domingo, 29 de janeiro de 2012

Adeus palavra-saudade


Adeus palavra-saudade.
Aqui me despeço de ti. Não sei se tornarei a vê-la.
Se o tempo /
Caminhar além do tempo, e os braços além dos abraços /
E minha mão pender solo em meu voo, não procure explicações.
O sentido das coisas perdidas não é o mesmo do que separo com certo zelo desmesurado para guardar.
Quando caminhar procurando cheiros olvidados /
Metáforas distorcidas /
Lençóis ensanguentados /
Nada vais achar.
Se a dor /
For implacável, mesmo assim não olhe pra trás,
Muito menos procure acasos ou desesperos em meus olhos.
Não contamines as outras palavras tão minhas. Não queiras roubar uma lembrança que já não há.
Por acaso, roubarias o silêncio do silêncio?
Ou pouparias da dor o desespero?
O vazio ocupa a sala central e a ruas adormecem sem ti.
Adeus palavra-sentida.
Adeus. 

domingo, 22 de janeiro de 2012

Os escritores e os dias

    


Existem dias que acordo Fernando Pessoa. Então a vida me desnorteia em muitos eus profundos. Nestes dias desassossego em poesias e heterônimos. Corro para a Tabacaria mais próxima e fico absorto, sem metafísicas. Percorro Campos, perscruto Álvaros e Bernardos. Tenho abalos sísmicos com Ricardo Reis até que de repente tudo se acalma e quando vou ver a bruma noturna já engoliu o dia.
Existem dias que acordo Clarice Lispector. O mistério ronda a alma, o amor me acolhe de maneira incompreensível e quero pular para dentro de todas as palavras que ficaram interrompidas, todas as reticências que iniciaram frases. Dias assim, tenho saudades do bonde, do Jardim Botânico e de Macabéa. Preciso me recolher ao quarto da empregada e cheirar passados. Ulisses é a angústia por vir: medo e insegurança diante da aprendizagem do amor...e dos prazeres.
Existem dias que acordo Raduan Nassar. Então o incesto brota de forma larvar nas minhas reminiscências avoengas. Estou só. Planto Lavouras Arcaicas e sinto o ódio subir a sebe quando as putas das formigas destroem relações e transbordo copos de cólera.
Existem dias que acordo Samuel Beckett. Acordo com intermitências gritando nas veias: tento. fracasso.  não importa. tento outra vez. fracasso de novo. fracasso melhor. tento de novo. falho de novo. falho melhor. Nestes dias não consigo parar de escrever. preciso parar de escrever. não quero parar de escrever. não posso. preciso. ainda mais. mais, ainda.
Existem dias que acordo Guimarães Rosa. Redemunhos e cãos ladram ao redor das minhas ideias. Tudo é um urubuquaquá no pinhém. Pego espingardas, chamo jagunços, embrenho sertões e amo Diadorim. Dias assim são para reinventar pedaços que ficaram desnorteados na vida. Os buritis dão sombra para minhas veredas. Fico na terceira margem das palavras banhando-me nas encostas da alegria. 
Existem dias que acordo Carlos Drummond de Andrade. O mundo torna-se grande como numa janela sobre o mar. Pergunto por José. E agora José? O tempo, o amor e o desejo respondem de outros lugares. Mergulho em poemas e memórias: "Amar o perdido/deixa confundido/este coração." Drummond é uma vida inteira em mim. 
Existem dias que acordo Dostoievski. Então acho, não sem culpas, que a beleza salvará o mundo. Cometo crimes e espero pelos castigos. Sou um idiota, mas é deste lugar que posso dizer o que quiser. 
Existem dias que acordo Nicolai Gogol. Então quero ser um inspetor geral das coisas que ainda não sei. E me faço passar por comprador de almas mortas. Sou rico. Farsantemente rico e opulento. E desdenho burguesias a ponto de meu nariz andar em pé sozinho, destacado do meu corpo.
Existem dias que acordo Machado de Assis. Então sou um bruxo do Cosme Velho e tenho ciúmes doentios de todas as capitulinas que me cercam. Faço uma canção para a missa do galo e desconheço-me se me retiram os espelhos. Em dias assim a dualidade da alma fica aos destroços.
Existem dias que acordo Nelson Rodrigues. Bonitinho, mas ordinário. E eu que não sou fluminense vou a todos os jogos deste time e creio na vida como ela é: "é impossível amar e ser feliz ao mesmo tempo" ou digo que "pouco amor não é amor". Dias assim, transbordo erótico. 
Exstem dias que acordo Paulo Coelho. Ai, nestes dias quero me matar. Nem levanto da cama porque acho que ainda estou tendo pesadelos...

