quarta-feira, 27 de março de 2013

Aula 5 - O feminino, o amor e o real em Clarice Lispector





Aula 5 - 28/03/2013

O feminino, o amor e o real em Clarice Lispector

(...) "Ontem, no entanto, perdi durante horas e horas a minha montagem humana. Se tiver coragem, eu me deixarei continuar perdida. Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo - quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação. Como é que se explica que o meu maior medo seja exatamente em relação: a ser? e no entanto não há outro caminho. Como se explica que o meu maior medo seja exatamente o de ir vivendo o que for sendo? Como é que se explica que eu não tolere ver, só porque a vida não é o que eu pensava e sim outra - como se antes eu tivesse sabido o que era! Por que é que ver é uma tal desorientação?"

A Paixão Segundo G.H. - p. 16/17.

Em outra aula já escrevi a respeito da angústia e a dimensão do real. O tema está longe de terminar, antes disso, creio que o tema da angústia atravessa todo este livro e, talvez toda a obra de Clarice.

"Ontem, no entanto, perdi durante horas e horas a minha montagem humana." Do que temos medo? pergunta Lacan em "A Terceira" e ele mesmo responde: de nosso corpo. Temos medo do nosso corpo. Esta é nossa montagem humana. O corpo é o lugar ao qual tudo se reduz. O gozo do Outro incide sobre o corpo machucando, causando feridas, humilhando-o, rebaixando-o à uma condição não-humana. A montagem humana está colocada como algo reconhecível pelo sujeito. Ao não se reconhecer (e lembro da função de desconhecimento que há no próprio eu) o sujeito está desalojado de seu ser, de suas garantias imaginárias, de suas relações afetivas, pessoais e tudo que se inscreve sobre a dimensão da segurança. Perder o que há de humano não é desumanizar. Não. Perder esta montagem humana é pior do que isso. É a estranheza, ou o unheimlich freudiano. Perder-se de si próprio insere sobre o sujeito a sua dificuldade de andar. Anda mal, assim como Oedipus: aquele que anda mal na vida por ter, logo após seu nascimento, os pés inchados. Caminhar é ir em direção ao novo, ao des-conhecido..., pois re-conhecer não é exatamente conhecer de novo? Não é a busca incessante do objeto perdido. E quando se pensa encontrar se dá um grito tal como o pai do filho pródigo: 'ah! eu que pensava tê-lo perdido, ei-lo de volta!' Não me procurarias se já não me tivesses achado!

 " Se tiver coragem, eu me deixarei continuar perdida. Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo - quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação. "
O paradoxo da primeira frase é evidente: coragem para se deixar continuar perdida. Não deveria ser o contrário? Pois em Clarice as coisas não são tão evidentes assim. Ela não nos entrega as direções às claras. Tudo corre por caminhos labirínticos que Borges com prazer apreciaria. O medo é o não entendimento. Freud, em seus Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905), nos fala da 'curiosidade sexual infantil e sua desordenada e desenfreada busca pelo saber. Há aqui uma errância de caminho, uma certa deambulação e necessidade de orientação. Mas, não se doutrinam as pulsões. Não é possível engessá-las e os caminhos do aprendizado passam necessariamente pelo medo, pela dor de não saber e pela curiosidade de uma promessa: um dia você saberá-entenderá. Está claro que isso não se cumpre, pois ao mistério da vida encontra-se neuroticamente mais perguntas do que respostas. "Eu sou uma pergunta", diz Clarice.
E o neurótico tem um gosto todo especial em se fazer perguntas. Em geral, aquelas que ele não sabe responder.
A resposta, seja ela qual for, tem por efeito produzir um sentido ao sujeito. Mesmo ilusório, o sentido faz com que o sujeito saia de sua desorientação e caminhe num balizamento que traga tranquilidade e segurança imaginária para sua vida.
E a estrada a ser trilhada é o caminho do ser, ou melhor, é a vereda de ser. E, ela mesma afirma: não há outro caminho. A travessia do ser produz inequivocamente um encontro com o próprio eu do sujeito: seu mistério alojado em seu inconsciente. E a porção de real enquanto impossível de ser dito. "O que atrapalha ao escrever é ter que usar palavras. (...) Se eu pudesse escrever por intermédio de desenhar na madeira ou de alisar uma cabeça de menino ou de passear pelo campo, jamais teria entrado pelo caminho da palavra." Então, muitas vezes é preciso dizer sem palavras. E como é que se diz sem palavras? No silêncio as palavras também habitam. Do lado do analista há silêncio para que o sujeito também encontre suas hiâncias, seus buracos negros, seus espaços sem voz, seus espaços de não-eu em que até a luz é tragada para seu interior: êxtimo. Seu espaço interior mais do lado de fora. Limite intransponível ou aposta de travessia numa análise?

