quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

A queda da palavra: a perda da inocência



O Jardim das Delícias - Hieronymus Bosch

A horta da minha bisavó era sem fim. Poderia andar nos meus passos miúdos por horas, talvez dias a fio que não veria nem o contorno rente ao céu da última plantação. Descobri a existência do céu por acaso. Engraçado que o mesmo tempo da descoberta, foi o tempo da tempestade. Minha bisavó me ensinou a olhar para o chão para prestar atenção na festa das joaninhas por debaixo das folhas de inhame, a dança tresloucada da minhoca que arejava ideias sobre os musgos por entre as pedras comestíveis, para os sulcos na terra-húmus escavados durante a última chuva, para os tubérculos que de tão envergonhados recolhiam-se debaixo da terra - e eu, muitas vezes, era tão tubérculo para minha vida ainda diminuta -, para os rastros das lesmas, para os rastros do homem, para os rastros da vida.
Assim, olhava encantado para aquele mundo-chão, para aquele mundo-fértil. E eu ria com as infinitas possibilidades que a cada dia iam o tempo e o vento me revelando. Não, nunca havia olhado para o céu. Não daquela maneira. É claro que eu sabia que existiam estrelas. É claro que a luz do sol iniciava o douramento da minha pele e eu sentia que a vida também começava por ali: fotossíntese era o que havia em mim. Por isso aquela horta era tão extensa. Ela não cabia na minha imaginação. Eu transbordava.
O que aconteceu foi numa manhã. Era um dia ensolarado. Céu azul sem uma mancha de nuvem. Eu e minha bisavó estávamos tropeçando em estrofes que havíamos plantado recentemente quando dei um grito: "vó, uma estrela cadente!" E fiquei como um louco olhando para o céu e rindo. Deixei-me cair por terra, barriga para cima, olhos estáticos e os braços abertos em crucifixo. O sol furava meus poros e eu ardia em febre. Não queria mais sair dali.
-"Você viu o que não devia", falou seca minha bisavó. Era a primeira vez que ela falava assim comigo. Eu vira prematuramente? Criança não podia ver o que em êxtase eu via? Tudo girava e as palavras não cabiam na minha língua. Descobri naquele instante que a linguagem é coisa encantada, mas que é um erro santificá-la. Talvez por isso eu tenha sentido necessidade de estar rente ao chão.
-"Você nunca mais repita isto à luz do dia." Sua voz abrandara, mas o mal estava feito. Eu vira além do que podia ter visto e cometi o pecado de falar. A palavra escorreu em minha boca para nunca mais secar.
Hoje, com a jornada dos dias, ando com a garganta seca. Os olhos lacrimejam na saudade. A palavra escorreu definitivamente para fora do Jardim, mas foram os olhos da minha bisavó que permaneceram lá. Intactos. Eram os olhos na inocência.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

