sábado, 23 de junho de 2012

A vigésima sétima letra



A vigésima sétima letra

Quando criança escutava a inquietante história contada pelo meu avô sobre a letra inexistente. Era uma ficção com certeza inventada pela sua mente fértil, mas que era contada com tanta veracidade que às vezes custava a dormir pensando numa letra que não existia. Achava um pouco absurda a história, mas entre desacreditar meu avô e ficar maravilhado pelas suas fabulações, preferia sempre este último caminho. Para mim, que sempre fui tão cartesiano, tão racional e obsessivo, as coisas eram ou não eram. Como o Pausânias de Platão: o ser é e o não ser não é. Simples assim. E a vida se resolvia numa equação que nunca deixava restos. Isto era a felicidade alcançada.
Por sorte, herdei a estupenda biblioteca do meu avô. Seu gosto pela leitura veio também sem nenhum esforço. Todos os dias após o jantar acendia o abajur, pegava um livro na estante e recostava-me na poltrona da sala para devorá-lo noite adentro.
Certa noite, sem saber que livro escolher, deparei com um antigo Dicionário de Masculinos e Femininos da Língua Portuguesa de Aldo Canázio da Livraria Freitas Bastos. Uma bela edição de capa dura, lombada em couro, com filetes dourados, de 1923. Sem me importar a razão, mas apenas movido pela curiosidade, abri o enorme dicionário no colo e passei a folhear distraidamente as grossas páginas. Já estava quase fechando, porque minhas pálpebras igualmente o faziam, quando me deparei com uma página em branco. De início pensei ser apenas uma falha de impressão, mas logo minha vista desceu até o canto inferior esquerdo. E lá estava ela. A letra inexistente. Senti um frio correr pela minha espinha e lembrei imediatamente da história do meu avô. Então seria verdade? Ou já era um truque do meu sono que me aprontava uma iguaria para meus sonhos? Esfreguei os olhos para certificar-me que estava bem desperto. Senti minhas pernas dormentes pelo peso daquele enorme livro. Eu estava muito acordado em meu desassossego. O que não deveria existir estava, no entanto, bem defronte dos meus olhos.
Agora eu tinha certeza. Era a vigésima sétima letra da qual meu avô tanto falara. Fiquei inquieto e uma espécie de estupor hipnótico tomou conta de mim. Conto isso para que vocês testemunhem comigo a verdade deste relato. O que era ficção, a partir daquele instante tornava-se realidade. Dura, difícil e incompreensível realidade, devo admitir.
Desde aquela noite não durmo mais. Minha vida acabara de se tornar uma página em branco e eu era fustigado pela letra ausente a todo instante. Comecei a querer estudá-la e percebi que ela só surgia pela sua omissão ou pelo vazio que denotava. Uma letra que não está no lugar onde se espera lhe dá a possibilidade de estar em qualquer lugar. Eu era invadido por uma estanha paranoia persecutória. Eu que tanto caçara as letras e as palavras, me via agora numa posição de vítima diante de seu algoz.
Tentei escrevê-la para ver se, ao fazer isto, me livrava daquele incômodo. Mas percebi que fui tomado por uma compulsão e que jamais pararia de escrevê-la. Inundei páginas e mais páginas de um antigo caderno de anotações. Tudo foi em vão. Pela sua ausência tornava-se insistentemente presente. O que de início pareceu-me novidade, acabou por se tornar um estorvo. Já não conseguia dormir, pois passava a noite a procurá-la como num jogo de adivinhações em que a cada pergunta respondida fazia surgir imediatamente outra imperiosa pergunta ainda mais misteriosa e desafiadora. O benefício da escolha não me fora dado. Eu tinha que responder à existência daquela letra.
Estava inapetente, magro e já apresentava sinais evidentes de fraqueza. Como não saía mais de casa a pele amarelava sob a luz artificial que me consumia. Tudo era artificial tanto quanto aquela verdade que não queria se calar. Ficava horas olhando para os poros da minha pele escamosa, pois desenvolvi a precisa convicção de que a letra poderia aparecer em qualquer parte do meu corpo. Aquilo se tornou uma obsessão e andava tão deprimido que preferia já estar morto. Aliás, eu era um morto-vivo. Mortificava-me pela vigésima sétima letra. Aquela que não existia. A vida me consumia e não achava mais graça em viver. Desenvolvi um rígido pensamento sobre o suicídio, mas a complexidade era tanta que precisava eliminá-la antes de me matar. Mas como eliminá-la se não conseguia encontrar nem vestígios de sua existência? E, no entanto, estava lá. Presente como se fosse um duplo de mim.
