quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Cotidiano n. 1 As avós


Hoje, na sala de espera de um médico, vi uma mulher que trançava palitos. Eram enormes. Não eram hashis, aqueles palitinhos japoneses para comer peixe cru. Trançava palitos com um enorme novelo de linha branca. Não perguntei o que era. Não tive coragem. Fiquei envergonhado. Ela estava muito concentrada com seus óculos pince-nez que pareciam estar à beira de um precipício. Minha vontade era consertá-los, apará-lo às mãos nuas e impedir-lhe a queda. Mas eles desafiavam a gravidade. Não ela não tinha um ar grave. Muito pelo contrário, ela possuía um ar doce. Parecia um casaco para um neném. Mas não perguntei. Com certeza deveria ser para seu neto. Ou neta. Era branco. Talvez nem ela soubesse o sexo. Sim, era uma anciã. Perco a noção da idade ao olhar pessoas muito idosas com os cabelos a caírem neve. Às vezes mal sei calcular minha idade. 
Mas não havia nenhuma criança com ela. Ela estava só: a criar envólucros para um corpo que ainda não habitava o tricô. Espaço de agasalho humano. Espaço de acolhimento para quem está por vir. Belo gesto criacionista daquela senhora. Ela dava vida a quem ainda nem sabia da existência da palavra avó.
Toda palavra avó deveria ser canonizada, santificada, beatificada, divinizada. Avó é uma palavra santa. Espiritual. Dalai Lama, Mahatma Ghandi, Buda e Jesus Cristo devem ter tido boas avós. Talvez o médico que esperávamos também tivesse tido uma boa avó. Agora eu já torcia para isso porque não o conhecia e esperava ser bem atendido. Então torci para que o Dr. tivesse tido uma boa avó. Seria um bom médico, com certeza.
Não era um médico para almas pequenas. Não haveria de ser. Nem grandiosas. Era médico para almas médias. Eu é que esperava grandiosidade de sua alma. E fiz esta equação: pessoa com uma grande alma = terá tido uma grande avó. Não sei se acredito em almas. Talvez não. Mas acredito piamente em avós. In grandmother we trust, deveria estar escrito nas notas de cem dólares. 
Ela continuava seu tricô. Talvez a criança ainda não houvesse nascido. Ela parecia não ter pressa. Eu é que ficava olhando as horas numa impaciência que antecedia a hora da consulta. Por que os médicos sempre atrasam? Eu me perguntava. Para que eu conheça melhor as avós. Respondi a mim mesmo sorrindo.
Ela aproximando-se do fim de seu tempo tecendo para quem ainda vai inaugurar a vida. O mundo deveria começar de trás para frente? Primeiro conheceríamos a morte com todos seus mistérios e depois a vida e suas nuances? Ou deveria perguntar a ela como se vive tecendo, acolhendo, criando tramas. 
Não há pressa para quem tece linhas. Aprendo com ela. Também não há pressa para quem tece palavras. Uma hora, mais cedo ou mais tarde, o filho nasce.


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quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Êxtase