A palavra inventada


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Minha bisavó era religiosa. Ela acreditava nas folhas de couve. Dizia assim: "meu neto, se aquela couve brotar viçosa (ninguém mais diz a palavra viçosa como ela dizia), vou dar um nome para ela". Para ela, dar um nome fazia com que a couve brotasse em flor e folha como uma linda floresta. E eu ficava imaginando uma floresta de couves com formigas colossais e caracóis gigantes que passeavam sob suas sombras. A bisa acreditava nos nomes e dizia que o nome é o primeiro ato de amor que podemos dar à uma criança. E remendava: "quando você dá um nome para uma criança que ainda não nasceu, ela imediatamente passa a pertencer a sua família. Antes disto ela não é ninguém. Isto é um ato de amor, pois amor é acolhimento", dizia ela em sua singela e enorme sabedoria.
Então, aventureiro como sempre fui quando o negócio se tratava de palavras, perguntei a avó se eu mesmo poderia batizar aquele pé de couve. Mas vai que "chuva que beira a noite, não tarda em desfolhar palavras", dizia ela. E o dito ficou pelo feito. O dia virou noite antes mesmo do sol se por e houve o destronamento da horta. Era água que nunca caberia em nenhum dicionário por maior que fosse. Na verdade, choveu mesmo da página 93 até a página 215. E foi tanta chuva que chorei prevendo o que acabei por constatar na manhã seguinte. Corri até a horta e nem mais a palavra horta havia, se eu soubesse naquele tempo, escrevê-la.
E eu tinha ficado com a palavra inventada atravessada na minha cabeça, como um estrepe no pé.
-"Vó", eu disse engolindo um soluço, "o que eu faço com o nome que eu havia inventado para aquele pé de couve?"
- "Vamos plantá-lo", disse ela sorrindo. Mas eu sabia que por dentro ela também estava triste, por que ela também tinha inventado muitos outros nomes para os outros pés. Seu Nonô, que era quem trabalhava na horta, veio logo com uma enxada.
_"D. Tavinha, Seu menino" - ele nunca soube pronunciar meu nome e, no entanto, nunca senti tanto encantamento no impronunciável como quando ele me chamava -, "não há de ser nada não. Quando uma muda couve se adianta, outra mais forte se alevanta". E isto era quase Camões, mas era o velho Seu Nonô em sua prosa poética.
Nós três passamos a manhã ali. Plantei palavras como nunca soube que plantaria. Minha bisavó me ensinou que no corrido do canteiro não tem importância você plantar um 'n' antes de 'p' ou 'b', "pois lá embaixo, sob o estrume, as raízes é que embaralham certo a nossa cultura". A bisavó falava de cultura e eu bebia daquela sua água colhida ao longo da vida: água que eu colhia já quase sem esperanças no final do alfabeto, dentro da letra 'u'.
Hoje, quando fico ateu das lembranças que tinha dela, recordo logo da sua crença e me reconcilio inventando outras palavras. Como diz o poeta Manoel de Barros, "as palavras que não têm nome são as mais ditas por crianças."

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Palavras rolando

Noite estrelada - Van Gogh

A noção de que as ideias voam e as palavras rastejam não é nova. Nasceu, com certeza, com a minha bisavó e não de Shakespeare como muitos pensam. Ela era dada a novidades. Certa vez descobriu uma nova constelação, uma colcha de estrelas, como ela mesma dizia. E isto a olho nu. Ela enxergava longe. Ela fazia fuxico e, antes de morrer, me deixou uma colcha que agasalha a minha imaginação até hoje. Era uma mulher além de seu tempo. Vivia no mundo da lua, ou quase lá, aliás, às vezes e, frequentemente, ultrapassava a lua e bordejava estrelas.
Ela me dizia por detrás de seus óculos pequeninos: "meu neto, as palavras veem das estrelas. Elas descem de noite, entram nos nossos sonhos e a gente quando acorda está de palavra nova". Assim ela dizia, assim eu cresci em sua crença. Coisa de menino que via no escuro da roça, as palavras tomarem forma. Algumas vezes eram palavras candentes. Noutras, eram palavras azeitadas no inferno. E nestas horas eu corria para debaixo da cama que é o lugar mais seguro do mundo quando se está com medo e a vida não transcorreu mais do que cinco anos. É assombroso o que se imagina do inferno quando se é pequeno: um lugar sem brinquedos, sem sossego, sem minha avó, sem o vô, com muito fogo que sai do leão de duas cabeças. Tudo bem que é o Cérbero, famoso cão do inferno, mas criança sempre acha leão pior do que cachorro, ainda mais quando se tem alguns e na roça o que a gente mais tem são cachorros, pulgas, carrapatos, trinca-ferros, coleros, abelhas, vespas, catapora, coqueluche, bicho de pé, nariz fungando, vagalumes, estrelas e mais estrelas. Na roça as estrelas são em maior número do que em outro lugar. A não ser quando chovia. E era nestes momentos sujeitos a chuvas e trovoadas que eu, ainda pequeno e impertinente, perguntava mais ou menos assim a minha avó:
- "Vó, hoje de noite não tá chovendo?"
- "Claro, meu neto. Tá chovendo muito".
- "Então o céu não tem estrelas".
- "Isto mesmo, meu neto".
- "Então hoje não teremos palavras novas?"
Pela primeira vez eu vi minha bisavó triste, triste como uma mariposa em volta da luz. Então ela me contou uma história surpreendente. Era sobre um menino chamado Sísifo - assim do seu tamanho, ela dizia -, que morava num lugar que chovia toda a noite e, portanto, há muito tempo não ganhava nenhuma palavra nova. -"E como é que ele fazia para viver sem uma única palavra nova?", perguntei ansioso. "Ele ia rolando sua palavra até no alto de uma montanha, mais alta do que o seu pensamento pode alcançar, e quando ele estava quase lá no alto ele a soltava e ela ia fazendo como uma bola de neve: ia crescendo em outras palavras e quando ela chegava lá embaixo já havia quase uma frase. Tinha dias que ele colhia uma história quase que por completo. E assim ele fez todos os dias ao longo dos seus centro e trinta e dois anos de vida, pois ele viveu muito", contou-me a vó. - "Então ele escreveu muitos e infinitos livros?", perguntei fascinado.
Cresci com a crença de que as palavras veem mesmo das estrelas e disso eu não duvido nem um pouco. Tanto é assim que quando eu fico sem inspiração para escrever, eu volto sempre ao campo e, deitado ao relento, olho fixamente para o céu e me deixo regar pelo mar de palavras que caem em noite estelar.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

