domingo, 23 de outubro de 2011

Poltrona imortal



Meu avô lia
A vida
A vida também ia.

Meu avô morreu
A morte
Dele também findou.

Agora sou eu
A ler, solitário
A vida.

A poltrona
Permanece, imóvel 
Imortal.

Lembro suas mãos
Que liam, ávidas
Virando pensamentos.

Aqui estão 
O cheiro, a voz
Pássaro desfolhado.

Ficou um vazio
Não é céu, nem limbo
Saudade, sim.

Há uma biblioteca
Enorme, vazia
Na poltrona.

Meu avô
Em silêncio, imortal
Fazendo ausência.

Eu sentado
Lendo, no silêncio
Seus restos.

sábado, 22 de outubro de 2011

A Testemunha ou, A Mulher e o Amor

 
A função do olhar na obra de Clarice Lispector possui um papel desconcertante. É um olhar que não acomoda, não captura o todo, não silencia e mais, desassossega. Um olhar que se abre para o espanto, para a alegria do pecado maior, para a dor, para a descompletude do Ser. Mas, ao mesmo tempo, ousadamente extrapola os limites de onde deveria se encontrar. É um olhar que deseja saber mais do que deveria e acaba por encontrar o que não esperava: restos fragmentários do feminino que assim, aos poucos e a cada vez, começam a costurar o manto de um longo e difícil aprendizado. Um quebra-cabeça sofisticado e misterioso. Simples e imagético. Profundo, verdadeiro e sensível. Como ela própria diz: "mas, veja meu amor. A verdade não é boa nem má. Ela é o que é." Assim é o encontro do olhar de Clarice com a verdade que se esconde por detrás da verdade: a ficção por vir. 
O que nos interessa, enquanto psicanalistas, a função deste olhar? Até aonde ele pode nos levar? Qual é a relação do feminino, a mulher e o olhar nos textos clariceanos? 
A mulher encontra o amor ao mesmo tempo em que lhe é revelado nada saber sobre ele? No amor está em questão um não saber? A angústia é definida: a) como uma certeza sem um saber e; b) como algo que não engana. Então, para a mulher, qual é a relação entre o descortinar do amor e a angústia? Seria verdade, como afirma Kierkegaard, que a mulher se angustia mais que o homem (frente ao desejo do Outro)?
Questões que serão discutidas na palestra:
"A testemunha: a angústia de ter visto mais do que devia." Psicanálise e Literatura ou melhor, Psicanálise e Clarice Lispector.
Terça-feira, dia 25/10 às 20:30. Rua Lemos Cunha, 442, Niterói.

domingo, 16 de outubro de 2011

Saudade


Odisseia





Há um ódio que não estanca,
Há um amor que não desanuvia,
Há uma queimação que desassossega,
Há um frio que não abraça.
Porém, de tudo o que a antiga musa canta, vida é o que não há. E o nome luso-brasileiro para isto é saudade. Saudade não estanca, não desanuvia, não sossega e não abraça. Tenho saudades de mim. Tenho saudades de mim contigo. Tenho saudades a fazer litoral para minhas ondas. Tenho saudades cá nesta região, neste sítio do meu corpo que só tu conheces e, por conheceres tão bem, inaugura-me já com teus beijos.

(Ainda lendo com sotaque português)




sábado, 15 de outubro de 2011

Desajeitos

Desenho de Tim Burton

Desajeitos
                 Pensando em Fernando Pessoa (ler com sotaque português)


Sou um sujeito desajeitado para a vida
Sou um sujeito desalinhado para nuvens e abridores de garrafa.
Às vezes a vida me suga, noutras me ferve.
Sinto-me inútil para olhar um pôr de sol /
Talvez uma abelha assim o fizesse melhor do que eu /
Talvez uma centelha incendiasse meus dias.

Sim, tudo é sempre um talvez a amaldiçoar o quase
Como se fosse possível pescar horizontes.
Sinto-me desajeitado com as moças de olhares lânguidos
Sinto-me igualmente desajeitado para o futebol dominical.
Ah, quantas vezes pequei por errar o drible
Quantas vezes pequei por desviar o olhar das mulheres sorridentes e travessas,
Quantas vezes errei por dizer a palavra que ficou muda em meu peito.

Dói roer a corda que se colocou ao redor do pescoço para se enforcar.
Se ao menos eu soubesse como fazê-lo...
Sinto-me desajeitado para tuas mãos, para tuas coxas.
Sinto-me desajeitado para teus cabelos quando me caem aos olhos.

Tudo me é fardo e cardo.
Tudo grita e desconsola.
Tudo é tão pouco
Para um amor tão louco.
Não. Meu amor não é pouco.
Louco, sim.
Pouco, não.
Este é o meu estar desajeitado.
Estar sujeito a desajeitos d’alma.
Queria escorregar minhas mãos sobre tua pele.
Queria olhar dentro de tua alma e fazer amor a sós com ela.
Mas meu mundo grita. Meu mundo não desconsola.

Sou um sujeito desajeitado para a vida.
Noutro dia abracei o teu nome.
Coloquei-o em meu colo.
Dei-lhe carinho, beijei teus olhos.
Beijei tua boca carmim, teus seios alvos,
Tuas coxas aveludadas e teu sexo úmido.

