sexta-feira, 30 de julho de 2010

NÓS DOIS



Sinto tanta saudade/
de você

Sinto tanto o teu corpo/
em mim

Que agora
E a todo momento

Sinto sempre a
saudade
de
nós dois.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Brinquedos invisíveis


Imagens da Aurora Boreal

Ygor Yeralovich, ou simplesmente Y2, nasceu na Moldávia na antiga União Soviética. A República da Moldávia é um pequeno país da Europa limitado a norte, leste e sul pela Ucrânia e a oeste pela Romênia. Valexandro Yeralovich, seu pai, perdeu Maria Sollkva Yeralovich sua esposa, logo após o casamento. Durante uma caminhada entre duas geleiras, ela prendeu a perna num bloco rachado de gelo e morreu congelada ali mesmo. Foi encontrada duas semanas depois do acidente. Ygor, irmão de Valexandro, penalizado com a tragédia do seu irmão, ofereceu sua filha, a pequena Irena para casar com o tio. Y2 é filho deste casamento consanguíneo. O resultado desta relação quase incestuosa é que Y2 nasceu com glaucoma. Totalmente cego, o pequeno Y2 era cercado por muitos cuidados por Irena. Seu pai achava que a sorte realmente não sorrira para ele.

Muito longe dali, mas no mesmo dia e quase no mesmo horário do nascimento de Y2, nascia no interior do Ceará, Igor da Silva. Igualmente fruto de um relacionamento quase incestuoso entre Zito e sua sobrinha Waldicea de 13 anos. Igor, tal como Ygor, nasceu com glaucoma. Cegos e filhos da sorte incestuosa, eram igualmente fadados a uma dupla aridez: da vida sem visão e do chão frio e sem árvores na isolada Moldávia ou do barro rachado e igualmente sem vida em Crato, interior nordestino.

Irena sofria para cuidar do pequeno Ygor até descobrir que ele era cego. A constatação da falta de visão do menino veio trazer um certo alívio porque foi concedido a ela o direito de ajuda. Acontece que ali perto da casa de Irena morava Chukotka Yupik, ou simplesmente ChuYu como era carinhosamente chamada a velhinha esquimó, de quase cem anos, vinda da Groenlândia. Ninguém sabia dizer ao certo como ela tinha vindo parar ali, mas havia chegado há mais de vinte anos – isso quer dizer que ela já tinha quase oitenta – quando foi morar perto da casa dos Yeralovich. De mãos fortes e rígidas de enfrentar condições tão inóspitas de vida, ChuYu foi a pessoa certa para o pequeno Ygor. A primeira palavra ou grunhido que se ouviu da boca do menino foi Chuuu, ou algo parecido, o que levou a velha senhora a soltar uma enorme gargalhada e mostrar aqui e ali a falta quase completa de dentes.

ChuYu ensinou o menino a andar e colocou-lhe um guizo no pulso para que todos soubessem por onde ele andava no meio de tanta neve. Logo logo o pequeno Ygor estava correndo e brincando com pedacinhos de gelo. Antes de dormir ChuYu contava-lhe sempre a história dos brinquedos invisíveis que existiam em sua longínqua terra natal. Eram brinquedos feitos com sobras da aurora boreal: restos de cores e sombras, luzes esparsas e difusas que corriam ligeiras pelo céu - bem ao alcance das mãos naquela região tão próxima das estrelas - e alguns nacos de gelo com os quais se faziam pirâmides coloridas. As crianças que entravam dentro daquelas pirâmides ficavam invisíveis durante quase uma hora; tempo em que as luzes permaneciam no interior dos seus corpos. Os brinquedos invisíveis eram também conhecidos como crianças-luzes. Mas só conseguiam participar crianças com menos de seis anos. Não se sabia a causa, mas como na Groenlândia um dia ou uma noite podiam durar seis meses, era tempo suficiente para aproveitarem bastante os efeitos dos restos da aurora boreal. ChuYu dizia que os brinquedos duravam até os seis anos porque era quando as crianças começavam a tomar juízo e a fantasia escorria-lhes perna abaixo indo parar nos trópicos. Assim ela acreditava, assim ela contava e também assim o pequeno Ygor ouvia maravilhado a história dos brinquedos invisíveis.