A fábrica de palavras



Escrevi no meu último post (leiam: A palavra oculta) que meu bisavô tinha muitas manias. Não era uma única. Se vocês voltarem lá verão que a palavra já estava no plural Ele próprio era plural. Ele era singularíssimo em sua pluralidade.
Sua casa era simples como seus abraços. Abraçava e a gente se sentia extremamente acolhido como a noite acolhe o fim do dia e eles sabem a razão de se sentirem assim. E pronto. Sem adereços nem outras fantasia. Meu bisavô era a sua casa e, agora sabemos com tristeza, mutilado da minha bisavó, seu grande amor. Mas meu bisavô era um homem muito ativo, dado a fazer e a inventar coisas. Seu luto e seu eterno conversar com os livros não consistiam num abatimento. Muito pelo contrário. Arrancava de dentro da sua baixa estatura e corpo franzino, que a idade sempre contribui por fazer enxurrada, uma grandeza jamais vista.
Ele tinha uma oficina atrás de sua casa. Consertava tudo e seu tudo para gente simples do interior era bem pouco, ao menos para o muito e o excesso que conhecemos hoje. Vocês sabem do que estou falando. Tudo de seu mundo, bem dito. Mas era habilidoso com as mãos para a madeira e o torno. A bisa tinha a mão boa (que destino ingrato) para plantar.
Mas, vai que desde sua viuvez, o bisavô passou a se trancar em sua oficina. Criança, por sua natureza, é sempre um serzinho extremamente curioso. Quando se diz 'não pode', 'não olhe', aí é que o bicho da curiosidade germina e coça sem parar. Eu queria saber o que ele fazia. Barulho havia (plainas, serrotes, pregos sendo batidos, esmeril, serra elétrica, etc), o que não havia era entendimento para aquilo tudo. Talvez por medo ou vergonha ele não deixava ninguém olhar. Era mania sua e devia de ter alguma ligação com a morte da bisa.
E foi numa manhã azul de domingo que ele pediu que todos nos arrumássemos bem bonitos para irmos à missa. Mas quando estávamos todos prontos, ele disse que naquele dia ninguém precisava ir a igreja. Eu, ainda menino, como minha fé amarrada tal como linha puída de pipa, exultei de alegria com a notícia de meu ateísmo dominical. Ele fez a família se enfileirar tal como numa procissão e nos conduziu solene para a porta de sua oficina. Talvez fosse sua missa, talvez quisesse virar um beato religioso.
Cauteloso como era, deu um passo à frente de todos e disse com a gravidade que sua voz entoava. Hoje vocês irão conhecer a minha fábrica. E abriu as duas portas de madeira da sua oficina. O que vi não coube dentro dos meus olhos. Não coube dentro de mim. Talvez jamais caberá um dia.
Meu bisavô havia escrito um livro, aliás, um não, mas vários. Ou melhor, ele havia escrito várias histórias. Explico: ele havia feito letras, muitas letras de galhos retorcidos de goiabeira, outras letras de madeira de caixote. Letras de todas as formas, cores e tamanhos. Tudo com exímia perfeição. Tudo com um carinho, uma devoção e amor que só um homem apaixonado e apaixonante faria. E disse orgulhoso: "esta é a minha fábrica de palavras. Aqui estão as histórias da minha vida e aquelas outras que eu gostaria de contar para sua avó (e meu pai e toda a família chorávamos muito como um rio sazonal que acorda de repente de sua secura anual) e não tive tempo."
Eram letras lindas que formavam palavras que não entendíamos: nuigo, rastléu, ponciaras, luzdalua... Me desculpem. Já não sei mais se minha memória falha, ou aqui invento o não visto da saudade, mas como disse minha querida Clarice, viver ultrapassa todo o entendimento.
Então, foi com o o coração ultrapassado pelas palavras que abraçamos o vô com sua igreja de palavras inventadas no amor. Abraçamos o vô em sua doce simplicidade. Era o seu ofertório, seu alfabeto traduzido no sem fim do amor.
Foi neste momento que se deu um fato extraordinário: minha bisavó apareceu bem ali na frente de todos. Era uma febre coletiva, insanidade do vô transmitida em suas hierarquias? E sorria como a palavra amanhecer. E seu sorriso emudeceu nossos olhos arregalados. Chegou como se sempre tivesse estado ali, tomou a mão do bisavô e, um por uma, foi recolhendo todas as palavras, todas aquelas letras sem nenhum nexo aparente e colocando dentro do seu velho balde. Depois saiu da "fábrica" e a procissão familiar a acompanhou até a sua horta. Ali ela pegou a enxadinha que continuava caída no mesmo lugar desde a sua partida. Com o mesmo carinho e desvelo de sempre, olhou para nós com um sorriso convidadito e começou a cavar pequenos buracos naquela terra úmida de nossas lágrimas felizes e plantar, uma após outra, aquelas letras e palavras. Sem ninguém dizer nada, soltamos estupefatos nossas mãos e cada um começou a repetir seu gesto inaugural de plantar palavras. Meu avô era um crente. Ele acreditava que as palavras possuíam o mágico poder de fazer ressuscitar. Mas ele nunca mais foi a igreja. Precisava?
Ainda hoje gosto de voltar lá e rever seu canteiro de fertilidades. Reza a lenda local, talvez iniciada pelo próprio bisavô, que daquela horta nasceu Guimarães Rosa, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade...

