quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Frases recortadas




Estou nascendo. Contigo aprendi a abrir os olhos e a fechá-los na confiança de teu colo. Nasço devagar como quem espreguiça no amanhecer. Nasço como uma palavra nova, sorrindo ainda encabulado por não ter grande compreensão do mundo. Tudo me é novo. Tudo me é presente: teus olhos que me lêem, tuas mãos que me tocam sem me ver. Tudo é um compasso; não de espera, mas de virtude de aprendizado no amanhã. Vamos juntos?

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Lúcio envelheceu os ombros. Tinha os olhos cansados das palavras. Algumas letras grudaram-lhe às pálpebras. Arrastou a ponta do indicador ao lábio e virou mais uma página. Era tarde da noite. Era tarde em sua vida. Maria cobriu seus olhos com um beijo. Lúcio adormeceu entre os lábios aveludados de palavras sensíveis, femininas.

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O dia está amanhecendo e levando com ele minhas estrelas. Já era um azul quase púrpura quando todas as estrelas sumiram do céu. Rolei para o outro lado, passei as mãos em teus cabelos que ainda dormiam e vi que o céu havia se distraído. Esquecera uma estrela em minha cama.


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Para todos, deixo na alegria deste fim de ano, as minhas melhores palavras, inclusive aquelas que não escrevi. Saio pelas lacunas da vida à procura de outras palavras: esquecidas, que não fizeram rimas, que não couberam em nenhuma estrofe, que ficaram entaladas na garganta, em suspenso num cair de noite e se perderam pelas sombras. Palavras, todas elas - mesmo as que machucam -, para mim são luzes que ora ofuscam (cegam), ora iluminam caminhos. Assim vou. Noutras palavras, abraços iluminados a todos.

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Heráclito disse que não se banha duas vezes no mesmo rio. Com a psicanálise aprendi que não se banha duas vezes na mesma palavra. Como escritor tenho aprendido que quando se entra numa palavra para se banhar, sai-se outro. Como leitor, adoro estar i-mundo de palavras.

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Quem protege o telhado da chuva? Quem protege a palavra de uma frase? Quem protege um escritor das palavras? Quem protege a chuva dos olhos do escritor? Quem protege a mão que em noite escura procura a música na palavra que contém teu nome? Quem protege teu nome da chuva de minhas palavras? Quem protege a chuva do chão que a acolhe? Quem protege o céu sem azuis?

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Hoje de manhã, ao acordar, dei de cara com a morte. Perguntou-me sobre a verdade. Respondi que sobre isso não saberia nenhuma palavra. A morte sorriu em seu não-rosto uma verdade revelada. Propôs uma troca:a verdade pela minha insciência. Prefiro os mistérios de uma palavra por dizer, disse. E saí para colhê-la nas mãos do campônio que cuidava do jardim.

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Quando te vi nesta manhã voando como um pássaro, pensei em colher uma flor para te dar quando você pousasse em solo firme. E a primeira flor que encontrei foi um girassol do campo. Uma estranheza me percorreu a espinha. Ele se movia e não era em direção ao sol, mas em sua direção. Foi impossível arrancá-lo. Então, em segredo, cochichei junto ao caule, o nome da seiva que escorria em meus olhos para te dar.

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Já era velho, mas trazia a verdade da palavra tatuada sobre sua fina epiderme. Para cada um que passava, retirava uma parte da verdade. Assim, deixava seus rastros de saber numa generosidade infinda. Ainda hoje, ao passar pela praça, posso vê-lo distribuindo meias-verdades aos mais jovens que sorriem com desconfiança daquele velho que tanto me ensinou: meu pai.

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Teus olhos reclamavam um entardecer. Como nunca tive sabedoria para pôr de sol, puxei um touceira de samambaias que cresciam na encosta de sua primavera. A sombra fez com que você achasse que já era o fim da tarde. Você disse: tá na hora. E, em silêncio de pássaros, mergulhamos um no mistério do outro.

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Aquele menino tinha mania de não se conformar com o nome das coisas. Parecia Adão. Tudo tinha que nomear. E para cada coisa nova que seus olhinhos encontravam, escrevia a lápis num minúsculo caderno o novo nome inventado. Dizem que um dia, estupefato, viu a cor do silêncio. E não parou mais de escrever invencionices para tentar dizer o indizível. Foi assim que virou escritor.

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O avô disse para o menino que era necessário adubar bem a horta para que tudo crescesse em abundância. No dia seguinte o avô encontrou o neto no meio da horta com estrume até o pescoço. Foi preciso o menino morrer de metáfora umas seis vezes até poder nadar novamente no rio de palavras do avô.