"Como se explica que o meu maior medo seja exatamente o de ir vivendo o que for sendo? Como é que se explica que eu não tolere ver, só porque a vida não é o que eu pensava e sim outra - como se antes eu tivesse sabido o que era! Por que é que ver é uma tal desorientação?"
A pulsão escópica compreende o ver e ser visto. Mas, mais além. Não se trata do olho enquanto funcionamento do  órgão, mas da função do olhar. O que é que se vê quando se enxerga além daquilo que se deveria ver? Cegueira? Dor de existir? Castração? O medo da morte é o medo pela vida.
Édipo viu mais do que deveria por isso ele, ao final da tragédia, se cegou com o broche de sua mãe. Fecha os olhos para não saber da verdade que o causa. Ver possui um estreita relação com o saber. E isso é tão feminino...
Não tolerar ver é querer que as coisas voltem ao que era. É como se quisesse restaurar um estado anterior de coisas. O que não é mais possível. Uma vez visto, o real da angústia impede que se tape a verdade com o sintoma.
Talvez ainda reste a possibilidade do sonho freudiano: "pede-se fechar um olho". Mas aí já é outra aula.

terça-feira, 26 de março de 2013

Herança ou, o que é um pai?



HERANÇA ou, o que é um pai? 



Qual é a maior herança que um pai pode deixar para seu filho? Ou, pensando de outra maneira: o que um pai pode transmitir ao seu filho? Qual é a lição de uma vida? 
O livro A maleta do meu pai, de Orhan Pamuk (Companhia das Letras), ganhador do Nobel de literatura de 2007, tenta resgatar a importância daquilo que um pai delega ao filho. Na verdade, este texto é o discurso de O. Pamuk na cerimônia de entrega do prêmio Nobel de Literatura do ano passado. 
É inevitável lembrar de Quase Memória (Objetiva), de Carlos Heitor Cony, que também fala de uma relação entre pai e filho. O protagonista após receber um embrulho misterioso, passa a identificá-lo como tendo sido enviado pelo seu pai após a morte deste. A partir daí, Cony explora um delicado território que oscila entre a ficção e a memória a partir das reminiscências do pai morto. Os sentimentos contraditórios entre pai e filho, as amizades, as alegrias, as tristezas e os anos de convívio e aprendizagem parecem estar contidos dentro daquele embrulho preso por um barbante, com o qual só seu pai poderia ter dado aquele nó. Nó que os enlaça num afeto de cumplicidade e saudade reinventada após um período de adormecimento.

