sábado, 24 de abril de 2010

A cicatriz


Joan Miró

A cicatriz

Acordei com uma estranha sensação no peito. Não, não estava arfante. Não era um sinônimo de angústia. Nem pingava de suor. Era muito mais uma ardência do lado esquerdo. Passei a mão por debaixo da fina camiseta de dormir e senti uma leve ranhura na pele. Com a sensação veio uma dor fina, aguda em forma de grito. Mas, silêncio. Não gritei. A casa ainda dormia antes das cinco da manhã. Outra vez silêncio e agora não era porque ainda estava de madrugada. Afinal, há muito tempo eu me acostumara a morar sozinho. Apenas não havia som, palavra ou voz que ecoasse qualquer clamor. Se digo que a casa ainda dormia é que quando acordava fazia com que tudo que me habitasse naquela casa ganhasse vida, dimensão humana, forma comunicável.

Aos setenta e poucos anos a gente vai se acostumando a viver sob a influência de Felisberto Hernandez que me ensinou que os objetos podem ter vida. É uma forma de não se sentir só. Assim, você faz do seu mundo uma habitação para todos os seres imaginários. A fantasia te acolhe no escuro da vida e jorra luz no passado. Isto costumava iluminar o presente. Costumava também iluminar o amanhã, mas depois destas sensações de hoje, fiquei meio incrédulo em relação a uma aposta no futuro.

Talvez pela constatação de que a intumescência sobre a pele agora ardia mais forte. Levantei a camisa diante do espelho e meus olhos nus constataram uma cicatriz sobre o coração. A pele flácida refletia uma vermelhidão como se estivessem acabado de costurar a pele. Pensei ser um sonho, mas imediatamente joguei água gelada em meus olhos. Pensei que pudesse estar tendo um fraquejamento da memória devido à idade. Teria feito uma cirurgia e não me lembrava? Então refiz rapidamente e, com uma precisão incrível, meus dias, semanas e meses. Tudo me era nítido como aquela cicatriz no coração.

Tomei um banho, depois o café como durante anos eu fazia a cada manhã. Depois fui direto para minha máquina de escrever. Nunca abdiquei da minha velha e fiel Remington. Estava escrevendo um livro, quase uma autobiografia sobre A saudade. Agora, diante da folha em branco, lembrei que ontem escrevia sobre um amor antigo, um amor que havia deixado uma enorme cicatriz em meu coração.

Depois desta lembrança passei a escrever de forma frenética e compulsiva como se não quisesse perder um só centavo de memória vivida na juventude. E quanto mais escrevia, percebia que a cicatriz ia diminuindo até desaparecer por completo a noite, para misteriosamente reaparecer no dia seguinte. E, desde então, assim tem sido todos os dias. A cicatriz já não me incomoda mais, pois descobri que a palavra é o que me cicatriza. Aliás, dela não quero mais me desvencilhar. Da palavra-cicatriz. Ela agora faz parte da história do tempo do meu corpo, das ranhuras da minha pele, dos perfumes esquecidos da minha infância e, principalmente, das reviravoltas do meu coração.