Sim, sou um sujeito desajeitado para a vida.
Abracei-te tanto, tanto e tanto
E, com tamanha força dos meus pulmões
Que acabei por esquecer o teu nome.



quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Crianças ao vento


Criança é uma palavra futuro que brinca com (o) presente. 
Noutro dia encontrei João Luis que brincava de soltar pipa. Foi quando o vento ficou muito forte e levou o menino aos céus. Olhei-o espantado. Eu estava trêmulo, mas ele me sorria lá do alto como se sempre morasse por lá entre as nuvens. O vento não amainava e eu tentava enroscá-lo na outra pipa para puxá-lo para a terra firme. Mas, aos poucos percebi que não só ele estava contente por estar entre as nuvens, como possuía o controle para permanecer lá. Gritei-lhe com todos os pulmões. Ele sorria e queria me dizer alguma coisa, mas a distância e a força do vento arremessavam sua pequena voz por detrás das montanhas. 
Mas, de repente, um vento mais forte me levou também pelos ares. Num instante a terra ficou pequenina. Eu estava eufórico e logo percebi a felicidade no rostinho do João Luis. Ele conseguia fazer bichos com as nuvens. E qual não foi a minha surpresa quando descobri outras crianças no meio de outras nuvens fazendo formas ainda mais divertidas com elas: canguru, boi da cara preta, vaca, elefante, formigas tanajuras, enfim, o zoológico era uma manada ilógica para a racionalidade, mas muito natural ali no céu da infância. 
Mas logo uma outra nuvem muito espessa foi se aproximando. Era estranha e de certa forma ameaçadora. Havia um barulho que parecia um trovão (fato que me pareceu natural em se tratando de nuvem, mas não me parecia ser de chuva). Logo percebi que era uma gritaria. Era uma nuvem carregada de crianças de diversas nacionalidades, crenças religiosas, classes sociais, econômicas. Ou seja, crianças do mundo inteiro que brincavam na mesma nuvem na maior alegria.
Uma dúvida agora balançava minhas ideias: as crianças eram felizes apenas naquele céu ou porque ainda não havia caído sobre suas cabeças a chuva da intolerância e do ódio derramada pelos adultos?
Quando descesse iria perguntar ao João Luis. Ele sempre me surpreende com sua imaginação.
Certamente as crianças nos ensinam coisas para as quais nossos olhos já cegaram.   

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Evinha e seus amiguinhos

   

Evinha ainda não tinha nem seis anos e já subia em todas árvores do sitio de seu vovô. Eram as árvores mais altas do mundo. Se bem que naquela época o mundo era o sitio. E isso já era muito. Sempre muito arteira e bem mais tagarela que seu irmão mais velho, Adãozinho. Era assim: ele inventava o nome, por exemplo, de um animal e daí ela saía inventando que o animal tinhas as cores mais reluzentes do planeta, que as unhas dos animais eram assim e assado, que os machos eram mais bonitos, etc. Ou seja, coisas que Adãozinho nem dava bola. Coisa que ele também não tinha e como não sabia o que era não dava falta. Sentia falta do silêncio, isto sim sabia bem o que era antes de sua irmãzinha nascer. Só existiam sons dos animais, mas depois que ela nasceu sua vida nunca mais foi a mesma. Seu sossego acabou. Mas, certa vez ele pensou a vida sem ela e sem saber porque, teve a pior tristeza que já sentira em toda sua pequena existência. Acostumara com aquela menina tagarela. Ruim com ela, muito pior sem, pensou andando pelo Jardim. Certo dia Evinha resolver comer uma maçã proibida. Ela perguntou por que não podia. Porque não. Foi a resposta. Não se deu por satisfeita, ou melhor, ali ela inaugurava toda a genealogia das mulheres histéricas insatisfeitas. E como a resposta não foi convincente, ela se convenceu e de quebra ao Adãozinho, de subirem na macieira e saciarem a curiosa fome que sentiam. Se fartaram. Dormiram.
Quando Adãozinho acordou seu pai gritou-lhe: Newtonzinho, venha cá meu filho. Adãozinho que agora era Newtonzinho não se deu por vencido e continuou deitado embaixo da árvore, na sombra fresquinha daquele verão. procurou por Evinha, mas não encontrou explicação para seu sumiço. De repente Newtonzinho agora queria explicação para tudo porque ele sentia uma Força de Atração muito grande por aquela menina que pensava que fosse sua irmã, mas não era. Ah, como não era. Não era. Portanto, como. 
E lá estava nosso amiguinho quase cochilando debaixo da árvore quando de repente...Bum! Viu cair uma maçã bem perto de onde estava. Putz! pensou. Ainda bem que não era uma jaca. Mas, peraí. Por que a maçã exerce sobre a terra o mesmo efeito que Evinha exercia sobre mim? E não parou mais de pensar. Pensou tanto que resolveu cortar a maçã ao meio. E, como não era muito bom em cortes musicais, quer dizer, maçãzais, chamou seus melhores amigos: e vieram, Joãozinho, Paulinho, Georginho e Ringuinho. Gostaram da ideia da maçã cortada ao meio e colaram no meio do disco que fizeram. Acharam aquilo bonito e não pararam mais de fazer música. Neste meio tempo, Branca de Neve, uma amiguinha de nossos amiguinhos foi comer da maçã e quase teve um catiripapo. Tava envenenada.
Mas parece que realmente havia uma Maldição da Maçã, como ficou conhecida. Evinha e Adãozinho foram expulsos do sitio do seu avô, Newtonzinho quase morreu quando a maçã caiu-lhe na cabeça. Joãozinho levou um tiro nas costas e Georginho morreu de câncer. Ringuinho não sabia cantar e Paulzinho vendeu a tal da maçã para Michaelzinho que morreu de overdose de brancurite aguda no miocárdio. (A parte interna da maçã é fatal é o que dizem).
E agora o Stevenzinho, um bom menino, mas que ousou morder um pedaço (puxa, meu deus, era só uma mordidinha!?) da maçã e morreu também de câncer tal como o Georginho. 
Tô preocupado. Minha mamãe comprou uma cesta de maçãs para fazer uma torta. Será que devo comer?