sábado, 30 de janeiro de 2010

O despertar da primavera

Nympheas - Monet


Clarice sonhava amanhãs. Entrava na adolescência. Sabia que era espantoso defrontar-se com as inéditas manifestações curvilíneas de seu corpo. Um espanto alegre, fabricado na contemplação dos seus olhos verde-água, lânguidos diante do espelho de sua primavera. Um olhar mais demorado aqui e a descoberta de um contorno a mais, outro ali e a grandiosa descoberta das descobertas. Susto, cócegas e delicadeza se afinavam como um piano para um concerto maior.
Clarice carregava amanhãs em seu dia. Sonhava futuros na paixão da descoberta. Sorria diante de seus enigmas, suas feminilidades. Não, nada a amedrontava, pois nutria desde menina o sonho de um grande amor. Suzana, sua melhor amiga, já havia lhe contado como havia sido o primeiro beijo com língua. O frêmito da descrição só fez suscitar em Clarice o encontro por vir.
No verão viajou com seus pais para Paris. Lá era inverno e ela ia pela primeira vez pisar na neve. Despediu-se da amiga que ainda teve tempo de contar-lhe mais uma ou duas aventuras nos braços de Diego, o que só lhe aumentou o encanto da paixão revelada.
No Museu Marmottan Monet, encantou-se com o impressionismo e com o olhar de um rapaz não muito mais velho do que ela. O primeiro movimento foi de fechar-se em dobras, protegendo-se sobre seu próprio corpo, mas bastou que ele sumisse numa outra sala, para que ela retomasse o desejo correspondido.
"Mãe, posso andar por aí?", perguntou excitada Clarice, querendo saber mais sobre aqueles olhos azuis que haviam demorado o tempo de provocar um calor desconhecido no inverno daquele corpo.
"Claro filha, mas não saia do museu".
Clarice entrou na sala onde estavam Pisarro, Sisley e um Renoir. Sentou-se diante da tela de duas meninas num barco. Estava no encanto de descobertas, quando uma mão pousou suave, mas firme sobre seu ombro direito. Num susto ficou de pé. Era ele. Era ele a menos de um metro de distância. Sorriu sem graça achando que já havia ido longe demais. Seu peito arfava sem conseguir esconder o brilho de seus olhos. Ele era o menino mais bonito que ela já havia visto.
-"Parle tu français?"
Diante da negativa com a cabeça, ele a tomou suavemente pela mão e a conduziu por uma sala, depois outra. Parecia saber por onde se movimentar e ela simplesmente deixava-se arrastar pelo desejo. Num corredor que ia dar no toilette, ele parou e encostando-a contra a parede e olhando fixamente dentro dos seus olhos, a enfeitiçou com um beijo que lhe molhou todo o corpo. Suas pernas tremiam e enquanto ela não conseguia pensar em nada, só sentir o inexplicável da paixão, ele com mestria, abriu-lhe o casaco, levantou-lhe a blusa, roçou com a língua o contorno da auréola de seu seio esquerdo e mordiscou o entumescido desejo. Deu-lhe outro beijo em sua boca e saiu com extrema rapidez. Ela custou a se recompor. Saber onde estava e o que tinha acontecido parecia-lhe impossível. Transbordava em sentimentos inaugurais. Uma lágrima feliz rolava em seu rosto sem saber o motivo ou sequer o nome.
Foi ao banheiro e ficou uma eternidade olhando-se no espelho. Levantou novamente a blusa como que querendo reencontrar o nome da deliciosa ardência que ficara em seu seio. Passou com leveza sua mão sobre aquela parte tão sensível de seu corpo. E sorriu sem saber. Apenas sorriu para si mesma. Sentia uma sensação inexplicável. Uma parte de seu corpo agora lhe era muito íntima, mas estranhamente, parecia não mais lhe pertencer. Saiu correndo do banheiro e já no corredor deparou-se com sua mãe. Estava aflita. A mãe, é claro. Clarice já andava em nuvens de primaveras. Seus amanhãs.
-"Onde você estava?", disse a mãe entre raivosa e aliviada.
-"Tive vontade de ir ao banheiro". Era quase mentira, era quase verdade.
Clarice adiantou-se aos passos de sua mãe, mas não o encontrou. Nem ao menos sabia seu nome, ou e-mail para trocar correspondências.
Seus lábios haviam provado da existência da vida. Era uma provação que a vida lhe fazia. Provação sem respostas é abismo em primeira instância. Foi o que sentiu. Passear por Paris havia perdido o encanto do novo. Seu único olhar era para tentar reencontrar o calor em seu corpo descontínuo. Ele inaugurara em seu corpo o mistério do desejo e, seria por muito tempo, o impressionismo inscrito em sua pele. Ele era seu Renoir. Deu este nome para ele. Aquele rosto, aquela boca, aquelas mãos precisavam de um nome.
Só não conseguiu nomear o que sentia. Apenas, em sua saudade, dizia para si mesma que agora tinha uma alegria-triste.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Campo de concentração


