava muito frio em Lisboa, mas ele não reconhecia aquelas ruas. Foi até o Chiado, desceu pelas Escadinhas da Calçada Nova de São Francisco, mas não encontrou o seu velho restaurante Taberna do Chiado. No lugar, surgia um novo e requintado restaurante. Aonde estavam os Grandes Armazéns do Chiado?  E o armazém do Grandella?  A Rua Garret pareceu-lhe morta às duas da tarde daquele janeiro invernal. 
Quase desfaleceu quando viu um homem que lhe era muito conhecido sentado solitariamente numa cadeira do restaurante. Lembrou alguém que conhecia. Mas não era dado a amigos e Mário de Sá-Carneiro não estava lá, pois na semana anterior com tristeza vira-o partir para o outro lado deste mundo. Havia se retirado da vida sem pedir-lhe licença. 
Mas, no entanto, aquilo que não parecia existir assombrava-lhe a alma. O desassossego, sempre ele, compareceu como um corvo de Poe. Aproximou-se a passos miúdos que seus sapatos quase que tartamudeavam no encontro com o solo de madeira impecavelmente encerada. O homem, que permanecia de perfil, escrevia sofregamente sobre folhas soltas que iam, uma à uma, caindo no chão como se outono fosse na vida de um escritor. 
- Eu o conheço? Arriscou Pessoa. 
- Sem se virar, o homem que também usava um fato igual ao seu e um chapéu da mesma cor e feitio e que tinha bigodinhos tais como ele recente se olhara no espelho, disse baixinho. Chamo-me Alberto Caeiro. Mas, por que se preocupar comigo se 'pensar é estar doente dos olhos'? Não quero metafísica alguma. Escrevo sobre a natureza. Deixe-me em paz com minha dor ingênua. Afasta-te! 
O pobre homem tossia muito como se tuberculoso fosse.
Fernando Pessoa recolheu-se sobre si mesmo como se estivesse a procurar pelo seu eu. Curvou-se o mais profundo que pôde como se a dobra sobre si próprio devolvesse o que já não lhe pertencia. Ainda lançou a última lasca de olhar sobre o ombro do homem que se denominava Alberto Caeiro. E leu: O Guardador de Rebanhos  



Ps: Agradeço a Paula Pessoa que me enviou uma pérola chamada "Sonhos de Sonhos" de Antonio Tabucchi (Rocco - 1996), de quem retirei a ideia para este conto.

domingo, 13 de outubro de 2013

Intertranças - Angola com Ondjaki, José Eduardo Agualusa e Pepetela

 

Ressonâncias do debate com Bruno Garcia sobre três autores angolanos:
Ondjaki - Os da minha rua - Língua geral
José Eduardo Agualusa - As mulheres do meu pai - Língua Geral
Pepetela - A Geração da Utopia - Leya

Bruno Garcia, historiador, falou sobre a Angola política e histórica tendo por base os três livros como referência.

Eu comentei os livros a partir de três pontos que se trançam:
1) As palavras, a linguagem e a língua portuguesa.
2) Os personagens, as histórias e seus autores
3) O país: Angola.

O livro "Os da minha rua" o narrador é um menino que tocado pela emoção da descoberta do novo vai relatando os acontecimentos, as frustrações e a alegria com o mundo em que vive. Há um certo gosto de despedida da infância escrito com lirismo e poesia. O espanto diante do mundo, tal como os antigos filósofos, é descrito com suavidade na observância de pequenos fatos e objetos da vida quotidiana.

"As mulheres do meu pai" de José Eduardo Agualusa tece uma fina trama entre ficção e realidade. Clarice Lispector certa vez escreveu que quanto mais ela escrevia ficção mais ela se aproximava da realidade e quanto mais real mais ficcional era seu texto. O romance de Agualusa tange todo o tempo a realidade e a ficção. 
Na verdade, o livro é sobre a busca por um pai. O que é um pai? indaga-se Freud. A busca por um pai não se aproximaria da procura de uma verdade? Uma verdade que responda aos enigmas da vida?
Laurentina, diretora de cinema e documentarista, tenta reconstruir a atribulada vida de seu pai Faustino Manso. Há ressonância dos nomes não deixam dúvidas de uma certa ironia. Faustino Manso que deixou sete viúvas e 18 filhos não era nada manso e sua vida aproxima-se de Fausto, o venturoso. Ao longo do texto ela descobre que Faustino Manso, seu pai, é estéril. Portanto, a indagação continua: quem é seu pai? E que homem era este que "engravidava" mulheres sendo estéril?
O tema da procura do pai é recorrente em livros e filmes, mas a maneira como é tratada aqui vale a leitura.

"A Geração da Utopia" é dividido em 4 partes.
1) A casa - 1961 Os jovens intelectuais angolanos estudam em Lisboa e planejam retornar ao seu país para libertarem da colonização portuguesa.
2) A chana - 1972 Trata da guerrilha e dos horrores da fome e da morte
3) O polvo 1982 Os medos da infância, a fome e o "caçador" de peixes. O polvo como um fantasma infantil de devoração. A mãe pátria?
4) O templo - 1991 A religião como outra utopia. A frustração com a libertação de Angola do jugo português. Os antigos companheiros politizados e de esquerda tornaram-se corruptos quando chegaram ao poder. "Dominus", a nova igreja, salvará a todos. Aqui há uma estreita aproximação com o que acontece no Brasil. 
O livro não tem fim, pois começa com um "portanto, só os ciclos são eternos". então, a história ainda não terminou. 


Os três temas são universais: 
1) O olhar da criança sobre o mundo
2) A utopia como processo de re-construção de um país e a formação de seus jovens.
3) A busca por um pai. 

Como disse José Saramago, "todas as noites mais de 200 milhões de pessoas sonham em português." 

Então, que sonhem com uma Angola sem guerras
Sonhem com uma Moçambique sem fome
Sonhem com um Brasil sem corrupção
Sonhem com um Portugal sem desempregos
Sonhem com um Timor-Leste sem minas de guerra pelo chão
Sonhem com uma Guiné-Bissau mais justa
Sonhem com um Cabo Verde mais próspero e sem tantas misérias
Sonhem com um São Tomé e Príncipe mais livre e,
Sonhem com Macau mais próximo da língua portuguesa.