Êxtase de Santa Teresa - Gian Lorenzo Bernini
Lívia acordou com algo muito importante para falar com André. Rolou sobre os lençóis procurando o corpo de seu homem, mas sua mão tocou no vazio e afundou numa espécie de abismo dela mesma. Dobrou-se aninhada  abraçando as pernas. Ficou ali sem entender como que em 3 meses ela ainda não se acostumara com a solidão. Tomou um banho bem demorado, passou um hidratante sobre sua pele, elevou os cílios com rímel (sua única vaidade feminina desde criança), fez café, torradas, queijo magro. Voltou ao quarto e escolheu uma roupa alegre. Precisava virar aquela página de sua vida. Precisava sair de seu luto quotidiano. As amigas da redação do jornal já tinham avisado sobre quem era André, o fotógrafo freelancer
- Este frila é meio safado, Lívia. Cai fora desta roubada. Dizia Luísa sua melhor amiga desde a faculdade e que agora dividiam uma baia na redação. - Além de tudo o cara te explora. Tira teu dinheiro. É um duro. 
Mas paixão não escolhe caráter. Quem vê caráter são os pais e, sabe-se lá, alguns amigos. Quem está apaixonado idealiza o outro e pronto. 
E Lívia tinha uma queda para a coisa. Com Tadeu, sobrinho de um bicheiro, não tinha sido diferente. O cara não podia ver umas pernas cruzadas que logo queria descruzá-las. Abri-las ao seu bel prazer. Nandinho depois que fumava um bagulho (que ela odiava) e bebia todas, sumia no mundo por uns tantos dias quanto ele quisesse e depois vinha sorrindo com a cara mais lavada do mundo dizendo que havia se internado numa clínica para desintoxicar. Lívia fingia que acreditava, mas no fundo ela gostava de apanhar e isso ele sabia como fazê-la se contorcer de prazer. - Geme, geme para mim. E ela sorria ainda mais desvairada como ela era por sexo, e pedia em seu código secreto que muitos deles não entendiam: "encore, encore".
Mas André entendeu o seu "Mais, ainda, mais, ainda". E, pela primeira vez ela havia realmente se desnudado diante de alguém. E quando se está nu e, não apenas sem roupa, a pessoa torna-se vulnerável. E foi no auge de sua vulnerabilidade que um dia ela acordou e passou a mão instável sobre o vazio de sua cama. E seu corpo foi projetado para fora dela mesma. Caiu sobre si como quem acorda de um soluço de tempo. Um hiato diante do qual ela nunca pode se enxergar. Caiu em si. 
Mas hoje era dia dela se levantar. Dar a volta por cima em seu masoquismo servil diante dos homens. Reacender na mulher que existia, a feminilidade devastada. Estava decidida a mudar de vida. Estava decidida a deixar de ser passiva diante de sua própria história. André havia revelado um outro lado que ela própria não conhecia.
De noite foi até a casa dele. Tocou a campainha. Ele abriu e ela o seduziu ali mesmo na cozinha. A princípio ele estranhou a mudança na posição sexual, mas como numa espécie de covardia, foi se encolhendo e deixando ela fazer o que quisesse com ele, ao contrário do que sempre acontecia. Até que no auge do êxtase ela pegou uma faca e o matou. Não o matou uma vez, mas duas, três, quatro, muitas vezes. Matou a todos que habitavam aquele homem. Sorriu na certeza maior de seu feito. Deu um último beijo frio, indiferente, naquela boca que já esfriava.
Desabitou a casa e sumiu em êxtase sobre a noite.   




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quinta-feira, 4 de agosto de 2011