Yael tinha oito anos quando foi molestada pelo padrasto. Não foi a única vez. Com a "facilidade da familiaridade", outros toques, novos olhares iam se avolumando sobre aquele pequeno e frágil corpo de menina. Com o passar dos tempo, Yael que era uma menina dócil, meiga e brincalhona havia se transformado numa criança irritadiça e mal educada. Aos treze anos ela já não queria mais ir para a escola. Aos quinze havia fugido de casa sem nunca ter conseguido contar nada para sua mãe. A revolta interna deu lugar a fuga. Yael morava em Haifa, cidade próxima a Jerusalém. Num dia entrou num ônibus e foi até ao Muro das Lamentações. Havia escrito uma carta para D'us. Nesta carta pedia o que a vida não havia lhe dado. Mas, sempre não pedimos o que não temos, ou acaso alguém pede o que já possui? Com ela não foi diferente. Aliás, foi muito mais sentido. Isto sim, pois seus olhos transbordaram ao colocar o papel na parte à direita do muro destinado as mulheres. Yael pediu com força. Pediu destemida. Que a vida fosse só isso, definitivamente ela não acreditava. Por detrás de seus olhos verdes, sua pele branca e seus cabelos muito negros, Yael escondia a beleza da garra pela vida de quem aprende através da dor.
Não ia sucumbir àqueles anos de molestação sexual. Que a procurassem nas periferias, que a procurassem nas sinagogas. Ela havia se comprometido com a vida. Poderia ser "mulher da vida", esta profissão inaugural, pois aprendera muito. Mas decidira ser mulher-com-vida. E, pensando assim, veio-lhe a ideia do 'campo de concentração': fato triste e humilhante não só para os judeus, mas para toda a humanidade. Para sempre relembrado, e, portanto, nunca recalcado. Pensou que gostaria de fazer o seu Campo de Concentração e, assim, subverter a lógica de que a vida iniciada torta não poderia ser desfeita. Queria "concentrar" num único espaço as diferenças. Queria um campo de concentração para o pensamento sobre o novo, para as atenções e as novas ideias que lhe brotavam: acolher diferentes raças e etnias. Queria provar que era possível o convívio entre judeus, palestinos e árabes. Queria se desvestir da sua dor, da intolerância generalizada e do sofrimento imposto. Criaria uma escola onde "concentraria" a diversidade, a diferença e a tolerância. Hoje, nesta escola, ninguém se diz árabe ou judeu, mas simplesmente, seres humanos. Yael conseguiu atravessar o seu Muro das Lamentações...

Parte deste texto foi inspirado numa história real, numa escola real, contada pelo jornalista Ari Peixoto. Reproduzo um trecho:

Escola árabe-judaica dá exemplo de convivência pacífica em Israel

Judeus e palestinos vivem em harmonia, com respeito e amizade. Isso é possível para uma nova geração.

ARI PEIXOTOJerusalém

Duas professoras em sala de aula. Uma fala hebraico. A outra, árabe. Elas explicam as formas geométricas para alunos da quarta série, israelenses e palestinos. Não muito longe dali, as brincadeiras das crianças do jardim de infância, comandadas pelas professoras Mimi e Aya, também nos dois idiomas, confirmam que esta não é uma escola comum.