A ideia fixa de encontrá-la era o fio de ilusão que ainda alimentava alguma esperança quotidiana. O telefone tocava e eu não atendia. Ouvia baterem à porta e ficava horas em mortal silêncio para fingir-me de morto. Para quem? De certo que para ela. O mundo lá fora não tinha mais nenhuma importância para mim. Tudo me era cinzento. O pensamento possuía esta cor. Naufragava vertiginosamente num abismo da alma.
Por acaso a vida estaria reduzida a uma letra? Como era possível? Eu me inundava de perguntas infrutíferas mal surgiam os primeiros raios da manhã. Passava dias inteiros ardendo em febre, suando e sem forças sequer para tomar banho. Meu estado não era nada bom.
Ao longo dos anos havia construído uma notável biblioteca. Costumava dizer aos amigos que não casara, não tivera filhos, mas tivera livros. Em abundância. Herança avoenga, com certeza. Alguns achavam esquisitice minha esta mania com os livros, mas tinha amigos fiéis que costumavam vir a minha casa nos finais de semana para conversarmos sobre literatura e bebermos um bom vinho. A minha condição de funcionário público razoavelmente bem remunerado, rendia-me certas regalias como o horário previsível e a condição de ter conseguido financiamento para a compra do meu apartamento próprio. Desde o início pensei num quarto que seria transformado em biblioteca, mas com o passar dos anos, as estantes alastraram-se pela casa. A rotina diária dava-me segurança e conforto. Tudo me era previsível.
Mas, com tantos livros ao meu redor, com estas mesmas estantes rodeadas por milhares de palavras, percebia derrotado que nenhuma era suficiente para preencher a ausência que aquela letra que possuía. Ela continha todas as significações possíveis e, ao mesmo tempo nenhuma. Estava em todos os lugares, mas não existia. O meu conforto e a minha rotina havia sido estraçalhadas.
Uma grave melancolia preenchia pesadamente a minha alma. Uma espessa bruma me envolvia tal como um sapo que com sua língua nojenta, engole num brejo lodoso, o minúsculo inseto pousado sobre o limo de uma pedra.
E era eu o inseto larvar. Era eu o inseto que não conseguia se libertar da teia que aquela letra tecia ao redor de mim. Mumificava-me para uma eternidade que eu não havia pedido. Sentia-me como um condenado à forca que não sabe o crime que cometeu. Teria sido ouvir demais o meu avô? Será que algum dia ele com suas histórias quis me alertar para jamais abrir este livro? Então por que não me avisou sobre este infortúnio? Teria sido esta herança que ele quisera me presentear? Agora ouvia-o bem ao explicar-me as mil razões do aparecimento da vigésima sétima letra. Agora fazia algum sentido do por que ele insistentemente me contava a mesma história. Uma história sem fim nem começo, mas da qual eu sabia muito bem o enredo. E era deste mesmo enredo que eu sofria a dor de existir.
Os anos passavam arrastados. As pessoas passavam ao largo de mim. Meu pensamento já não me ajudava a sair daquele torvelinho. Sabia que meu fim estava próximo. Meu corpo havia envelhecido precocemente. Sim. Estava severamente doente. Doente de uma doença incurável. O vigora da minha idade havia se esvaído como o sangue de uma jugular aberta a navalha. Quantos anos eu tinha? Um século, talvez. Tudo era secular. Tudo me era antigo que já não cabia nenhuma palavra nova. As rugas dobravam-se pesadamente sobre aquele dicionário pousado como uma densa sombra sobre meu colo. Havia afundado num poço sem desejos. Portanto, sem promessas nem esperanças. Não, não havia mais nenhuma esperança.
Foi quando num último esforço supremo, dotado de uma coragem hercúlea, tive o ímpeto de virar a página em branco.