O Jardim das Delícias - Hieronymus Bosch
A horta da minha bisavó era sem fim. Poderia andar nos meus passos miúdos por horas, talvez dias a fio que não veria nem o contorno rente ao céu da última plantação. Descobri a existência do céu por acaso. Engraçado que o mesmo tempo da descoberta, foi o tempo da tempestade. Minha bisavó me ensinou a olhar para o chão para prestar atenção na festa das joaninhas por debaixo das folhas de inhame, a dança tresloucada da minhoca que arejava ideias sobre os musgos por entre as pedras comestíveis, para os sulcos na terra-húmus escavados durante a última chuva, para os tubérculos que de tão envergonhados recolhiam-se debaixo da terra - e eu, muitas vezes, era tão tubérculo para minha vida ainda diminuta -, para os rastros das lesmas, para os rastros do homem, para os rastros da vida.
Assim, olhava encantado para aquele mundo-chão, para aquele mundo-fértil. E eu ria com as infinitas possibilidades que a cada dia iam o tempo e o vento me revelando. Não, nunca havia olhado para o céu. Não daquela maneira. É claro que eu sabia que existiam estrelas. É claro que a luz do sol iniciava o douramento da minha pele e eu sentia que a vida também começava por ali: fotossíntese era o que havia em mim. Por isso aquela horta era tão extensa. Ela não cabia na minha imaginação. Eu transbordava.
O que aconteceu foi numa manhã. Era um dia ensolarado. Céu azul sem uma mancha de nuvem. Eu e minha bisavó estávamos tropeçando em estrofes que havíamos plantado recentemente quando dei um grito: "vó, uma estrela cadente!" E fiquei como um louco olhando para o céu e rindo. Deixei-me cair por terra, barriga para cima, olhos estáticos e os braços abertos em crucifixo. O sol furava meus poros e eu ardia em febre. Não queria mais sair dali.
-"Você viu o que não devia", falou seca minha bisavó. Era a primeira vez que ela falava assim comigo. Eu vira prematuramente? Criança não podia ver o que em êxtase eu via? Tudo girava e as palavras não cabiam na minha língua. Descobri naquele instante que a linguagem é coisa encantada, mas que é um erro santificá-la. Talvez por isso eu tenha sentido necessidade de estar rente ao chão.
-"Você nunca mais repita isto à luz do dia." Sua voz abrandara, mas o mal estava feito. Eu vira além do que podia ter visto e cometi o pecado de falar. A palavra escorreu em minha boca para nunca mais secar.
Hoje, com a jornada dos dias, ando com a garganta seca. Os olhos lacrimejam na saudade. A palavra escorreu definitivamente para fora do Jardim, mas foram os olhos da minha bisavó que permaneceram lá. Intactos. Eram os olhos na inocência.