Das cinco escolas bilíngues Max Rayne que funcionam no país, a de Jerusalém, inaugurada em 2008, foi a pioneira. Lili, argentina de nascimento, diz que um idioma complementa o outro, e isso ajuda os alunos e que tanto ela quanto Angie, a colega de classe, se sentem realizados trabalhando na escola.

Atualmente, 500 alunos árabes e judeus sentam-se lado a lado nas salas de aula. Juntos, discutem as lições ensinadas pelos mestres. Aprendem a respeitar as diferenças culturais e, acima de tudo, aprendem que suas escolhas não dependem das questões políticas dos governos.

Em qualquer outra parte do mundo, isso não chamaria a atenção. Mas em uma região onde ódio e violência são matéria-prima do dia a dia, a iniciativa bem pode ser chamada de revolucionária.

Mais do que provar que a coexistência em harmonia entre árabes e judeus é possível, escolas como esta são uma espécie de ponte entre um presente e um passado de guerras e discórdias e um futuro de paz e compreensão.


Recomendo o documentário: "Promises" (promessas de um novo mundo).

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

"Nada é mais real que nada" Samuel Beckett

Samuel Beckett

Acordei com um formigamento estranho no corpo como se minhas mãos tocassem Bach através de Glenn Gould.
Quis sair deste estado, mas não consegui. Lembrei de Malone morre de Samuel Beckt, personagem envolto em palavras numa cama em ruínas. Malone está acompanhado apenas um mísero lápis que não cabe em suas mãos e um caderno de rascunho que não deveria estar ali. E, no entanto, o livro transborda voando rápido por mil sentimentos enquanto Malone em oposição a tudo, é tão vagaroso. Extremamente vagaroso mesmo em seu ato de morrer. Engraçado. Abro Malone como quem abre a Bíblia procurando uma resposta para uma pergunta que não me habita e encontro um trecho grifado por mim. Há quanto tempo? Sob o marca-texto amarelo já quase apagado, leio: "Me pergunto qual será minha última palavra, escrita, as outras voam, em vez de ficar." O formigamento bachiano não some, ao contrário, um torpor allegro ma non troppo invade os poros e entre os quatro tempos de uma semibreve e 1/16 das semifusas, releio outro trecho: "E aí estou eu, que pensei que ia encolher, encolher, cada vez mais, até quase poder ser enterrado dentro de um estojo de jóias, eis que me dilato."
Este esforço maloniano de quase-morte, esta sua dicotomia (em Beckett tudo é assim, ou quase, e 'quase' é uma palavra essencial em sua alegoria) revela o ponto alto do jogo de contradições que parece incomodar tanto ao protagonista. Enquanto encolhe e dilata, sua morte lhe dá vida. Dualidade pulsional: eros e thanatos tão presentes que se nota a todo o instante o que não há. E encontro em itálico este desconcerto: "Nada é mais real que nada." Como se se bastasse de nadas. E isto é tudo. Ou quase. "Não há mais nada a dizer, embora nada tenha sido dito." No espanto que este dia me conserva, descubro o elo de parentesco entre Malone e Glenn Gould:
O contínuo esvaziamento que não cessa de não acontecer é o bachiano transbordamento.
Paulo Leminski (1944-1989), tradutor deste maravilhoso Malone morre, me acorda para uma frase de Walter Benjamin: "toda alegoria é uma ruína da realidade".
Na trilogia beckettiana, recorro a Molloy e, selvagem como uma hiena faminta, constato: "É meia noite. A chuva está batendo nas janelas. Não era meia-noite. Não estava chovendo."
Quis me reconciliar com o dia e, ingenuamente, fui ao O Inominável, último da trilogia e, finalmente, encontrei o que não queria: "...no silêncio não se sabe, tenho de continuar, não posso continuar, vou continuar."