"Aquela maleta", continua Pamuk, "era uma velha amiga, uma poderosa lembrança dos meus tempos de menino, do meu passado, mas agora eu nem conseguia encostar nela. Por quê? Sem dúvida por causa do peso misterioso do seu conteúdo. Agora vou falar do que esse peso significa. Ela tem o significado daquilo que toda pessoa cria quando fecha a porta e se refugia num canto, diante de uma mesa, para exprimir os seus pensamentos – o significado da literatura." A partir daí Orhan Pamuk irá descrever seu medo e encanto de encontrar um pai totalmente desconhecido dentro daquela maleta. Um pai que por algum motivo pudesse ter sido um grande escritor sem ter publicado um único livro; apenas suas anotações. Mas, "a primeira coisa que me mantinha distante do conteúdo da maleta era, claro, o medo de não gostar do que pudesse ler. Como meu pai sabia disso, tomara a precaução de agir como se não desse muita importância ao seu conteúdo. Depois de 25 anos trabalhando como escritor, isso me incomodou. Mas não quis me irritar com meu pai por ele deixar de levar a literatura a sério... Meu verdadeiro medo, a coisa crucial que eu não queria aprender ou descobrir, era a possibilidade de que ele fosse um bom escritor. Era esse o medo que me impedia de abrir a maleta." Para Pamuk, um escritor é uma pessoa que passa anos tentando descobrir com paciência um segundo ser dentro de si. "Escrever é transformar em palavras esse olhar para dentro, estudar o mundo para o qual a pessoa se transporta quando se recolhe em si mesma – com paciência, obstinação e alegria."
O medo de encontrar um bom escritor no pai é porque ele sabia que seu pai amava a vida, a liberdade, os amigos e muita gente ao seu redor. E um escritor é uma pessoa que "fecha a porta e se recolhe com seus livros." Este é o belíssimo contraponto deste texto: seu pai em suas viagens para fora da Turquia sempre lhe trouxe livros de presente. Sempre recusou a mostrar-lhe um "mundo dotado de um centro". Esse olhar que se costura por fora da margem dos limites de seu país, era também um olhar construído a partir de alguém que sabia que a literatura abria outros caminhos que não só aqueles que rivalizavam o ocidente com o oriente. Assim, Pamuk aprendeu que viver era participar da vida real modificando-a através da escrita, pois tal como diz Mallarmé, "tudo no mundo existe para ser posto num livro". 
Reconheço em Orhan Pamuk um processo muito semelhante àquele que encontro na psicanálise. Aliás, este mérito é do próprio Freud que dizia que os poetas e romancistas sabem muito melhor descrever os processos psíquicos do que os próprios analistas. "Para mim", diz Pamuk, "ser escritor é reconhecer as feridas secretas que carregamos, tão secretas que mal temos consciência delas, e explorá-las com paciência, conhecê-las melhor, iluminá-las, apoderar-nos dessas dores e feridas e transformá-las em parte consciente do nosso espírito e da literatura." Isso é exatamente o percurso de uma análise: explorar com paciência as feridas secretas – do inconsciente – para que se possa iluminá-las e dar-lhes outro destino. "O escritor fala de coisas que todos sabem, mas não sabem que sabem." Não poderia haver definição melhor do que é o estatuto do inconsciente: um saber não sabido. Seria isso uma literanálise? Creio que seu pai não poderia ter lhe deixado uma herança melhor do que esta. A transmissão de um mundo a ser continuamente reinventado através da ficção. 



Carlos Eduardo Leal
Psicanalista e escritor 



Para você que gosta ler ouvindo música, não perca o cd da Stacey Kent: "The boy next door"

terça-feira, 19 de março de 2013

Acomodações de restos: algumas questões sobre Clarice Lispector



Acomodações de restos: algumas questões sobre Clarice Lispector
                                                                     Carlos Eduardo Leal

Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei de criar sobre a vida. E sem mentir. C. L. -  A Paixão Segundo G.H.