sábado, 17 de abril de 2010

João Luís e os pássaros



João Luís morava no sítio do meu avô. Era filho do filho do caseiro. Estranha genealogia aquela. A mãe de sua mãe havia desaparecido juntamente com sua mãe, assim que João Luís nasceu. Avó e mãe de uma vez. Mas, estranhamente, João Luís não era um menino triste. Eu que tinha exatamente a sua idade, tinha minhas crises de subir em árvore e só descer quando já haviam cansado de procurar por mim e a lua alcançava a ponta do galho mais alto. Nestes dias andava triste como se fosse minha mãe que havia esquecido de nascer para mim. A mãe de João Luís, sempre achei isso, havia esquecido de nascer para ele. Pensava como ela podia tê-lo abandonado.
Mas João Luís definitivamente não era triste. Andava sempre de mãos dadas com a alegria. Parecia que sempre tinha um sorriso dentro do bolso de seu short pronto a ser usado em qualquer ocasião, em qualquer encontro. De dia ou madrugada. Na chuva de trovoada ou no calor dos desabrigos eternos.
Eu o invejava. Mal sabia o que era música e Billie Holiday já cantava dentro de mim. Era dado a nuvens escassas, atemporais, enquanto ele, muito mais inteligente, era dado a sabiás, melros e coleros.
Fiquei extasiado na primeira vez que o vi fazer aquilo. Pensei que eu estivesse sonambulando, dormindo ou fosse pura magia. Mas, repetiu-se uma outra vez. E mais outra. E muitas mais. Estávamos num vale verdejante entre árvores de troncos convidativos para subirmos. No alto de uma destas árvores havia um ninho de coleros. Pensei que me faltava coragem para subir até aquele galho fininho só para espiar os ovinhos dos filhotes por vir.
Foi quando vi uma andorinha dar um voo mais baixo e João Luís sem nenhum esforço pegou-a no ar. Olhou-a enternecido, abriu dois dedos para me mostrar por inteiro e devolveu ao ar. A andorinha custou a entender a posse de sua liberdade. Ou devia ter achado a mão de João Luís aconchegante. O fato é que ela ainda ficou por ali alguns preciosos segundos como que querendo me mostrar que era fácil capturá-la. Perguntei como ele havia feito aquilo, enquanto a andorinha agora ganhava o azul do céu. Ele não me respondeu e fiquei com a impressão de algum blefe ou que o passarinho estivesse com uma asa quebrada. Mas não podia, pensei, pelo voo altaneiro que havia nos deixado deslumbrados. E para provar que não havia sido mero acaso, João Luís repetiu o feito com um sabiá da terra que voava a mais de vinte metros do solo. Fiquei estupefato. Pegar passarinho no ar era o grande sonho de todo menino da roça. Mas, a mais de vinte metros de altura era uma façanha que Hércules gostaria de ter feito. Quis chamar Monteiro Lobato, mas não o encontrei.
Estava só com o enigma João Luís e maravilhado em ser de criança que se arregala com tudo aquilo que não entende. E eu não entendia. Não entendia como o céu podia ser tão afeito ao João Luís. Será que ele havia achado uma brecha que trocasse a orfandade de mãe e avó pela possibilidade de ser mais leve do que o ar? E eu era mais pesado que o pensamento, pois eu não podia alcançar como ele conseguia fazer tudo aquilo. E fazia brincando. Talvez fosse por isso. Eu queria fazer a sério. Minhas brincadeiras eram a sério, enquanto ele ria e ria e ria. De noite os pássaros eram sempre mais escassos, mas sua astúcia não. Bastava ter um pouco de lua para que João Luís estivesse fazendo eclipse entre ela e a terra. E descia feliz com um pequeno passarinho entre seus dedos.
Muitos anos depois retornei ao sítio do meu avô. João Luís continuava lá. Ou melhor, aquilo que eu achava que era ele. Vi algumas vezes uma silhueta cruzar muito rápida pelo céu fazendo todas as folhas curvarem-se diante de seu voo. Pelo tamanho do contorno do corpo continuava um menino. Ao contrário de mim. Ele continuava voando pelos horizontes. Ainda intrigado como ele conseguia, perguntei ao Seo Nonô, o velho faz-tudo lá do sítio no que ele me respondeu:
- E o senhor não sabe? Não sabe mesmo o que ele faz para conseguir voar?
Olhando atordoado, respondi negativamente apenas balançando a cabeça de leste a oeste. E, como quem desvenda um grande enigma, disse muito resoluto.
- Ele sempre acredita que está segurando as mãos de sua mãe enquanto voa. É assim que consegue.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

O não-lugar de Clarice



Para Bianca Dias, que em sua conversação com Nadia Battella Gotlib, falou sobre o não-lugar de Clarice