Em Crato, um fenômeno semelhante acontecia para o pequeno Igor. Waldicea, muito nova para cuidar do filho cego, também teve a ajuda de Ingazeira, uma velhinha muito velhinha que de tão velhinha não lhe sobrava no rosto mais nenhum lugar para ter rugas. E cada ruga era um ano seu de vida, como ela mesma, desdentada e sorridente, dizia. E ao pequeno Igor, por incrível que pareça, Ingazeira também contava a história dos Brinquedos Invisíveis. Existia, contava ela, um riacho encantado de águas muito limpinhas, cristalinas e pedras branquinhas. Como é que se soube dos brinquedos invisíveis? Ora, por descuido. Certo dia, uma menina de dois anos caiu bem dentro do tal riacho e os pais prantearam muito por acharem que ela havia se afogado. Uma hora depois do procura aqui, mergulha dali, a menina apareceu bem diante do nariz deles vivinha da silva. Foi assim que o riacho ganhou fama. Mas, igualmente aos restos da aurora boreal, isto de ficar invisível por uma hora, era só para crianças até seis anos de idade. Depois, dizia ela, ficava tudo burro, igual a adulto, e perdia a mágica do desaparecimento.

Quando as crianças desapareciam elas podiam ser qualquer coisa por uma hora: passarinho, ninho, estrela, Saci-Pererê, açude, borboleta, mula-sem-cabeça, traíra, bumba meu boi, cabra, cactos, nuvem, aliás, quase tudo, menos chuva. Ah, isso no sertão não. Ninguém brincava de ser o que não conhecia. E brincadeira de criança é coisa muito séria. Digna de ser olhada dentro dos olhos das almas-pequenas.

Mas vai que um dia, quando Ygor e Igor tinham exatamente quatro anos, aconteceu o inesperado.

Na Moldávia, apareceu um comandante de um navio cargueiro oferecendo levar Ygor para fazer um transplante de córnea nos Estados Unidos.

Em Crato, uma turma do projeto Rondon veio com a boa nova de que conseguiriam levar Igor também para os Estados Unidos para realizar um transplante de córnea.

Assim, no mesmo dia e, quase na mesma hora, se não fossem pelos fusos horários, Ygor e Igor deixaram para trás suas famílias e zarparam para o mesmo destino: Houston Hospital, no Texas. Entraram ao mesmo tempo em duas salas de cirurgia e, lado a lado, realizaram com suspense e muita apreensão o transplante de córneas. E o destino quis que após a cirurgia ficassem na mesma enfermaria e o destino ainda quis que só ChuYu e Ingazeira tivessem acompanhado seus ‘netinhos’.

E, para espanto geral, as duas velhinhas começaram a falar a mesma língua. E cada uma contou a sua longa história pessoal e cada uma contou para o outro (Y)Igor a história dos Brinquedos Invisíveis. Mas, foi então que algo de muito estranho se sucedeu. Ygor e Igor se olharam pela primeira vez. E um viu o seu rosto nos olhos do outro. E viram na claridade da vida como eles eram idênticos: ambos tinham – agora – os dois olhos, uma boca, um nariz, duas orelhas, dois braços, duas pernas, ambos olhavam, ambos se admiravam, porém esta visão inédita do mundo trouxe um pensamento triste: nada mais lhes era invisível. Assim, pela primeira vez eles compreenderam o que lhes faltava e, abraçados, choraram.

