terça-feira, 14 de agosto de 2012



Amor (quase) sem fronteiras


Se o amor anda meio fora de moda ou se sua peremptória manifestação pode parecer piegas, que tal abrir um diário agora transformado em livro que é um verdadeiro hino de amor à humanidade? Nestes tempos da banalidade do amor de auto-ajuda, A noite passada sonhei com a paz, da vietnamita Dang Thuy Tram (Editora Rocco) é a constatação de que o amor pelo outro desconhece fronteiras quando está mergulhado, como é o caso da jovem médica, na forte causa libertária, não de si mesma, mas de seu povo. Seu diário transformou-se num livro grandioso porque está pautado pela ética da solidariedade, pelo amor de Thuy aos seus pacientes, sua paixão pela humanidade, sua incompreensão pela guerra e pela destruição à qual se submetem os seres humanos.
O diário começa no dia 8 de abril de 1968 e relata “um turbilhão de emoções: as preocupações de uma médica, a compaixão por um camarada e a admiração pelo soldado”. Recém-formada pela faculdade de medicina, Thuy Tram tem 25 anos quando é enviada para um hospital de campanha a 400 quilômetros de Hanói em plena guerra do Vietnã. “De lá” - escreve a americana Frances Fitzgerald, que foi uma das principais jornalistas a cobrir a guerra do Vietnã, em sua introdução ao livro - “Thuy e seus companheiros partiram a pé com mochilas pesadas nas costas e caminharam por três meses pelo que os americanos chamavam de Trilha Ho Chi Minh”.
No primeiro dia de relato, já demonstra sua delicada, sensível e, no entanto, tenaz dedicação em relação ao sofrimento alheio. Assim Thuy escreve após cuidar de um paciente gravemente ferido: “Afastando uma mecha de cabelo de sua testa, tive vontade de dizer: ‘Se eu não conseguir curar gente como você, esta tristeza não abandonará a minha carreira de médica.’” Isto dá bem a dimensão da dedicação profissional, o amor incondicional e o caráter ético que trilhará a vida da pequena e franzina Thuy e sua luta por amenizar e salvar vidas. Mas há algumas tristezas que jamais a abandonarão: a saudade da sua família, seu amor por M. (um rapaz de quem não se sabe muitas informações, apenas que também é um oficial seis anos mais velho e por quem ela tem uma paixão ‘impossível’.), além das pessoas que ela não conseguiu curar e outras que viu morrer. Na verdade, ela vai para o front para ficar mais próxima de M. e acaba transformando esta paixão em amor pelos soldados e civis feridos na guerra.
Porém, o amor de Thuy não é totalmente sem fronteiras. Há uma fronteira bem delineada em seu amor: quando este se transforma em ódio. Então surge a inevitável pergunta: é possível amar sem ódio, esta outra face obscura, cheia de sombras? É claro que não. Não acredito no amor caritativo, desinteressado de reconhecimentos. Amor desinteressado torna-se indiferença. E isto costuma ser um veneno pior do que o ódio. É verdade que muitas vezes o amor está apenas mascarado por outros subterfúgios inconfessáveis. Freud escreveu sobre o amor como sendo narcísico: o sujeito ‘amoroso’ no fundo quer algo para si - reciprocidade e reconhecimento. É claro que não precisa querer necessariamente algo pernicioso, ruim. Mas o sujeito ‘enfermo’ pela paixão – paixão vem do latim ‘pathos’, de onde surge o termo patologia que também é sofrimento – aliena-se de si mesmo em função do Outro. Então, se você está apaixonado(a), está em sofrimento. Existe no correio francês uma expressão muito interessante que vai carimbada nas cartas (de amor?) quando estas não chegam ao seu destino por alguma razão (endereço ou número incompletos): lettre en souffrance. Esta ‘letra’, esta carta de amor está em sofrimento porque não encontrou seu destino.
Assim, Thuy ama. Ama desesperadamente sua carência, sua solidão e seu destino por fazer. Ama seu amor incompreendido, busca um sentido e, portanto, se lança nesta belíssima causa humanitária: uma paixão incendiária em seu amor pelos outros. Aí está a beleza deste livro. Ela não mede esforços e transpõe fronteiras, morros, fronteiras, rios, fronteiras, tiros e bombas, muitas bombas que explodem em seus semelhantes, seus ‘irmãos’ e ao seu redor. O amor é construído com a verdade da causa que o anima e não da mentira que o persegue. Isto não quer dizer que não possa haver uma grande dose de ilusão no amor. Mas, muitas vezes é a ilusão do ‘nós dois somos um só’ que mantém a harmonia e a possibilidade de convivência entre um pathos e a alegre felicidade de um reencontro.
Não há como não lembrarmos do diário de Anne Frank: são duas mulheres, jovens, aturdidas e sofridas pela estupidez da guerra. Mas enquanto Anne está involuntariamente trancafiada com sua família, Thuy é destemida, corajosa e está na selva longe dos seus parentes.
Em 30 de junho de 1968 ela escreve: “Então levante-se, Thuy! Mesmo no meio da chuva e do vento, mesmo que as lágrimas jorrem, mantenha o espírito elevado, Thuy. Use sua vontade, sua fé na justa causa e nos ideais da sua vida, para prosseguir na jornada por esse perigoso caminho”. E clama exausta para si mesma. “Existe vitória sem suor e lágrimas, preocupação e dor, sangue e ossos, Thuy?”
Esta Antígona moderna, nunca ousou também ceder em seu desejo. Aí está a sua ética e o amor que dela deriva. Antígona queria ter o direito de enterrar seu irmão. Thuy lutou para não enterrá-los. Não há diferença. A dimensão simbólica da morte é o que as une em vida, pois esta está sempre inaugurando uma outra morte.
O diário termina no dia 20 de junho de 1970. Alguns dias depois ela foi encontrada por um montanhês: havia levado um tiro na testa pelas tropas americanas.
Alguma vez você já amou assim?