sábado, 21 de janeiro de 2012

A palavra


Não tinha mais do que 10 anos quando ganhei um cavalo no sitio do meu avô. Era marrom e branco, sela novinha. Meus olhos custaram a acreditar quando meu avô me pegou pela mão e falou: "Venha cá, meu neto. Tenho uma surpresa para você." Era numa manhã em minha vida. Não cabia de tanta emoção. Excitação maior de menino criado em sitio é ganhar um cavalo. 
Até então, caçar passarinho com visgo, mergulhar no açude, subir nas árvores para pegar fruta fresquinha e ver lagarta comer couve na horta eram diversões absolutas. Mas, naquela manhã, tudo mudou. As nuvens cederam espaço para o azul, os horizontes declinaram do sem fim, as montanhas tornaram-se planícies e o mundo estava em minhas mãos. 
Com ajuda do vô subi radiante no cavalo. Já tinha cavalgado umas tantas emoções quando o inesperado aconteceu.  Uma cobra fez o cavalo empinar e caí. O cavalo fugiu em disparada, a dor na mão era lancinante, o choro desassossegado. Estava tão desolado em mim quando outra emoção ainda mais forte do que ter ganhado um cavalo surgiu inesperada. Como se fosse possível. Era possível? Aquele dia não teria mais fim? Não na minha memória. Todas estas dores foram amparados pela filha do caseiro, uns três anos mais velha do que eu. Nunca havia prestado atenção nos olhos esverdeados dela que quase sumiam por detrás da mecha de cabelo castanho que deitava sobre sua face. De vestido branco, quase puído, estampado de flores amarelas e azuis, inclinou-se sobre mim encobrindo o sol. Sua sombra de contra luz fez com que eu pudesse  de um único lance, ver a silhueta de seu corpo e me enxergar através dos seus olhos. Estendeu-me a mão e disse com uma suavidade na voz que eu nunca tinha escutado: "Vem, não tenha medo. Vou cuidar de você." 
Foi a primeira vez em que a palavra tornou-se feminina para mim. 

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Bartolomeu Campos de Queirós



A infância brincava de boca de forno, chicotinho queimado, passar anel ou corria da cabra-cega. Nossos pais, nesta hora preguiçosa, liam o destino do tempo escrito no movimento das estrelas, na cor das nuvens, no tamanho da lua, na direção dos ventos. O mundo não estava dividido em dois, um para as pessoas grandes, outro para os miúdos. As emoções eram de todos.” Bartolomeu Campos de Queirós - Indez

Não é fácil se despedir de quem se ama. Toda despedida, se for sentida, torna-se saudade antes mesmo da partida. Saber da morte de um escritor, por mais que ele tenha deixado muitos livros, traduzidas em frases líricas, poéticas, histórias infantis, juvenis não é fácil. 
Descobri o Bartolomeu já tarde. Gostaria de ter sido um menino (embora ele não escrevesse nesta época) para tê-lo lido desde cedo. A minha identificação com ele se deu através da simplicidade. Mineiro, gostava das coisas corriqueiras e acreditava que espanto era coisa que se aprendia com a alma aberta tal como a lua de boca aberta para as estrelas. 
No sitio de meu avô as coisas eram assim. Se de dia ia para a horta é porque haveria de estar na mesa a couve que eu havia visitado cedinho com minha bisavó. Se ia ao galinheiro, no almoço lá estava o  frango ensopado com as batatas. A morte era apenas a continuação do dia de outra maneira. As montanhas (sempre acreditei nisso) encontravam o céu em seus cumes. A vertente da montanha conversava com as estrelas durante a noite. De manhã cedinho eu ia contar as estrelas cadentes. Certa manhã cheguei a contar mais de cem. Elas diminuíam incrivelmente de tamanho e transformavam-se em gotículas d'água nas folhas de inhame. Foi meu avô quem me ensinou isso. Nunca duvidei de sua sabedoria para crianças.
Tinha com o Bartolomeu uma relação assim de neto para avô. 
Hoje perdi outro vô contador de histórias e causos. Mas, não há de ser nada. Amanhã vou subir novamente no alto da montanha e tocá-lo com a ponta de meus dedos.
Até amanhã, Bartolomeu. 



O escritor mineiro Bartolomeu Campos de Queirós morreu na madrugada desta segunda-feira (dia 16/01/2012) em Belo Horizonte. Autor de mais de 40 livros, ele morreu em decorrência de insuficiência renal, informa a agência EFE.
Queirós tinha 67 anos, não era casado e não deixa filhos. Ele sofria de problemas nos rins e fazia hemodiálise regularmente. Ele estava internado no Hospital Felício Rocho
Seu corpo será velado esta tarde na Academia Mineira de Letras, da qual Queirós era membro.
Rafael Munduruca/Divulgação
Bartolomeu Campos de Queirós
Escritor Bartolomeu Campos de Queirós morreu nesta segunda-feira em Belo Horizonte
Nascido no município de Pará de Minas (MG), mestre e crítico de arte, trabalhou em diversos projetos de incentivo à leitura patrocinados pela Biblioteca Nacional e pelo Governo de Minas Gerais.
O autor estreou na literatura em 1974 com "O Peixe e o Pássaro" e se dedicou principalmente à literatura infantojuvenil. Seu trabalho mais recente é o autobiográfico"Vermelho Amargo", lançado em 2011.
Segundo a assessoria da editora Cosac Naify, ele deixa um trabalho inédito ainda sem título e sem previsão de publicação.
O autor recebeu inúmeros prêmios, entre eles o Jabuti, maior condecoração literária do país, e o prêmio Ibero-americano SM de Literatura Infantil e Juvenil de 2008. Bartolomeu foi, além disso, finalista em 2010 do prestigioso prêmio internacional Hans Christian Andersen de Literatura Infantil.
O prêmio Ibero-americano SM reconheceu "a transcendência de sua obra que se manifesta na profundidade dos temas abordados, o respeito pelo leitor, os desafios que teve de enfrentar, seu compromisso com a arte literária sem concessões e o caráter poético e filosófico de sua obra".

(Da Folha.com - Ilustrada)