Teus cílios longínquos anunciavam outros horizontes quando abri meus olhos em tua direção. Foi então que vi pela primeira vez: as palavras alargavam o mundo, estendiam pontes sobre versos de oceanos, escalavam montanhas ficcionais, abriam vales de rimas, mas tudo era feito de infinitudes. Então chorei a distância entre nossos nomes. E o mundo coube numa única palavra...

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A enorme pirâmide havia mudado de lugar e deixou um rastro profundo nas areias escaldantes. O oceano ficou imóvel por muito tempo. O céu estava tão escuro que ao meio dia surgiram estrelas. Em seguida, o próprio Universo parou seu movimento espiralar durante mais de quatro semanas e não houve mais qualquer espécie de vida na Terra. As páginas já estavam quase amarelando quando voltei a escrever...

Parte superior do formulário

Parte inferior do formulário

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O tempo pareceu-me insuficiente. A vida corria veloz ao meu lado num paralelo de infinitudes. Olhei pela janela. Chovia lá fora. Você vinha encharcada de mistérios. Vestida de palavras colhidas dos teus últimos dias. Corri ao teu encontro. Abri sobre você um grande livro. Foi inevitável: as palavras caíram sobre teu úmido rosto. Olhou dizendo em meus olhos:palavras são ampulhetas. E, sorrindo, me beijou entre vogais.

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..e depois houve a palavra-abismo. Era uma palavra que não se encontrava em lugar nenhum. Nem em mim. Passei a mão por suas falésias e retirei de sua encosta um edelweiss. Tornei a olhar para a palavra e ela, estranhamente, iniciou uma metamorfose transformando-se lentamente num rosto. Agora, a palavra-abismo ganhava um sentido para além de mim. Voava sem peso aparente. Enigmática, bela, translúcida, feminina.

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Acordo e me deparo que durante a noite, algumas de minhas melhores palavras desistiram de habitar meu corpo. Olho para o lado e vejo, banhado na alegria, que sorrateiramente elas escorreram sob o lençol. Agora habitam tua pele nua como tatuagens de amores e paixão.

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Gênesis: As palavras, nervosas, faziam volteios na ponta da língua e estrelavam-se assanhadas no céu da boca. Assim, resplandeciam frases que inauguravam o mundo. Exodus: Quando as cuspia no caderno pautado, já era o inferno.

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As palavras que escrevo são as que não couberam dentro do rio. Transbordo. Nas margens alagadas na alegria germinam frases que me descompletam. Uma janela se abriu. É você

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Amanhecer é acordar para a vida.

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O tempo é também o tempo de duração uma palavra em nossa vida. Pode ser o nome de uma pessoa que se gastou com o uso. Pode ser o tempo da memória que se esvai. Pode ser o tempo de uma saudade que não retorna. A palavra tempo pode chover ou fazer sol em nosso quotidiano: depende do tempo que nós quisermos despender para aproveitarmos as estações da vida.

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De noite, quando a cidade dorme, pego meu velho caderno transformado em rede. Então, retorno ao cais em busca das palavras esquecidas, das interjeições de dor, dos lamentos devolvidos, das palavras que não encantaram e as recolho cuidadosamente ao caderno. Retiro os excessos, as impurezas (não de todas, obviamente) e, na manhã seguinte, caminho rumo ao cais das palavras-partidas.

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Todos os dias, de manhã bem cedo, vou à beira do cais e me despeço de algumas palavras. Não há tristeza em meu coração. Antes, leveza, porque eu as deixei ir fertilizar outros mares.

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Há certos dias em que trans-bordo. Hoje é um destes em que transbordo palavras. E é dos retalhos das palavras que sobram que construo as melhores partes da vida.

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Passarinho tem dias de muda onde troca suas penas. Escritor tem seus dias de renovar palavras. A escrita é um exercício de sair de si mesmo e ser outros.

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Fui andar descalço nas nuvens e espetei o pé numa estrela.

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Com os olhos dispersos em sua melancolia de primavera, saiu para ver o mar. Com ele, só Kind of Blue, de Miles Davis.

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...então quando minhas palavras começam a me estranhar e criar um rosto próprio, faço com que elas caminhem frases afora. Enfim, que sigam suas vidas: intrépidas, loucas, vadias como prostitutas para quem as lê e santas para quem as reescreve.

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O autor, ao escrever, se desfaz de suas palavras para que o leitor as tome como suas.

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Assim, naquele tumulto de sensações de seu coração ainda tão pequenino, ela não conseguia distinguir se era uma gota de chuva que escorria do lado de fora da vidraça, ou uma lágrima do lado de dentro.