Carlos Eduardo Leal

* A Noite Passada Sonhei com a Paz. Dang Thuy Tram. Tradução do vietnamita para o inglês: Andrew X. Pham. Tradução para o português: Léa Viveiros de Castro. Editora Rocco. 2008.  (Depois de mais de 40 anos escondido por motivos políticos, este diário foi lançado no Vietnã só em 2005 e vendeu mais de 400 mil exemplares.)
Para quem gosta de ler ouvindo música: O Concerto de Brandenburgo de J. S. Bach. Existem inúmeras versões, porém a que eu mais gosto é: Brandenburgische Konzerte. La Petite Bande com Sigiswald Kuijken. Deutsche Harmonia Mundi.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012



Sobre a dor de existir

A angústia não nos aponta uma saída, mas antes, um temor irremediável frente a possibilidade da vida estar ameaçada. E a angústia é mesmo fonte de ameaça, pois diante dela não há como nos escamotearmos ou tentarmos ludibriá-la. Quando ela surge, surge também o pânico sob a ameaça de que o chão vai faltar, o ar não chega aos pulmões e fica-se sufocado. Eminência avassaladora da morte. O que Freud bem denominou de angústia, os psiquiatras denominam hoje de síndrome do pânico. É um conceito generalizador e que acaba com a sutil filigrana da clínica diferencial e do diagnóstico específico de cada sujeito. Como síndrome, cabem todos. Como angústia, é a história subjetiva de cada um. A clínica psicanalítica caminha, ao contrário das teorias universalistas, do universal para o particular. As outras tentam fazer um pan-generalismo como se fossem religiões que explicam tudo.
O despovoador (1970)(Martins Fontes Editora), texto tardio de Samuel Beckett (1906/1989), é essencial para pensarmos a angústia. A cena se passa toda dentro de "um cilindro de cinquenta metros de circunferência e dezesseis de altura em nome da harmonia (sic), ou seja, mais ou menos mil e duzentos metros quadrados de superfície total sendo oitocentos de parede. Sem contar os nichos e túneis. Onipresença de uma fraca claridade amarela sacudida por um vaivém vertiginoso entre extremos que se tocam. Um corpo por metro quadrado, ou seja, um total de duzentos corpos número redondo". Beckett não nos diz quando isso começou, ou seja, quando ou como eles entraram lá. E, na verdade, não precisa, pois a princípio, a angústia não tem origem e nem fim. Eles estão lá e é o que basta. Estão sem saída. E isso não basta. Crianças recém-nascidas, jovens, adultos e velhos, divididos em algumas categorias: os vencidos, os buscadores, os agitados e os sedentários. As escadas para se alcançar os nichos e os túneis são poucas e faltam degraus. Ainda por cima, deve-se obedecer uma certa ordem circular, como no Inferno de Dante, para se alcançar a possibilidade de subir e descer os círculos do cilindro. Quando esta ordem é quebrada, a violência é escutada através dos murros e cabeçadas. A iluminação é fraca, mas o olho acostuma-se a tudo e a temperatura, "ela leva menos de quatro secundos para passar de seu mínimo que é de cinco graus a seu máximo de vinte e cinco, ou seja, uma média de cinco graus apeenas por segundo". A precisão numérica/métrica/termoelétrica de Beckett só faz aumentar a dimensão cirúrgica do cinza-sem-saída da angústia na qual vivem as duzentas pessoas no cilindro. Ao contrário de Saramago em seu Ensaio sobre a cegueira, Beckett não precisa aludir às escatologias humanas para dar o tom de fim-de-mundo. Na verdade, ele nos fala que o cilindro é incômodo para o amor, a pele fica ressecada e sujeita a arrepios e "a ereção é rara". Isso basta para nos dar a ideia do desassossego da alma tal como em Fenando Pessoa. Como dissemos sobre o indizível que é a angústia, Beckett também nos alerta que "nem tudo foi dito e nunca será" nos antecipando um fim sem fim. Talvez esta seja uma bela metáfora para a própria vida, pois o homem busca tanto saber sobre sua origem para tentar saber sobre o seu fim. Com isso ele ilusoriamente imagina que  poderia em seus pensamentos, ao tentar antecipá-lo, saber um pouco mais sobre si e, portanto, desangustiar-se. Mas o cilindro só oferece mistérios. Ali ninguém se deita e "ninguém olha para dentro de si onde não pode haver ninguém". 
Se a angústia é pressentida como uma dor de existir, o caminhar na vida através da análise - embora muitas vezes seja extremamente difícil -, é uma aposta que depois da dor, a luz que a palavra revela compensará o caminho percorrido.

Carlos Eduardo Leal  
Psicanalista e escritor
Para quem gosta de ler ouvindo música: “Then I close my eyes” David Gilmour – Live at the Royal Albert Hall. DVD.