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Amanhãs



Retomo meus amanhãs. Minhas memórias inventadas na infância. Memórias que fabrico na saudade dos dias e na felicidade dos reencontros. Reencontrar-se com o passado é fabricar amanhãs. Fábrica preciosa de palavras, letras e textos que escorrem prateados de estrelas. O hoje é apenas ponte entre passado e futuro e, por isso, deve ser construído com as mãos cheias de outros pequenos trechos da vida. Hannah Arendt sabia disso. Clarice Lispector vivenciava isso, não-sem sofrimentos, e Stéphane Mallarmé jogava com seu dia quando dizia que "um lance de dados jamais abolirá o acaso". O hoje, nascimento diário, surpresa por ter acordado e saber-se vivo, precisa ser fabricado e não importa de que material você o fabrica. O que é importante é que este material seja verdadeiro, honesto para com você mesmo. Ética, dirão alguns.
Alguns fabricam seus dias com Pina Bausch, outros com Chet Baker, outros ainda com Baudelaire, Rimbaud, Drummond, Freud, Pessoa, Almodóvar, Frida Kahlo e Diogo Rivera. Alguém me puxa pela manga da camisa para dizer: "ei, espera aí. Eu fabrico meus dias com Einstein e relativizo tudo." Paro atento e sorrio um meio riso relativo. Fico feliz porque esta pessoa me retribui com a generosidade da curva do seu tempo.
Seguir em seu dia acompanhado da leveza do encontro é morrer um pouco. E se é feliz quando se morre um pouco. Não-todo. Porque nestas pequenas mortes você tem a possibilidade de dar lugar para renascer amanhãs.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

100


Este pode ser um número qualquer, mas os números servem para, entre outras coisas, contar. Então, festejo o que eu mesmo não sabia quando comecei este blog se passaria de um ou dois post. Pois é, com "A ponte", foram 100. Número expressivo para mim que sempre tive por "ideologia editorial", se é que posso dizer isso de um blog, nunca postar textos já conhecidos. Acharia uma perda de tempo postar textos que todo mundo pode encontrar nos livros ou aqui mesmo nesta blogosfera. Mesmo que estes textos falassem por si próprios e que talvez fossem até mesmo maiores que seus autores. Sempre priorizei os inéditos. Quem é que se cansa de ler Drummond, Shakespeare, Pessoa, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, ah, sempre ela, e tantos outros? Mas, por que ler a parte se podemos ler o todo? Ler os clássicos é uma obrigação de todos. Mas estas intermináveis citações sempre me cheiram mais a pout pourri, ou seja, aqueles cds que me enchem de nada. Prefiro um texto com início, meio e fim. A honestidade para com a palavra (escrita ou falada) sempre foi-me cara. Trata-se de ética, principalmente quando se trata de ficção. Ficção não é mentira, muito menos a metáfora. Criar, inventar, recriar e nunca imitar, plagiar deveria ser uma condição para o mundo expandir-se, mas o que mais constato é a banalidade do "copia e cola".
Aqui, durante este tempo, (0 Veredas tem menos de um ano. Nunca parei para contar nem tempo nem quantidade de textos, mas aconteceu a coincidência) também teve espaço para "outras palavras", uma rubrica destinada a todos aqueles que quiseram escrever suas prosas e seus versos.
Por que escrevo uma não-ficção neste espaço? Para lhes dizer que no momento estou envolvido em outro projeto literário que espero dar conhecimento em breve para todos vocês.
Fiquem por aí. De vez em quando passem por aqui. Talvez eu já tenha terminado.
Agradeço a todos que aqui deixaram seus comentários, pois também me serviram de inspiração. Pode não parecer, mas a inspiração pode vir de uma única frase escrita por vocês. Uma pequena palavra ou letra que tenha ficado esquecida, adormecida numa tela de Van Gogh. Digo que estas são as melhores para escrever. Estas formam as melhores palavras, frases, ideias, histórias e, através delas, surge a possibilidade de alcançar a luxuosa leitura de vocês.
Um grande abraço e até breve,
Carlos Eduardo Leal

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

A ponte - um conto

Nestor Alcalino surgiu do nada no meio da névoa na cabeceira da ponte em noite de sexta-feira. Trazia em sua mão direita um estranho amuleto feito com uma pequena caveira sobre uma cruz entalhada num pedaço de osso seco de chifre de boi.