A janela

 Van Gogh 



A janela

Aqui do alto da minha janela, aquela praia era tão minha que poderia sem o menor esforço calçar as pessoas na palma da minha mão. Isso não fiz, mas dei para incluí-las no meu pensamento. O que dava no mesmo, ou quase. Assim, aos poucos e de cada vez, dia após dia, eu tecia fios firmes e delicados. Com meu pensamento feito anzol eu fisgava na areia da praia de Copacabana aqueles tipos que mais me interessavam.
Icei bem alto uma mulher negra em sua selvagem gordura que comia risoles e empadas gordurosas. Comia rindo e a cada mordida escorriam farelos de seus filhos. Um se chamava Antonio como seu avô paterno. Outro Habacuque, porque era bíblico. E ela evangélica. Havia ainda um terceiro e um quarto que não eram filhos, mas quase. Seus pais haviam morrido em acidente com uma arma que era para defesa. A mulher disparou a arma sem querer e o marido foi atrás dela porque quis. Foi assim que os filhos ficaram órfãos. Nomes nem tinham direito. Do que chamassem respondiam. Ocorria então algumas vezes, não poucas, de responderem no lugar de outros. Isso dava par ouvir daqui de cima. Aliás, do alto tudo é muito figurativo. As pessoas não têm cheiro, unhas mal cortadas ou epiderme purulenta. São lisas em seus sentimentos e quase em câmara lenta os seus movimentos são presságios nebulosos de suas vidas. Religião sempre, principalmente quando vão entrar no mar. Benzem-se para Deus e Iemanjá e dão as costas para Oxossi que é deus das matas. Mergulham seus corpos como fazem com os legumes quando vão lavá-los dentro de uma grande bacia. De tempos em tempos saio da janela. Talvez para olhar para mim mesmo ou buscar um copo d’água na cozinha. Quando volto à janela noto que alguns se afogaram no tempo. Já são outros que estão ali a disputar um pedaço de areia macia.
Iço outro. Agora é um rapaz que faz embaixadinhas com uma bola. Demonstra fazer tudo que sabe. Demonstra para quem? Ele não sabe. Só sabe que deve movimentar-se ligeiro com a bola. Finge chutes incríveis, passes mágicos, canetas memoráveis e lençóis diabólicos. Chama-se Zico Coimbra dos Santos. Nasceu no mesmo ano em que o flamengo foi campeão mundial. Seu pai, que Deus o tenha, era flamenguista da cabeça aos pés, como ele mesmo gostava de dizer. Adorava ser chamado de Zico Santos. Achava que isso lhe dava mais respeito e de certa forma reverenciava duplamente seu pai: pelo nome do batismo e por ter certeza que seu pai havia virado um santo lá nos céus. Porém ficava triste quando lembrava da chance que havia perdido para jogar futebol pelo seu clube do coração. Foi no mesmo ano que seu pai morreu de cirrose hepática. Assim soube porque os médicos lhe disseram. Seu pai bebe muito. Mas não bebia. Era mentira por verdade. Seu avô também havia morrido de cirrose. Mas sua língua travou e ele não soube dizer isso para os médicos. Faltou muito para ficar com o pai. Quando este morreu, faltou muito de ficar com o filho. Era saudade religada pela bola. Religião do Pai como se costuma dizer. Sempre rindo estava Claudemir, seu irmãozinho. Filho do segundo casamento tinha pai, mãe e irmão mais velho para protegê-lo de quem quisesse lhe bater. Assim folgava com os outros porque sabia que estava protegido pela fraternidade, folgava com a vida porque sabia comer os restos mal digeridos da sua hereditariedade. Seu pai Adroaldo, entre uma latinha de cerveja e outra que tirava do isopor, passava óleo de cenoura nas costas da sua mãe. Era uma mistura feita por ele mesmo a base de cenoura ralada, óleo de girassol, linhaça e bronzeador. Celestina debruçava-se sobre a toalha estendida cuidadosamente na areia, retirava com delicadeza o nó do sumário biquíni nas costas e esperava pelo óleo revigorante. Seus seios fartos adornavam tanto a areia quanto os olhares dos homens que passavam por ali a testemunhar aquele momento mágico. As curvas daquela bunda a desfilar aquela asa delta crepuscular era o regozijo para os que tinham na visão do espetáculo corporal o único ganho de satisfação em seus fins de semana. O apelido daquelas curvas sem fim era ‘Crepúsculo de Cubatão’. Mais não preciso dizer. Os apelidos às vezes encaixam mais do que biquíni em suas terminações adiposas. Adroaldo bem sabia que os homens olhavam para aquelas curvas perfeitas da sua Celestina. Com suas mãos ásperas de pedreiro, mas com o coração sereno de amor, Adroaldo ia meticulosamente passando óleo por cada centímetro daquele corpo espetacular sem parecer se interessar com o que acontecia ao seu redor. Ela sabia de seu apelido. Assim, em pleno meio-dia alguém suspirava alto: que crepúsculo meu Deus, que crepúsculo. Deitada, com soslaio no olhar, ria mordiscando os lábios, depois deixava-se soltar todinha, espreguiçando como se estivesse em lençóis de areia à espera de seu Netuno. Virava de bruços e o mar encapelava como se estivesse à espreita de um vendaval.
Dia desses me deparei com um hiato. Não era um deserto de areia, era um deserto de pessoas. Não havia o menor sinal de chuva e o céu sem nuvens tocava o mar sem deixar vestígios dos limites entre um e outro. Esfreguei os olhos pensando ainda estar dormindo, mas a areia era visível e estéril. Transbordei as palavras para fora da janela na esperança de poder içar outras pessoas. Elas retornaram esvaziadas. Umas proferiam impropérios, outras silêncio ensurdecedor. Então, pela primeira vez, após longos anos, saí da minha janela e desci em direção à areia. De repente, sozinho na areia, senti meu corpo subindo. Consegui ver de relance. Era um outro escritor em sua janela. Mas não sei o destino que ele me reservou.