domingo, 20 de novembro de 2011

A paixão pelo Outro

 


Psicanálise e Literatura: a paixão pelo Outro

Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.
                                                                                      Guimarães Rosa

         A literatura é uma paixão. Mas, ela própria conta histórias de amor e paixão humanas, demasiadamente humanas. A paixão é um sentimento e um afeto, no qual o sujeito vive a intensidade transbordante da alienação pelo Outro. Tudo gira num turbilhão para o sujeito como se num primeiro momento da paixão ele tivesse encontrado com a parte que lhe faltava e se tornado uma espécie de deus no Olimpo dos seus sentimentos. A sensação de grandeza e plenitude da alma, o bem-estar que o acompanha neste encontro com o Outro o torna radiante como quem possui a certeza de ter encontrado um pote de ouro ao final do arco-íris. A paixão pelo Outro comporta um grau de ilusão que pode ruir com a verdade  proclamada.
No oceano das paixões, no mergulho da vida quotidiana de cada um, tudo que podemos encontrar possui a descomunal e abissal característica de ser superlativo. Aliás, o inconsciente é superlativo. Tudo nele é desmesuradamente enorme, ou diminutamente pequeno, ou engenhosamente distorcido.
As paixões são, na verdade, ecos das lembranças do amor infantil. Este amor vivido em tenra infância marca o compasso que regerá a vida futura de cada sujeito. Data deste tempo o que podemos escutar sobre o que foi o inesperado descobrimento do corpo, a surpresa das primeiras identificações, a luxúria dos primeiros banhos compartilhados, o fascínio da captura dos primeiros olhares maternos, o (des)encontro com o olhar do pai, o inquieto e algumas vezes angustiante confronto com os enigmas, a vontade e a diversão em decifrá-los, a turbulência dos primeiros sonhos, a alegria pela vida e o temor angustiante pela presença do obscuro da morte.
 Quando surge o Outro da paixão, o sujeito é tomado por um afeto que o abalará para sempre em sua vida. Nada será como antes. A paixão é um divisor de águas na qual o sujeito perdeu o leme e a bússola que o guiava, e o que é pior, sem saber disso.


Menu Leia saborosamente “A paixão segundo G.H.” de Clarice Lispector. Reserve. Adicione pouco a pouco “A terceira margem do rio” de Guimarães Rosa. Na mesma panela vá lentamente refogando sua imaginação com pitadas da psicanálise. Leve ao forno bem quente por uma hora. Sirva em seguida para a degustação e o debate.

Ps: O projeto "Baco e Sophia: conhecimento e prazer" aconteceu em 2006 em alguns restaurantes do Rio. Este foi o release para minha palestra no restaurante Margutta em Ipanema. A encontro dava direito além da palestra, a um jantar com vinhos fornecidos pela Grand Cru.  

domingo, 13 de novembro de 2011

Palavras enxertadas

  Graham Roumieu
Justine Beckett

Quando era menino, gostava de inventar palavras. Com cuidado, porque ainda não sabia muito bem como fazê-lo. Seguia os passos do meu avô que inventava enxertos para as plantas. Dálias com dracenas. Tangerinas com laranjas. Manjericão com alecrim. Orégano com lascas de macarrão (os temperos já saíam com a dose certa). Ciprestes, ele enxertava com enfeites de Natal. Ele era um inventor de impossibilidades. Em sua magia, todas davam certo. Madeiras-de-lei com árvores transgressoras. Ele mesmo ria de suas invencionices. Eu achava graça, mas curioso, prestava muita atenção com a seriedade possível para um neto que via em seu avô a saída para a monotonia do mundo. Com afinco, portanto, seguia inventando novas palavras nascidas do enxerto de duas anteriores. Porém, certo dia, talvez por descuido infantil, desinventei uma palavra. Fiquei triste como se o mundo dependesse daquela palavra para existir. Era meu mundo que rondava perigo. Mas, para minha surpresa, meu avô não brigou pela minha desinveção. Ao contrário. Achou bonita aquela palavra inexistente. Ô meu neto, ele disse, como você fez para criar uma não palavra? Na verdade era uma palavra feita no amanhã. Ainda não existia, portanto. Ela possuía uma cor nunca vista, exuberante, que descortinavam meus olhos para as estrelas. Um aroma das manhãs orvalhadas dos campos virgens e uma textura que não cabia em nenhuma gramatura de papel.  Assim, foi tanta emoção, que acabei por abrir as duas mãos (pois ainda a guardava inseguro como quem pega no escuro um vaga-lume) e feliz, com lágrimas autênticas nos olhos, consegui senti-la a acariciar-me a pele. Pude vê-la voar suave num movimento espiralado em direção aos céus. Ainda hoje a reencontro sempre que sonho e olho apaixonado no brilho dos teus olhos.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Teatro-linguagem