O objeto ficava preso a uma corda branca a qual fazia girar ao redor do seu pulso sem parar. O barulho que fazia era parecido com um zumbido de um enxame de um milhão de abelhas. Este movimento contínuo, perpétuo, associado ao estranho zumbido, assegurava-lhe uma travessia segura da ponte naquela hora sem lua, de noite nebulosa. Ao menos assim ele pensava que estaria livre de qualquer perigo como sempre estivera. Este amuleto lhe havia sido dado quando ele ainda era criança, na verdade, seis meses antes do seu avô, Agudo Açoite, falecer aos cento e três anos de vida.

Recebera-o das mãos do próprio avô com algumas rezas e recomendações. Seu avô tinha sido escravo, daí a propriedade ou impropriedade do seu nome. Não se sabia bem se era nome de batismo ou de batida açoitada.

Lembra pouco do avô. Negro quase azulado, a face esquerda do rosto queimada pelo azeite fervido – maldade e castigo por ter se revoltado e não comido a lavagem que era para os porcos - e, como conseqüência, ficou com um olho caído e quase murcho, mas era o que, segundo ele, o que melhor ‘avistava a fina grandeza das coisas’, porque foi através deste olho que passou a ‘enxergar a realidade da dureza da vida sem anteparo, cabresto, nem antolhos’.

Lembra também do cabelo já bem esbranquiçado do avô e da sua voz grave respondendo à pergunta dele sobre sua idade: meu menino, preto e ex-escravo, quando já está com os cabelos brancos é porque já perdeu a conta e a vontade do se ir de viver.

Mas Agudo Açoite era um sujeito bom. Não guardava ressentimentos, mágoas ou qualquer coisa que lhe retirasse da ponta da língua uma palavra que humanizasse e colorisse de esperança o destino humano. Talvez o ferro e o açoite diuturno tenham lhe dobrado a ousadia, mas não. Quem sempre o conheceu afirmou que ele sempre foi de rezar até para cachorro vadio, principalmente para estes que não tem o que comer. Já a lenda sobre seu nome ia bem mais longe do que isso. Dizia-se que ele tinha o poder de falar com os antepassados dos seus antepassados que haviam ficado na África. Sobre isto ele próprio afirmava que com mortos não falava, mas sim com vivos viajantes estelares. Ouvia-se também do seu poder de cura: práticas xamânicas que retiravam dores, crianças que teimavam em nascer, mau olhado e que havia enfrentado e vencido o próprio redemoinho numa encruzilhada.

Durante as noites de lua cheia, mandava fazer uma pequena fogueira bem no meio do terreiro, puxava sua ‘cadeira de recosto do açoite’, como ele mesmo denominara a cadeira de palha seca e espaldar alto que seus antigos senhorios haviam lhe presenteado por tantos anos dedicados à lavoura e ao trabalho escravo, braçal. ‘Finalmente’, dizia, ‘algo no qual eu posso recostar e descansar os braços já sem viço e desnecessários para o plantio’.

Então, reunido pelos filhos, genros, noras, netos e uma infinidade de amigos e sob o crepitar do fogo crepuscular, Agudo Açoite começava a falar de como andava pelo céu a cruzar oceanos e terras longínquas, de povos com um olho bem no centro da testa, de seres encantados, de faunos a entidades espirituais que jamais encarnavam e do brilho das estrelas que ele havia visto bem de perto.

Dizia que as estrelas luziam mais na pátria África do que nas Américas, mas que elas estavam ali em cada um daqueles tições em brasa. Cada estalar de um pedaço de bambu no fogo, era uma nova vida que se iluminava no céu através da criação de uma nova estrela. Portanto, a cada nova estrela surgida, era a esperança renovada no coração de cada um de nós aqui na terra. Esta era a nossa conexão com os céus.

