quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Palavras


Das palavras não guardo distância alguma. Nem quero porque quando quis me perdi. Foi assim: era criança e não sabia da carência da palavra em não ser escrita ou escutada. Entrei matadentro e não ouvi quando meu vô me chamou. Fui ganhando terreno, mas perdendo em referências. A voz do meu vô era bússola para mim. Sem norte, a noite avançou e comecei a distanciar-me de mim. Ao longe ouvia um cachorro uivar. Tive medo. Medo porque não tinha mais com quem falar. Então, comecei a falar comigo mesmo e a escrever na terra o que eu não sabia. Foi o que me salvou. Deste dia em diante não parei mais de inventar histórias (que me servem de bússolas) e de escrevê-las. Meu vô, onde estiver,  ainda ri das minhas sandices.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Estrangeiro

  

Sou sempre estrangeiro das minhas palavras.
A cada vez me apresento como se não as conhecesse.
E recomeço a cada dia com uma palavra nova em meus olhos.
É preciso namorá-la, digo para mim mesmo.
Então pego lápis, papel, óculos e talvez o notebook.
Escrevo seu nome uma enormidade de vezes até que não seja mais um nome, mas uma parte de minha pele.
É quando me sinto totalmente vestido da nova palavra que me despeço das roupas. E a cada nudez é uma parte de um texto que começa a brotar até que meu corpo todo se torne um livro para sua leitura.
Quanto menos visível estou, mais nítidas se tornam minhas palavras. 

sábado, 18 de fevereiro de 2012

A horta de minha bisavó


Minha bisavó plantava palavras na horta. Era pra ser escondido de todos. Pra que isso, vó? perguntei inquieto. Bisbilhotice de menino que descobre segredo proibido. O que você faz aqui a esta hora, menino? To espiando vó. Só isso, respondi encabulado. Ela descansou a terra sob suas mãos e sorrindo disse: letras, palavras que precisam ser adubadas. Elas um dia vão crescer e virar histórias. Como as que a senhora conta? Melhores, meu neto. Impossível porque as da senhora possuem a sua voz melodiosa.
Seus olhos encheram d'água. Com as mãos negras de terra me afagou os cabelos. Duas ou três letras rolaram pelo meu rosto. Ainda não formavam uma palavra, mas senti o gosto de uma intrigante história por vir. Que história a senhora está plantando, vó? A fantástica história de um menino bisbilhoteiro. Cúmplices, sorrimos com os olhos.
Com as mãos trêmulas de emoção abri um buraco na terra adubada e ajudei a plantar algumas palavras...

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Sonhos


Do alto de meus intervalos, abismei um olhar sobre o mar: ondas varreram minhas praias, noites ofuscaram meu cansaço, minhas mãos trêmulas decantaram desamparadas sobre frágeis inspirações. Alisei uma pedra como se fosse uma lâmpada mágica. Desesperança: não saiu um gênio de seu interior. Nenhuma palavra. Mas eu queria falar para os intervalos que me habitavam. Reuni todas as forças e gritei o mais alto que pude. Uma, duas, muitas vezes. Não houve resposta. O silêncio sempre é uma resposta, habituei. Os silêncios são meus intervalos, deduzi. As ondas continuavam a bater contra meus ombros. Estava cansado do dia. 
Deitei sobre a luz que ainda havia. Esperei que a noite pudesse a-dor-mecer os insultos e os temores infantis. Sonhei...