Cena 1 - Sirvo-me das palavras em desuso para fazer um ateliê de antigas emoções. Costuro cenas no teu corpo ensolarado com a luz que brota dos teus olhos. Deste filme-êxtase recorto frames de felicidade e os penduro no varal dos sentidos perdidos. No antigo galpão de instalações desavisadas, adormeço sobre tua pele e acordo grávido de nós dois. (Fim do primeiro ato)
Cena 2 - As roupas insinuadas dançam sobre uma poltrona nua verde água. Um raio de música perfuma o ambiente. Inebriados, loucos, quase-estrelados, rodopiamos feito marionetes azuladas. Fios brancos pendem sob nossos ossos expostos. Há uma água que cai veloz por detrás dos nossos sonhos. Vamos nos banhar. Retiramos algumas letras (as mais preciosas) do corpo. Não chegam mesmo a formar sequer uma palavra. Mas as abandonamos sobre o assoalho fresco, ainda com a lembrança dos nossos corpos. Um vento mais duro parece que vai varrê-las para longe. Estaremos realmente despidos se isso acontecer. E não haverá nova possibilidade. Trememos um medo imaginado. O abraço é forte, mas não sensual. O silêncio varre o vento. Estamos a salvo. (Fim do segundo ato)
Cena 3 - O calor encobre horizontes. Penso em você como um horizonte sobre o qual não quero adormecer. Debruço-me sobre a linha que divide céu e mar. Ouço um grito. Outro. Depois outro mais forte. Um riso descontrolado. É você em mim. Desce o pano. (Fim do terceiro ato)
Cena 4 - Só há um feixe de luz no canto do palco. Corremos para lá com o intuito de nos banharmos de um pouco de lucidez que vinha do lado de fora. Não precisávamos de muita. Era só para não cairmos nos esquecimento de quem éramos um para o outro. Nossos cílios se tocaram. Havia tanta intensidade naquela curvatura de corpos que se existisse uma corda, seríamos um instrumento. Tocamos mesmo assim um ao outro. Era leve e agradável. Houve um som. A mais linda música imaginária. E dançamos nus ao som da intensidade indescritível para o grande palco da vida. Cai o pano. (Fim do quarto ato)
Cena 5 - Corre! Corre! Corre! Eu grito numa espécie de insanidade coerente. Você vem de lá e ziguezagueia na minha frente como alguém que se afasta de um perigo que não se sabe de onde nem o quê. Tomo sua mão como que para dar-lhe uma direção. Você está suada. Exausta de tanto gesticular. Me pergunta em qual direção. Ponho a sua mão molhada sobre meu peito na altura do meu coração. Você estanca imóvel. Sorri imóvel. Me abraça imóvel. Escorrega imóvel sobre meu corpo. Agora teu suor é outro. O perfume que exalas do teu sexo também é outro. Excitada, olha para mim e, decidida, afirma: vou correr mais. A luz se apaga. (Fim do quinto ato)
Cena 6 - Dois feixes de luz descem em paralelo (distantes uns dois metros) do teto até o chão. Estamos aprisionados dentro deles. Continuamos sem nossas roupas. Eu falo que precisamos sair desta claridade com urgência. Você não me escuta, mas diz a mesma coisa. Eu também não te escuto. Estamos olhando para a frente como se não pudéssemos olhar um para o outro. Grito o seu nome. Você não olha. Você grita o meu. Para mim não há som nenhum. Falamos ao mesmo tempo coisas incompreensíveis. Parecemos já exaustos. Tentamos arrancar a luz que nos circunda sem sucesso. Falamos ao mesmo tempo: Não há salvação. Olhamos para o chão e percebemos um livro. Ele estava lá? Desde quando? Falamos juntos. Com cuidado como se debruçássemos para segurar a mão de uma criança prestes a despencar de um desfiladeiro e pegamos o livro. Há muita poeira nele. Sopramos. O pó atravessa os raios de luz. Abrimos o livro e conseguimos dar um passo para fora da luz. Há um livro que nos guia. Eu disse para ela. Não precisamos mais desta luz artificial. Ela me olha, sorri, assente com a cabeça e depois com os olhos. Com o livro ainda aberto numa das mãos, andamos em direção ao outro até nos darmos as mãos. As luzes vão diminuindo. Só existe a silhueta de nossos corpos. Continuamos andando até cairmos nos olhos do leitor-espectador. (Fim do sexto e último ato)