Xangô, Oxossi, Osíris, Ceres, Iemanjá e tantos outros deuses eram apenas os intermediários e verdadeiros guardiães da presença do céu aqui na Terra.

Vez por outra, segundo o costume e a tradição de cada cultura, de cada povo, os céus enviavam um intermediário: Sócrates, Jesus Cristo, Santo Agostinho, Buda, Gandhi, Maomé, Martin Luther King, Bashô, Dalai Lama, Mozart, Einstein, Nelson Mandela, Fernando Pessoa, Maimônedes, Zumbi dos Palmares e Padre Cícero Romão.

Vez por outra, os céus enviavam suas estrelas para jogarem um pouco de luz aqui na Terra na luta contra as trevas do mal. Se não esclareciam, ao menos lançavam novas significações ao mundo das ignorâncias do homem frente a outros homens e sobre os mistérios do universo e suas galáxias cintilantes.

- Vô Agudo Açoite...disse quase sussurrando o pequeno Nestor Alcalino, que se encontrava por detrás dos adultos ouvindo atento as histórias encantadas daquele sábio homem.

- Sim, meu neto? O que você quer?

- Quero nada não vô. O senhor é que esqueceu de colocar o nome do senhor nesta lista. Eu é que acrescentei seu nome nesta lista de pessoas que haviam caído do céu que o senhor falava aí.

Todos riram achando graça na verdade do pequeno Nestor.

- As pessoas não caem meu filho, disse Agudo Açoite. E continuou. Elas são enviadas.

- Por quem? Insistiu o neto.

O avô que parecia ter sabedoria para tudo, não se deixou embaraçar nem pela esperteza do menino, nem pela dificuldade da pergunta.

- Quando um povo está precisado de ajuda pelo sofrimento que está passando, este povo pede aos céus e eles enviam estas pessoas especiais para acabar com o mal ou fazer entendimento novo aos mistérios antigos. Lá no céu há uma fábrica espiritual de pessoas iluminadas que vêm de tempos em tempos nos visitar durante uma temporada da história humana e abrir caminhos quando os homens estão em encruzilhadas que eles próprios se meteram.

- Por que o senhor não pediu para vir um homem para acabar com a escravidão?

- Ah, mas veio o Zumbi dos Palmares e muitos outros. O mais importante, meu neto – e agora o avô parecia dirigir a palavra só para ele como se num passe de mágica não tivesse mais ninguém ali: o mais importante é que você não tema as coisas espirituais pois tudo no coração da alma tem a sua hora e seu modo de ser. Para todo espanto há um encantamento, para todo medo haverá um bálsamo que irá clarear a sua mais escura noite, para cada solidão haverá sempre de surgir uma companhia de onde você menos espera, mesmo que seja um cachorro que também esteja perdido no meio de uma floresta. Então vocês farão companhia um ao outro e encontrarão a saída para a vida que ambos precisam. Lembre-se, o cachorro precisa de você tanto quanto você dele. Seu latido é sua prece e sua prece o uivo que cuidará do seu caminho.

- Vô, um cachorrinho também pode ter caído do céu?

- Principalmente ele, meu neto. Sem dúvida nenhuma. Principalmente ele.

Nestor Alcalino ficou muitos anos da sua vida com aquelas palavras de Agudo Açoite, seu avô das estrelas.

No fim do dia em que lhe deu o objeto, antes da entrega, houve um ritual de purificação.

Agudo Açoite mandou seus filhos varrerem o terreiro três vezes no formato de uma cruz com uma vassoura feita com galhos secos de bambu e folhas de eucalipto novo, bem verdinho. Assim ele havia determinado, assim foi bem feito. Com sal grosso ele mesmo fez um círculo com cerca de dois metros de diâmetro bem no meio do varrido terreiro e determinou que levassem sua cadeira para o centro. Jogou enxofre em torno do círculo e ateou fogo. Nestor jamais esqueceu o odor do enxofre amarelo virando fumaça e ardendo em seus olhos. Ele tinha seis anos quando foi iniciado pelo avô na arte da purificação do mal, como seu avô chamava.

