sexta-feira, 24 de setembro de 2010

O fotógrafo iluminado



Anastácio era um bom fotógrafo. Alma boa, saliva melhor ainda. Era um lambe-lambe. O único fotógrafo da pequena e acolhedora cidade de São Sebastião das Boas Almas, lugarejo esquecido pelo mundo. Minas Gerais. Depois da sua imaginação. Além do sertão das veredas roseanas. Homem bom, como já se disse. Grande coração. Mas pobre, tão pobre que sua casa cabia espaçosa numa foto 3x4. Não sabia o que fazer para ganhar dinheiro, pois só sabia fotografar e ninguém parecia querer tirar mais fotos.
Mas sua vida começou a mudar quando seu melhor amigo morreu. Poderia ser tragédia, mas Anastácio mesmo me contou que a gente aprende muito com os mortos. Eles ensinam a ver coisas do nosso passado que até então vedavam a alma. Pois foi lá no enterro do amigo que lhe surgiu a ideia. De início, todos acharam macabra, mas depois tudo mudou. Foi assim que aconteceu. E reproduzo aqui com a mais fiel exatidão da inconstância de minha memória.
Anastácio estava na pracinha sentado ao lado de sua máquina, sob sol escaldante, quando vieram com a triste notícia. Zé de Cima havia morrido de estalo. Foi coisa repentina e insolúvel. Passou a mão em sua máquina e foi com aquilo para o velório. E viu os filhos de Zé de Cima aos soluços diante do paizinho falecido. Aquela cena arregalou sua alma num clique. E, zás! Sem vacilar, fotografou. Olharam o abusado. Como aquilo? Como ousas? Sem titubear, Anastácio sentenciou: É para a posteridade. Posteridade? indagaram indignados. Eternidade, tentou emendar. E entraram as carpideiras com seus véus e trajes pretos. Os gritos e lamentos alheios já iam alto. Ele viu um teatro. E, novamente, clicou. Como ousas novamente? Para a eternidade do meu amigo. Agora já respondeu mais convicto. E aquilo impressionou a família de jeito. Afinal, o Anastácio era amigo indissolúvel. Mesmo no álcool. E, verificaram, estava sóbrio. Tirou mais umas dez ou doze fotos. Fez um lindo álbum e enviou em papel celofane azul marinho para viúva. De início estranhou, mas foi só Leonilda, a vizinha, dizer que haviam ficado lindas para que o luto abrandasse o sofrer. E toda a cidade correu para ver as fotos do velório.
Quando Janildo morreu de velho que era, a família, ainda tímida, foi pedir para que Anastácio tirasse umas fotos e fizesse um álbum da fúnebre cerimônia. Tirou a poeira do lambe-lambe e aquilo virou um sucesso. E quando outros morriam ele era disputado a ponto de D. Maricotinha chegar a exclamar: "Bem que Honorato poderia morrer só um pouquinho. Iria fazer o álbum velórico mais bonito que já se viu por estas bandas."
E foi um rebuliço quando dois na cidade morreram no mesmo dia. O jeito foi realizarem juntos o velório para que Anastácio caprichasse ao máximo nas fotografias. E, empolgado, já dizia abertamente: "Olhem o defuntinho"; "Façam cara de sofrimento atroz"; "Deem uma choradinha prá cá"; "Olhem o beicinho!" Tudo em nome da boa e eterna morte.
Anastácio comprou outra máquina. O tempo passou. Ele comprou outra melhor. Melhorou sua casa com um puxadinho para um quarto para as crianças. Anastácio era um homem bom. Destes que deixam saudade por onde passa.
O tempo fez morrer outras pessoas e ele comprou uma nova máquina. O tempo corria a seu favor? Pode-se dizer que sim e não. Sim, porque sempre havia a chance de uma nova e boa morte. Não, porque o futuro chegava veloz. E, com ele, as novas e modernas máquinas fotográficas digitais.
Agora, ninguém mais precisava do Anastácio. Todos tiravam suas próprias fotos. Aquela moda passou ligeiro como a vida de um passarinho.
Anastácio, aos 78 anos, veio até meu consultório. E me contou esta história. Pedi para que ele voltasse na próxima semana.
Ele veio. E eu levei minha máquina e tirei muitas fotos dele. Fiz um álbum dele ainda vivo. "Isto é para sua eternidade em vida", falei ao entregar o álbum para ele um mês depois.
Nesta semana seu filho me ligou. Contou-me da morte de seu pai. E me disse que ele comentava sempre que eu era um bom fotógrafo. Fotografava a alma, dizia rindo com seu sorriso de transbordar o Amazonas. Disse ao filho que Anastácio é que tinha a alma fotografável. Recobria seu corpo todo. Portanto, era fácil. Fiquei muito triste como se o conhecesse ao longo de seus 78 anos. Gostaria de ter passado mais tempo com ele e aprendido como se fotografa sorrindo a alma da morte. Anastácio olhava o mundo através das lentes.
Olhava com sua alma generosa e fotografava o invisível que havia em cada um...