Vou retomar a frase inaugural deste texto de Clarice para pensar algumas questões sobre a psicanálise e a literatura, esta acomodação de restos, tal como Lacan referiu-se a ela em Lituraterra.
Viver não é relatável.
A regra técnica fundamental de uma análise (é bom que ninguém se esqueça) é a associação livre. O convite a dizer tudo é, em si mesmo, um paradoxo, porque se por um lado sabe-se que o “dizer tudo” é impossível, por outro, a aposta de uma análise é que se possa dizer o impossível de ser dito, ou seja, dizer algo a partir do real. Fazer passar o real através do simbólico é o que Lacan nos convida no início do seminário sobre os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
O texto de Clarice desdobra-se em vários planos de intervenção em cada uma de suas frases. É preciso ler Clarice não com o intuito de respondê-la (já que ela mesma se dizia uma pergunta), mas no sentido mesmo de interrogá-la.
Vou criar o que me aconteceu.
Esta poderia ser a primeira frase de entrada em análise de um sujeito. E é assim que Clarice abre sua ficção: relatando em seguida que perdeu a terceira perna. Sua perna-sintoma que lhe dava sustentação. A perda desta terceira perna a introduz numa desorganização em sua vida, causando-lhe insegurança, pois agora quando ela parte não mais possui a garantia de poder voltar. Numa análise nunca se volta ao mesmo ponto, pois o que se repete é da ordem da diferença. A desestabilização é também seu desassossego.
Lacan, no Informe sobre Daniel Lagache, afirma que uma desestabilização no imaginário, produz uma ruptura no simbólico fazendo emergir o real.  A perda da terceira perna-sintoma, perna ilusória, vem desestabilizar as garantias imaginárias. Voltei a ter o que nunca tive: apenas as duas pernas. A dimensão da perda abre um abismo que é o prenúncio da angústia de castração: falta-a-ser. No entanto, é exatamente esta desestabilização que faz com que ela enxergue o que antes o sintoma tal como uma metáfora, encobria:
Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo – quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação.
Muitas vezes o sujeito procura uma análise não por causa de tal ou qual sintoma, mas justo o contrário. Procura-se uma análise porque o sintoma (terceira perna?) que lhe dava sustentação, garantias e sentido para a vida deixou de funcionar a contento. Digamos que a quota de gozo existente no sintoma ultrapassou em muito o ganho secundário e o prazer nele embutido. O gozo, que não serve para nada, serve para fazer o sujeito sofrer. Se só o amor permite ao gozo condescender ao desejo, talvez neste romance encontremos a saída para o sem sentido de G.H. A vida se desorganiza, perde-se o sentido e há certa nostalgia, mesmo que o antes não lhe fosse bom. Mas ao menos o sentido não era desconhecido.
É, portanto, diante do novo que o sujeito padece e faz surgir a angústia como um diabo a berrar-lhe aos ouvidos: Che Vuoi? O que o Outro quer do meu eu? O que eu era antes, não me era bom. Mas era desse não-bom que eu havia organizado o melhor: a esperança.
Aqui, através destas dimensões temporais “o que eu era antes” (passado) e “eu havia organizado o melhor: a esperança (futuro) é que se produz a quebra do simbólico porque já não há mais a palavra que garanta um sentido na vida de G.H. Enuncia-se a dimensão do real e faz com G.H. diga: Vou criar o que me aconteceu.
É um lindo recurso estilístico de linguagem e uma saída elegante para a entrada no romance, ou como disse, uma entrada em análise. Vou criar o que me aconteceu. É acentuar que tudo o que ela disser é ficção. Mas é a própria escritora que certa vez afirmou que quanto mais ficcional é um texto mais próximo ele estará da realidade. Quanto mais ficcional é um romance mais autobiográfico ele é. Portanto, recontar a história pessoal é, assim,  ficcionalizá-la. Ela vai criar o que lhe aconteceu e, sem mentir. Eu, a verdade, falo, é o aforismo lacaniano. Ou, “eu minto” e é aí quando o sujeito diz a verdade.
Então, ela está aprisionada entre dois significantes. S1= o que eu era antes, não me era bom; e S2= do meu próprio mal eu havia criado um bem futuro, o melhor, a esperança.
Ela perdeu o que tinha e não há mais esperança para o que virá. E o que sobra desta relação é um resto inassimilável: objeto a. Irrupção do real. É a partir deste instante que ela vai escrever, escreviver como disse José Castello. Escrever criando vida, ou seja, dizer o impossível de ser dito.
Clarice fala a partir de restos. É a partir daí que ela exerce seu efeito de transmissão. Em Lituraterra, Lacan logo na primeira página nos diz que a literatura é uma acomodação de restos. Em Clarice, a acomodação de restos é sua tentativa de tratar o real pelo simbólico, tal como Lacan define o que é sua práxis. A função da escrita em Clarice possui esta vertente de transmissão. É o que não cessa de não se escrever/inscrever.
Mais adiante ela diz: O inumano é o melhor nosso, é a coisa, a parte coisa da gente. Aqui, afirma-se o que na epigrafe já enunciava a questão: A vida não é relatável. Por isso, ao faltar-lhe outra palavra, ela chama de ‘a coisa’, seu Das Ding pessoal. A coisa inumana com a qual ela se defronta ao se defrontar-se com o seu mais íntimo-exterior é a barata. Ponto de gozo: angústia que recai sobre o corpo. Encontro com o pior de si mesma. Encontro com o horror que toca a fantasia fundamental. Lembro que G.H. encontra silhuetas de um homem e uma mulher em tamanho natural desenhadas a carvão na parede do quarto da empregada. E, diante das imagens fantasmagóricas nas quais ela mesmo está ali em sua incompletude mais devassável, escreve: Será preciso coragem para fazer o que vou fazer: dizer.
Aí está o real a atravessar. Contorno indefinível, corpo estranho, unheimlich que surge de um lugar de onde nada deveria advir. E ela precisa dizer sobre isso. Escreve: Adio a hora de me falar. Por medo?
Portanto, há o horror de ter visto mais do que devia como em Édipo. A respeito desta tragédia, Lacan nos faz ver no seminário 10, A Angústia: Qual é o momento da angústia?É a visão impossível que os ameaça, a de seus próprios olhos no chão. Édipo dá um passo a mais e vê o que fez.
E o que faz G.H.? Dá um passo a mais e encontra a verdade e como uma tentativa de solução de compromisso ou como que para apaziguar-se, afirma: Mas vê meu amor, a verdade não pode ser má. A verdade é o que é. Porém sabemos que a verdade sem um saber é a própria angústia. Pois é isso que a angústia é: a confrontação do sujeito com uma verdade sem anteparos, sem um saber que acomode os restos. E é esta verdade desnuda que é a coisa, o inumano, a barata, o real que ela deve comer para atravessar o pior dela mesma. E, continua ela, exatamente por ser imutavelmente o que é (a verdade), ela tem que ser a nossa grande segurança, assim como ter desejado o pai ou a mãe é tão fatal que isto tem que ter sido o nosso fundamento. ...por que teria eu medo de comer o bem e o mal? Se eles existem é porque é isto que existe.
Existirmos, a que será que se destina?, interroga Caetano.
A perda da terceira perna abre uma dimensão para o retorno do recalcado, trauma que volta sem que dele o sujeito possa dar conta. Por isso, G.H. diz:
Todo caso de loucura é que alguma coisa voltou. Os possessos, eles não são possuídos pelo que vem, mas pelo que volta. Às vezes a vida volta.