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Há palavras que deveriam dizer mais do que dizem./Há outras que testemunham felizes a madrugada./Há outras tantas que deveriam silenciar mais do que o vento./Mas há aquelas imprescindíveis / que ainda preciso inventar para poder dizer o teu nome.

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Chover. Um verbo impessoal. Agora, chove lá fora na minha cidade. Muito. Vou votar. Há uma impessoalidade em mim com toda esta política nefasta. Dentro de mim também chove. Aflito, respiro. Vou vo(l)tar encharcado.

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Escrever é estar sedento de uma doença incurável. É morrer em cada palavra para renascer nas entrelinhas. Sinto o estancar do sangue em minhas veias quando aborto uma palavra indizível. E, novamente, a sede eleva-me a um estado inseguro, quebradiço, mortal como o instante anterior à próxima palavra.

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Amor: aquele que não pode ser nenhum outro...

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Podia ver naquele homem-livro, o texto impresso de sua vida, nas rugas antigas de seu corpo. Assim, podia lê-lo como quem se alfabetiza na descompletude de seu tempo.

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Uma palavra sussurra o amor indecifrável. O amor se despalavra prazeroso na pele alva, quase-intocável. Palavra e amor se roçam sexualmente selvagens naquilo que ambas possuem de nuvem: o vento escorre ao infinito na emoção por dizer.

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E anoitecer era ser meio-irmão das estrelas. Uma cadente, outra candente que dobrou a página logo ali na sua frente. Sem poder deixar de avançar, mas com enorme emoção, dobrou a página e seguiu a estrela, pois ela havia lhe soprado a promessa de outras palavras. Novinhas em folha. Palavras que ele desconhecia.

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Assim seria este livro. Seria um livro com três partes. Agora ele sentia sua pele como se fosse um papel. De tão fininha já podia ver as veias por debaixo, ou as palavras que lhe corespondiam. Escorreria pelas páginas e levaria a memória de seu pai dentro do baú mágico de seu avô.

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Para onde foram minhas palavras quando coloquei um ponto final em meu livro? Por que fiz isso? Agora, as palavras me desacompanham. E esta solidão de personagens-palavras dói como um luto irrealizado. Também morri um pouco. Sempre se morre em pequenas doses ao término de um livro.

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As palavras se foram. O escritor ficou só. Seus personagens também já não lhe pertencem. Foram-se como quem pega um trem de nuvens. E o vento sopra estrondoso. As letras copulam. É necessário que o escritor morra um pouco para que suas palavras ganhem vida. Luto com palavras. Sem elas, a luta é vã, dizia o poeta.

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Sigo sem as palavras que me descompletam como uma tarde cai sem a brisa que acelera o pôr-de-sol. Deito-me sobre a pedra para observar melhor sua silhueta. Você escorrega silenciosa em seu perfil molhado. Mergulho minha mão num pote de palavras usadas para anoitecer. Adormeço sem você: sonho a palavra que diria o seu nome.

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O silêncio sempre ronda a voz. Sempre está à sua espreita pronto para dar o bote e engolir a palavra.

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a escada de descida para o ateliê de meu pai a mão quebrada de um anjo estava caída ao longo de uma asa partida. Não ouso dizer o que pensei. Desajeitado, mas com extremo carinho, segurei na mão do anjo e, com um pedaço de barbante, atei-a a asa. A mão do anjo segura o voo, protege a asa da queda, e reconstrói a madrugada.

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Estava quase a segurar a palavra eternidade com uma só de minhas mãos, mas a outra ainda estava cega, tateando teu corpo. Estava nos confins de uma alegria-triste.

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Dizem que o maior invenção do homem foi a roda. Não acho. A roda em sua forma já existia na natureza. Para mim a maior invenção do homem foi o livro. Entre duas capas há um mundo de ideias que está sempre a surpreender e a alargar o conceito de infinitude do próprio homem.

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Tinha por vício minha irmã gêmea, assim como a nuvem tem por vício o ar e, por inimigo, o vento que dispersa os limites da existência.

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Silêncio. Longo silêncio quebrado pela cumplicidade entre nossos olhos deitados na grama da dor: cílios e lágrimas. Nossos olhos cruamente nus. Vertidos um sobre o outro sob os auspícios do horror como pano de fundo. Dizíamos tudo sem que uma palavra fosse proferida. Dizíamos sobre a dor que não nos cabia e sobre o sexo como um contrabando. Dizíamos sobre nossos corpos que não nos pertenciam.