Este texto é uma pequena homenagem ao meu amigo Norberto Villalba Pires. Um homem bom.

sábado, 18 de setembro de 2010

Livia, a folha


Livia nascera numa inquieta manhã de primavera. O vento assobiava fininho como o uivo de uma criança que ralou seus joelhos. E era entre os galhos mais apertados que se ouvia no, ao longe, os filhotes de um ninho que teimava em não cair.
Livia era pequenina como as centenas de seus irmãos e irmãs quando nasceram daquela majestosa árvore que reinava solitária no meio de um imenso capinzal. Verde, viçosa, espreguiçava-se a cada dia reparando com seus olhinhos perscrutadores, tudo o que havia à sua volta: um pequeno riacho entre pedras serpenteava mais afoito após cada noite de sereno e chuva fina; uma touceira de bambu tingia de verde-escuro sua vista um pouco a leste; no alto da colina, um pouco mais ao sul, estava plantada a casa de seus donos. Plantada sim, pois no pensamento das árvores, tudo devia existir como elas. As pedras e as montanhas, o sol, a lua, as estrelas e mesmo as nuvens eram plantadas. É verdade que algumas destas plantas duravam pouco tempo, como as plantas-nuvens. Livia achava graça disto tudo. Daqueles seres plantados que andavam, Livia ainda não tinha tido nenhuma visão. Eram pessoas simples - ela sabia por causa de seus irmãs folhas-mais-velhas e seus tios galhos - que viviam da horta, galinhas e uma meia dúzia de vacas que, no cansaço do sol, procuravam a sombra produzida para esquecerem do calor.
Livia crescia rápido aproveitando a luminosidade informal da primavera e a chuva ocasional que lhe favorecia por estar num dos galhos mais altos de onde tinha uma visão privilegiada de todo o mundo. O mundo existia em Livia e ela adorava a seiva que alimentava seus sonhos sazonais, feitos de pássaros, raios de sol, ventos e nuvens noturnas.
Certo dia ela viu. Era a primeira vez que via. Abriu bem seus olhos por entre suas ranhuras. Esguichou-se toda por cima de outras folhas. Lá vinha o pequeno rebanho. Eram vacas holandesas, gorduchas-leiteiras. E, logo atrás, com uma varinha feita de oiti (ela reconheceria de longe), um menino de seus oito anos. Não batia nas vacas. Apenas levantava a varinha - como se fosse mágica - dava uns gritos ôôôô - e chamava cada uma pelo seu nome. Livia chegou a ouvir: Mimosa, Carambola, Azeitona..., mas o vento mudou súbito de direção e não conseguiu mais ouvir o nome entoado das outras. Eles se chegavam, suados, cansados de pastarem. Pediam por sombra e Livia entendeu de imediato que poderia ser parte do frescor que procuravam. Encheu-se de orgulho por que, pela primeira vez, iria participar de tão sombrinha causa.
Quando todos já estavam debaixo da árvore, Livia quis ser mais. Queria ser toda a árvore. Então, esforçou-se por ser maior. Procurou pela seiva que havia acumulado num tronco logo abaixo dela. E, num esforço arbóreo para buscar mais seiva, acabou, por uma destas infelicidades, por soltar-se do galho que delicadamente a prendia.
E voou. Sentiu o gosto de ser livre. Mas pagava um preço sem retorno. Desprendera-se para sempre. E o vento, caprichoso, levava-a de um lado para outro. Ora encostando nos galhos, ora despedindo-se de suas irmãs, que atônitas, olhavam sua queda.
Mas o destino quis que ela fosse cair justo no colo de André, o menino que tirava sua merecida sesta. Ele levou um susto com a folha em seu colo. Pegou-a e, instintivamente, jogou no chão. Livia ficou ali olhando o céu azul através de suas irmãs. Estivera tão próxima dele. Agora jazia entre outras folhas já mortas. E, pela primeira vez, chorou. Entendeu que a morte a acolhia, fria, como futuro adubo.
André levantou. Era hora de reconduzir o gado para o curral. Mas ele olhou para aquela folha que havia caído em seu colo. Reverenciou-se num gesto oriental e colheu Livia de seu desprendimento. Levou-a pelas mãos com carinho como se carregasse um bolo de fubá quentinho feito pela sua bisavó. Ao chegar em casa foi direto para seu quarto. Procurou pela sua coleção de Monteiro Lobato que ele carregaria por toda sua vida. Abriu nos Doze trabalhos de Hércules e, carinhosamente, depositou Livia entre as páginas 198 e 199.
Muito tempo havia se passado e André continuava fascinado por aquela coleção de Monteiro Lobato. E, sempre que chegava naquelas páginas, ele acrescentava aos feitos de seu herói, a história de Livia: uma folha que se juntou a outras folhas. André lia Livia nas entrelinhas.