Imagens do deserto nordestino


segunda-feira, 5 de julho de 2010

O menino que queria ser mar


Para Maria Camargo que também sabe sobre o mar e seus medos

Gonçalo nasceu sabendo nadar. Foi assim. Aliás, foi muito estranho, mas foi assim mesmo que a coisa se deu naquela casa. Um dia teve uma enchente. Destas em que a água sobe rápido e não se tem tempo nem de pegar as crianças. Soube-se depois que era a mãe de Gonçalo que chorava sem parar e suas lágrimas haviam inundado a tristeza. Iniciou-se no segundo andar onde ficava o quarto do casal. O das crianças - Gonçalo tinha uma irmã dois anos mais velha do que ele - ficava embaixo. O grito de soluços da mãe de Gonçalo ecoou nas fronteiras do abandono. Num domingo de manhã quando ela acordou percebeu que o marido não acordava. Nunca mais deixou de dormir. Ela não queria acreditar. Ela não desejava contar para as crianças que o pai delas jamais acordaria. E chorou. E chorou tanto que a casa foi inundando a saudade que transbordava depressa. Os vizinhos vieram rápido. A rua toda veio ver o fenômeno que teimava em não cessar. As portas trancadas por dentro. A água a subir venezianas e corpos. Bia escorregou no limo criado no corrimão e foi se esconder do medo que dela se apoderava.
Mas Gonçalo ainda era um bebê de seis meses. Da vida, pouco ou nada sabia. Mas ele acabara de ficar órfão de pai. De certa forma ele olhava interrogativo para a janela cerrada. Lá fora os transeuntes, de arregalados olhos, tentavam inutilmente derrubar a porta que insistia em não ser por causa da pressão da água que forçava em sentido contrário uma catarsis sem aviso prévio. Estarrecida, a turba constatava incrédula que Gonçalo, ainda sem linguagem para falar a saudade de um pai que ainda não sabia ter, nadava por entre as correntes da tristeza de sua mãe. Batia suas perninhas por entre interrogações e cadeiras vazias, desatreladas da família. Boiava ideias sem sentimento. Boiava uma música interrompida na segunda faixa. Era Nina Simone que seu pai adorava. Mas Gonçalo também não sabia o que era música a não ser a voz da sua mãe que agora a água salgada de suas próprias lágrimas abafava. A vida assim interrompida sem nenhum propósito aparente, fazia com que o menino crescesse numa velocidade vertiginosa. Em pouco mais de meia hora, já se haviam passados seis anos e Gonçalo, de teimoso, nadava agora sabendo de sua tristeza. As perguntas iam e vinham como ondas de angústia. Os espectadores, agora cada vez em maior número, pagavam ingresso para assistirem numa arquibancada improvisada, a morte embalsamada em lágrimas de mãe, do pai de Gonçalo.
Como não conseguiam abrir a porta, resolveram trazer o mar para perto daquela casa. Primeiro construíram um grande canal por onde o mar poderia, sem incomodar os moradores, aproximar-se daquela família. Foi sem ruídos. Foi da noite para o dia. Foi o dia de esperanças no meio da noite da desolação. Foi um grande encontro quando os primeiros peixes começaram a rondar as janelas do segundo andar. Todos choravam a desventura daquela família. Algas tristes, mariscos encrustados na parede lateral, cachalotes que se contorciam em gritos de dor. O mar avançava sem o pai para lhes proteger. Era um mar sem fúria. Apenas era sem ser. Apenas era água salgada que, pouco a pouco, misturava-se com a água interior igualmente salgada. Lágrimas e mar eram agora um só.
Foi quando Gonçalo percebeu que queria ser mar. Agora ele sabia o que era a tristeza. Agora ele já sabia o que era não ter pai. Estava cansado de nadar. Estava realmente cansado de olharem para ele sempre nadando sem nunca ter pisado os pés no chão.
Então, pela primeira vez, enchendo-se de coragem, abriu a porta e se afogou na vida.

Ps: Para ler ouvindo Nina Simone: "The Laziest Girl In Town" (Cole Porter)