Clarice não está. Bati na sua porta muitas vezes e sempre ecoava do outro lado a mesma resposta: Clarice não está. Fiquei preocupado com esta ausência. Queria entregar-lhe em mãos uns desencontros, uns textos que ao longo da vida havia escrito. Queria entregar-lhe algumas outras coisas: algumas lembranças, algumas gotas de orvalho estancadas na pedra, uma lágrima cristalizada por cima de uma notícia triste do jornal, alguns desejos, despejos e outros arrependimentos. Queria, quem sabe, entregar-lhe outras palavras que talvez nem mesmo existissem. Fossem só ficção. A palavra ficção é uma ficção? E a palavra amor? Como é que se escreve? A procurei desde cedo por isso.
Mas, sempre voltava de sua porta com a mesma resposta. Sempre, sempre, sempre. Como um eco surdo ou como uma voz diáfana por onde a claridade de sua voz, voz clariceana, deixava entrever palavras-luz, palavras-setas que perfuravam imagens, pensamentos e quebravam conceitos.
Foi então que comecei a perceber o não-lugar de Clarice. Ali aonde ela não estava deveria sua palavra advir. O não-lugar de Clarice era a palavra. Clandestina palavra. Descobria assim, a cada vez e aos poucos, que não adiantava procurá-la lá aonde eu pensava encontrá-la. Pois este outro lugar era sempre o lugar da invenção. E, nesta época, eu ainda era muito jovem para perceber isto que a cada dia descobria sobre ela. Ainda não tinha dezoito, mas ela já habitava em seu não-lugar. E eu a amava justamente por isso. Eu é que por muito tempo ainda insisti em querer dar um lugar para ela. Para ela em mim. Minha atopia.
Com o passar dos anos fui descobrindo que me era inútil querer encontrá-la, mas sempre que o desejo tornava-se insaciável - e isto era muito frequente -, corria para minha estante e fazia com que ela me achasse. Pois a cada vez e sempre e com maior força e intensidade, eu estava lá dentro daquelas páginas. Cada vez que eu me perdia em labirintos de mim eu quase me dava ao luxo de me reencontrar, atônito, entre Gê Agás, Lóris, Ulisses, Macabéias, Joanas.
Como era possível um não-lugar? Como era possível uma "terceira margem" clariceana? Até hoje ela me deixa num grande desassossego d'alma com este não-lugar. Até hoje não encontro respostas para ela. Então, como que querendo me consolar e atribuir quase que ao acaso (se houvesse) a resposta para todas as perguntas, abro uma página e leio: "a repetição de um enigma é a repetição do enigma. O que És e a resposta é: ÉS. O que existes? e a resposta é: o que existes. Eu tinha a capacidade da pergunta, mas não tinha a de ouvir a resposta."
Talvez tenha sido por isso. Já faz tanto tempo que nem lembro como tudo começou. Talvez muito amiúde e, com todo cuidado, é que afirmo com a emoção aos soluços este intraduzível desejo de ouvir. Escutar estes não-lugares. Quem sabe?

sábado, 3 de abril de 2010

Minotauro


Soturno. Há algum tempo Antenor não via a luz do sol. Não é que não saísse. É que sua vida perdera o brilho há muito tempo. Não achava graça em nada e de tudo que fazia - era policial aposentado -, resumia-se só em patrulhar seu bairro por conta própria. Saía para fazer sua ronda por volta das seis da tarde. Não gostava de televisão. Então, quando começavam as novelas, ele partia em busca de manter a lei e a ordem.
Certo noite entrou no Barro's, um modesto armazém e encontrou uma mulher apontando uma arma para o dono do estabelecimento. Antenor não titubeou. Sacou da sua arma que trazia em seu coldre e deu dois tiros certeiros. A mulher caiu sem ter tempo de dar um grito sequer. Foi o Barros, o dono do armazém que começou a gritar feito um louco chamando a polícia. No pânico causado, Barros não reconheceu Antenor. O valente ex-policial, agora sozinho dentro do armazém, deparou-se, para seu horror com uma mulher segurando um secador em sua mão direita. Agora, morta, apontava a acusação contra ele. Agora, a morte tragava-lhe a alma não sem um certo regozijo. Havia extirpado um mal. E, se havia iniciado a limpeza, deveria continuar. Em seu delírio, Barros, o velho dono do armazém, também precisaria ser eliminado. Achava-se o salvador. Portanto, era preciso salvar o mundo da imundície e da escória humana.
Sem saber onde estava em sua razão e certo em seu desvario, Antenor correu de arma em punho atrás do pobre homem. Encontrou-o não muito longe, diante da farmácia que ainda estava à meia porta. Atirou mais uma vez deitando-o fulminado ao chão. A porta semicerrou-se. Com um único pontapé a porta de um solavanco destravou-se do chão e escancarou a tragédia por vir. Por detrás do balcão a família de sul coreanos estava apavorada. Encarregou-se do pai, depois foi a vez dos filhos e da avó que mal falava português. Antenor ainda teve tempo de varrer desta vida o jovem entregador que se abaixara por detrás dos produtos de higiene pessoal. Triste ironia.
Preso em seu próprio labirinto, Antenor correu durante toda a noite pela cidade. Suado, exausto, com os sapatos furados na sola, olhos esbugalhados, embrutecido por uma vida íntegra, totalmente dedicado a combater o mal, bastou o rompimento de um pequeno fio para transportá-lo para a outra margem de onde não conseguiria nunca mais sair. Estava a margem de si mesmo sem o fio condutor que apontasse uma saída plausível. Antenor refugiou-se na loucura.
Encarcerado no manicômio judiciário, autodenomiva-se: Jesus, o Minotauro.