domingo, 12 de setembro de 2010

JOSÉ


Cristo na Cruz - Salvador Dali

JOSÉ

Olhos cobertos de lágrimas
ombros curvos
asfixiado, mãos atadas
pelo destino
que era, é e será.

Pouco a fazer
pelo filho
ali exposto
quase nu
ensanguentado
mãos perfuradas
olhos ao céu,
arregalados
dizia em súplicas;

Pai, por que me abandonaste?

gritava o filho,
condenado.

E ele,
José,
ali, ali para sempre (invisível),
perguntava
porque seu filho
não o fitava.

Por que não era ele?
Por que não era?
Que fosse ele, o pai,
no lugar do
do filho.
Por que não?

Carpinteiro,
lançou último olhar
para a lasca
de vida
pendurada.

O filho em cruz,
suspenso no ar
e o pai,
ínfimo na terra,
sem entender
porque o filho
agiu, agia e agirá
deste modo.

Por dentro,
o pai gritava
silencioso:

Filho, por que me abandonaste?

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Um trem de genealogias


José Bonifácio acordava todo dia às duas da manhã. Fazia seu próprio café e comia o bolo de fubá da noite anterior àquele dia. Esta era sua refeição para o dia inteiro. Dizia não precisar de mais. JB era foguista do Vitória-Minas. Trem sestroso, fogoso, diria rindo desdentado o próprio José Bonifácio. Quando chegava à estação, fazia mais do que verificar a lenha e o carvão para a viagem. Ele mesmo se encarregava de vistoriar cada um dos seis vagões de passageiros e os duzentos e sessenta e oito vagões que seriam carregados de minério de ferro. Era viagem para dia inteiro. Tudo tinha que estar em seu lugar para que a vida não descarrilasse, solfejava JB, filosofando.
Mas eis que certo dia a madrugada acordou chuvosa. Ou era o próprio José Bonifácio que perdera a graça no viver? Os filhos haviam casado, a mulher havia voltado para a casa dos pais na Bahia, e ele ficara de resto, como um peixe que esqueceu de subir o rio para desovar.
Pois foi na descida da serra que se deu seu grande feito. O trem já vinha embalado com suas composições serpenteando o vale que marcava a divisa de Minas para Vitória, quando teve uma ideia inusitada. O fogo ardia bem ali na sua frente. Resolveu ser ele próprio o combustível daquela composição. Queimaria pela última vez seus próprios despojos.
E foi destacando as partes de seu corpo. Primeiro retirou os pés que eram iguais ao do avô materno. Depois as coxas que eram muito semelhantes as de seu pai. Retirou os órgãos sexuais: bela lembrança arqueológica paterna. Tudo agora ardia no fogo. Deslocou a bacia, fez um torção e lá se foram as costelas também. Um olhar pela pequena janela e pode constatar como a composição ganhava velocidade jamais pensada. O fogo ria alto, sem tréguas. Desatarrachou o braço forte esquerdo e longilíneo, marca registrada do avô paterno. Jogou com leveza para dentro da fornalha. Ali se queimavam genealogias. Lembranças atávicas, suspiros feitos tantas e tantas vezes na rota da saudade. Retirou a cabeça, intacta. O crânio, não havia dúvidas, era de sua mãe. Jogou certeiro no meio do fogo. Viu que seus olhos lançaram-lhe o último olhar de despedida. Mas não havia dor ou mágoa. Por fim, antes de retirar o tórax, enfiou sua mão para dentro de si mesmo e arrancou seu coração ainda pulsante. Jogou o tórax para dentro da fornalha e, num último gesto, antes de jogar o próprio braço, jogou seu coração pela pequena janela do trem. O coração rodopiou feito pipa no ar antes de desaparecer.
Nesta hora o trem passava por cima de uma ponte com um pequeno vilarejo embaixo. O coração caiu no colo de Maria, a bordadeira solitária. Ela olhou aquele coração ainda vivo e o bordou no canto do pano de prato.
Hoje, quem passa pelo vilarejo, encontra Maria sorrindo, enigmática, rodeada de filhos do coração.