Então Agudo Açoite entoou cantigas de ninar e as fez coincidir com antigas preces em ioruba e nagô. Etim jeje anago, nagô. Etim jeje anago, nagô. Repetia cantando alto e todos repetiam cantando aquelas palavras que pareciam baixar os céus sobre a Terra.

Em certo momento, já próximo da meia-noite, houve um silêncio só quebrado pelo crepitar do fogo. O vento morno daquele verão unia abraçando aquela comunidade regida pelo Agudo Açoite. Foi só então que ele chamou Nestor Alcalino para dentro do círculo. Houve expectativa, estalar de dedos e nenhum riso. O menino calculou os passos para não pisar sobre a linha ardente. Andou todos os passos como se estivesse aprendendo a dar seus primeiros passos em sua pequena existência. O que ele não sabia é que aqueles seriam verdadeiramente seus primeiros grandes passos para uma outra dimensão em sua vida. Todos se abraçaram contritos fazendo um grande círculo em torno do círculo menor onde estavam avô e neto. Um círculo em torno de outro círculo significava do ponto de vista do tempo, a eternidade, e em relação à espiritualidade, uma dupla aliança inquebrantável. Assim o espiritual se perpetuava através da aliança com o tempo. Esta era firme crença de Agudo Açoite e de todos que o cercavam, pois fora esta crença que o teria conduzido da escravatura até a liberdade, da ignorância até a sábia iluminação.

Sentado em sua cadeira, segurou o menino pelos dois ombros e olhando fixamente nos olhos, soprou-lhe uma poeira estelar e lhe confidenciou palavras inaudíveis a todos os presentes, menos para Nestor Alcalino que parecia decifrar cada mensagem cifrada para o círculo externo. Depois de transmitir-lhe todos os ensinamentos, depois de segredar-lhe as antigas tradições advindas de um passado longínquo, Agudo Açoite levantou-se e falou para que todos, enfim, pudessem escutá-lo.

- Nestor Alcalino, segure este amuleto firme e o faça girar e zunir toda vez que passar pela ponte. Não deixe de girar no seu pulso e em noites de intenso nevoeiro, aconteça o que acontecer nunca pare no meio dela e nem olhe para baixo.

Nestor Alcalino, homem zeloso de seus ensinamentos avoengos, ao longo da vida nunca deixou de cumprir o ritual profetizado.

Tornou-se enfermeiro dedicado a toda a sua comunidade e criou uma escola onde alfabetizava adultos e crianças. Estava claro que as lições de seu avô haviam dado o brilho necessário para uma vida simples, mas extremamente iluminada. Apesar de ter ficado viúvo muito cedo e com três filhos para criar, Nestor tinha sempre uma palavra encantada para aliviar as atribulações de cada um como se ele não tivesse as suas próprias dores. Mas quem é chamado para uma missão não cabe a ele decidir se fará ou não. O destino é mais forte. Assim teria sido desde os antepassados de seus antepassados.

Desde sempre morou num lugarejo chamado Mata, pequeno município de Rio Bonito no interior do Estado do Rio de Janeiro com uns quatrocentos e poucos habitantes.

Os habitantes de Mata para saírem de suas casa e chegarem ao local conhecido como Reza do Açoite, em homenagem ao seu avô, tinham que cruzar uma velha ponte de madeira sob um riacho fundo. Ali era o lugar para rezarem pelas crianças, pelos ancestrais sofridos na escravidão e os escravos das doenças e outras atribulações. Era um local santo para a purificação do mal.

Ali estava Nestor Alcalino no meio da névoa na cabeceira da ponte. Era uma noite de sexta-feira, noite das rezas sagradas porque era noite de lua cheia onde se poderia divisar as terras longínquas e pedir proteção aos antepassados e aos céus. Surgira do nada como se sempre tivesse estado naquele mesmo lugar. Começou a travessia da ponte. Não havia mais ninguém para acompanhá-lo. Fez girar ainda mais rápido seu amuleto sobre o braço esquerdo como que pressentindo algo que ele havia sempre temido.