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Quando se fecha os olhos sua vigilância diminui e se é assaltado por seus fantasmas. A culpa era a vertiginosa vingança e a punição parecia-me eterna. Molestador, agora era molestado pelo mais terrível dos monstros do qual não se consegue fugir: o pensamento.

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E, aos poucos, sentia exatamente isto: que o meu amor iria se revelando com nítida limpidez a cada movimento em direção ao seu corpo. Tudo me era tão claro e inverossímil. Tudo me era possível e impenetrável. Tudo tinha a força de um vulcão e a maturidade de uma mariposa que não enxerga na lâmpada incandescente, o êxtase da luz e a morte por vir.

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Mas, para que serve mesmo uma porta? Fiz a mim mesmo esta pergunta e gelei de medo por pressentir atravessada na garganta a resposta inconsolável. Sim, porque a resposta a esta pergunta me levaria a outras portas igualmente densas, quase impenetráveis e femininas como esta. A porta era o cheiro fermentado do feminino em mim.

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E, por acaso, muitas vezes não temos a transtornada sensação de que nossa família é feita por milhões de braços e abraços despedaçados que precisam ser restaurados? São milhares de ex-votos, pedaços de corpos onde os pedidos estão perdidos entre letrinhas miúdas, papéis amarelados, amargurados pelo esquecimento de quem se espera o reconhecimento. Re-conhecer é também outra maneira de restaurar.

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"Deus, se ele existe, é uma touceira de bambu. Aquela ali que dá sombra bonita". E apontou com seus dedos longos sujos de tinta e barro para fora da janela de madeira vermelha e verde. (Conversa colhida com Berzé, artesão em Bichinho, Tiradentes.)

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As palavras secavam-me idéias. As páginas corriam encharcadas sem vento. Agora sei. As palavras podem partir-me. Estou partido. Estou sempre partindo.

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Escrever, escrever, escrever até sangrar palavras.

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Vou subir a serra / botar os pés na terra / alcançar com as mãos as estrelas / Vou subir a serra / lá não estarás / também não estarei / Vou subir a serra / onde estás? / estarei?

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Por que algumas palavras ainda não alcançaram a maturidade e já se tornaram escritas?

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Palavras: quanto mais nos aproximamos delas mais nossas almas se revelam.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Sobre Alberto Giacometti

Tudo está por um fio. Sempre se está em perigo. Alberto Giacometti

A paixão pelo inacabado.
Desde que o conheci, ando sofrendo de Giacometti. Eu sou um destes traços, esquálidos, quase indefiníveis, que testemunham desaparições. Restos. Sou a tinta que se esvai numa compulsão frenética, apaixonada, como quem não consegue terminar a obra. Sempre por fazer. Sempre por acabar. Inconclusa. In-finita. Jean Genet disse que suas obras só poderiam sair de um lugar. De um lugar de onde não se volta: da morte. Sombras, vultos, corpos em magreza-de-movimentos. Mas, com uma força de levantar todos os mortos de seus sonos atávicos.
Sim, estou, estamos nas esculturas e pinturas de Giacometti. Somos ossos, sempre a nos restar. Somos traços nervosos como no retrato de James Lord (primeiro da esq. p/ a direita na segunda fileira). J. Lord, o crítico americano foi visitá-lo em Paris e faria uma entrevista com ele. Giacometti se ofereceu para pintar seu retrato. Lord adorou a ideia. Escreveria sua matéria e ainda ganharia um quadro de ninguém menos do que Giacometti. Pois o pintor não conseguia acabar de pintar seu rosto dizendo que era impossível capturar a alma humana. E J. Lord dizia que ele era um mestre exatamente em capturar em suas pinturas a essência da alma humana. James Lord tinha ido passar uma semana e já estava lá há um mês. No dia seguinte a cada tentativa, Giacometti apagava obsessivamente o rosto e o repintava. Tendo observado isto, J. Lord passou a fotografar em segredo todos os quadros antes que Giacometti voltasse para apagá-lo. Lord não escreveu uma matéria para sua revista. Escreveu um livro com todas as fotos que parecem a mesma. Isto levou seis meses. J. Lord teve que pedir duas vezes autorização à sua revista para permanecer em Paris. Este quadro ai acima é uma das inúmeras variações... ao infinito.
Como se livrar do Giacometti que me habita? Talvez escrevendo? Talvez. Não é preciso. Seguro? Nem pensar. Mas escrever é arriscar-se. Na vida. Então, como dizia Lacan, sobre a cena do mundo (de Alberto Giacometti) eu avanço. Não quero mais me livrar dele. Que ele habite minhas palavras-sombra.
Lord, James. Um retrato de Giacometti. Iluminuras
Genet, J. O ateliê de Giacometti. Cosac & Naify