Mais, ainda.
Numa carta para Jung, Freud afirma que deveríamos “ver Helena em cada mulher”. Helena de Tróia.
No amor está em jogo um não saber. Na literatura também. Em ambos há uma acomodação de restos que se quer fazer signo para dar conta do inominável. O amante não sabe o que lhe falta e o amado não sabe o que ele tem. Agalma é o objeto a ser conhecido, capturado. O Edelweiss na beira do penhasco. Captura imaginária. Mas, na angústia, o que engana ao sujeito? É sua localização, nos diz Lacan no seminário sobre a transferência. O sujeito pensa que o capturável estaria nos objetos envelopados i(a), imaginários, quando na verdade está no real da fantasia S<>a, o que torna sua captura impossível. Objeto que falta. Objeto que escapa.
Freud nos fala de Helena como um modelo para as mulheres. Helena representa a mulher que escapa (não-toda) e aquela que é impossível capturá-la. E mais: é aquela que, como metáfora do objeto cobiçado, precipita, por sua ausência, a guerra e o amor. Na procura pelo amor está um saber ligado a um objeto causa, um saber ligado ao desejo, um saber não sabido.
Helena, um enigma. Clarice, uma pergunta.
Será que hoje poderíamos, com Freud, também dizer: Ver Clarice em cada mulher? 

quarta-feira, 13 de março de 2013

Noites azuis de Van Gogh




Nas noites azuis de Van Gogh
estabeleço tristezas indefiníveis
contornos sem abraços / traços
meridianos sem fronteiras.

A vida segue ferindo
a vida segue ferina
contorcendo-se como uma cobra que engole
o filhote de um animal.
Rugindo como o vento
quando encontra uma fresta
numa noite fria de inverno.
Abocanhando como um sapo quando engole
um inseto.

Os azuis de Van Gogh são belos e tristes.
Na Noite Estrelada
Nos Campos de Trigo
Sou o corvo que voa assustado
Sou a estrela que se assusta
na tinta em movimento.

Os azuis de Van Gogh dominam a minha vida
desde a infância / ânsia.
Lembro de Van Gogh em mim
ainda pequenino
franzino / menino
assustado / en-cantado
olhinhos manchados pelos azuis
que escorriam sangue azulado.

A noite é fria
a imagem é muita
tanta que não a absorvo
de uma vez
como se toma uma sopa
quente.

Como Van Gogh pelas beiradas.
Tenho medo...
e fascínio.
A loucura me invade
e me debruço sobre ela / tela
com a intensidade das pinceladas:
estarreço / emudeço
vivo / descubro
outras cores / dores
vangoghianas.

Me refaço nos azuis.
Hoje o holandês é o mais lírico
em sua loucura /
sua maneira de ser Quixote
que ao invés da lança alçou
pincéis...

O cinzel afiado perfura sonhos,
densidades de tinta.
O azul cerúleo escurece.

É a noite gritam trovões
É a noite gritam canhões

O sol se opõe a noite...
Dois sóis surgem no espaço azulado
É Van Gogh, grito assustado.
É Van Gogh...
mas ele já não me ouve.
É Van Gogh, ainda tento mais uma vez
com a voz já rouca.
Estarei enlouquecendo?
É Van Gogh, tento convencer-me.

Mergulho inutilmente em seus azuis.
Meus olhos se mancham novamente
com os azuis.
Do espaço vejo que a Terra é azul.
A Terra é Van Gogh
A Terra é Van Gogh
A Terra é...

... e minha voz já não ecoa cores
elas, assim como minhas palavras,
não se propagam no espaço
sideral.

A vida é Van Gogh...

Suspiro leve
quando o azul
adormece no infinito
da Noite Estrelada.