De repente ouviu um trovão, mas não havia nuvens. Seu corpo gelou o tremor do imponderável. Suas pernas pareciam pela primeira vez lhe faltar como que sabendo de antemão o encontro com o inevitável que cada um, algum dia, mais cedo ou mais tarde irá se defrontar. E de novo ouviu outro trovão e reconheceu a voz de Agudo Açoite. Sim, era do seu avô aquela inconfundível voz de barítono rouco.

De dentro da noite enevoada, no meio da ponte chamava-o mais e mais e cada vez mais alto. Chamava-o como ele o chamava quando menino. “Meu neto, meu neto Nestor Alcalino”.

Quando ele deu por si, ele havia parado de girar seu amuleto e estava defronte ao seu avô. Nenhuma palavra saiu da sua boca. Apenas um sorriso quase inútil quis brotar no canto da sua boca, talvez para dizer que ainda fosse cedo e tinha três filhos para acabar de criar.

Num átimo de segundo ele entendeu o motivo da visita repentina. A morte nunca mandou aviso. Mas agora ele estava na melhor companhia que um viajante estelar poderia querer. Para sempre haveria de continuar ouvindo lindas histórias. Morreu ali mesmo antes de poder atravessar aquela ponte que ele mesmo quando criança atravessou para receber os ensinamentos do seu vô Agudo Açoite.

Na noite seguinte, Nestor Alcalino mandou varrer o terreiro três vezes em forma de cruz e fez um círculo no meio do terreiro polvilhando com sal grosso e enxofre e mandou chamar seu neto, como seu avô havia feito com ele há mais de setenta anos. Agora ele entendia para onde ia aquela ponte e, assim, podia sentir a força viva de um espírito. Sim, agora que estava morto ele entendia melhor muitas outras belas e misteriosas coisas.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Palavras: um retorno


Retornar às palavras. O que faríamos se não houvesse este eterno retorno? Meu avô contou uma história que lhe foi contada pelo seu avô. Era assim:

Cristóvão era pequeno quando seus pais disseram que ele precisava sair de casa para ajudar. Ele não sabia muito bem o que era ajuda, nem a quem precisaria ajudar. Esta palavra permaneceu árida de adubos: outras palavras contrabandeadas na fertilidade de segredos.

Deambulou pelos campos por algum tempo. Ele tinha todo o tempo do mundo. A fome veio e, então, conheceu a palavra 'fome'. Descobriu que se comesse a fome iria embora. Mas a palavra fome ficou.

Dormiu ao relento, sentiu frio e descobriu não só a palavra 'frio', mas que se conseguisse se agasalhar o frio iria embora. E, novamente, esta outra palavra foi plantada em seus sulcos. A palavra 'relento' não foi embora com a chegada da manhã. Ao contrário, foi uma palavra regada por estrelas.

Acordou entre estranhos. Logo fez amizade e a palavra 'estranho' também ficou, mas o sentimento havia ido embora. Cristóvão era um rapaz bom. Porém, logo ele descobriu que haviam roubado sua inocência. Percebeu não só a palavra 'inocência' em sua detumescência, mas através dela, a palavra 'dor'. Descobriu que, como a vida, mais cedo ou mais tarde elas também iriam embora. As palavras fertilizavam seus campos e ele crescia entre frases incompletas.

Com a vida, Cristóvão também descobriu que poderia ajudar àqueles que careciam das palavras, pois ele sabia o significado de algumas. Plantou letras e gerou histórias. Suas genealogias. Lambeu docilmente a palavra ‘filhos’.

Mas a vida lhe trouxe com os cabelos brancos, a palavra 'saudade' e, só então, lembrou-se de voltar para casa.

Para sua tristeza, descobriu que seus pais já tinham ido embora sem as suas palavras.

Só então começou a descobrir o verdadeiro significado da palavra 'ajuda', pois agora precisava com urgência daquilo que ele havia saído para buscar. Ficara órfão de uma palavra que mal conhecia.