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

A palavra oculta

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Meu bisavô era um sujeito cheio de manias. Morava numa cidadezinha do interior das Gerais. A vida naquela época passava devagar. Um dia poderia ter umas 48, 50 horas, sem nenhum exagero. Acordava-se, tomava-se café com leite e besuntava-se de manteiga amarelinha no pão feito de véspera. Na roça o galo dava o tom do despertar. Aquilo era dia para nunca mais se acabar. Às vezes tinha broa de milho e a festa quase se completava.
Ele ficou viúvo muito cedo. Mais cedo do que o despertar do galo. Dela não tenho muitas notícias. Foi coisa assim: chovia fininho, a serração baixava no taquaral sem dar sinais de sol. Névoa sem vento custa deixar saudades. Ali ela chega de mansinho e não vai embora nem depois que a carroça de leite passava. E passava cedinho. As vacas e os galos possuem esta mania de despertador. Neurose rural, brincava já cedo. Pois bem, para não levar esta estória por detrás dos montes, eu dizia que a minha bisa saiu cedinho para a horta. Dizia-se lagarta. Quando ela voltava era um verde só e por detrás de seus braços, lá se avistava ela sorridente como um horizonte. Mas neste dia de chuva fina o sol não brilhou mais naquela casa. Quando ela se abaixou para arrancar rente ao chão um pé de couve, sentiu uma picada bem no pulso direito e a peçonhenta esgueirou-se em direção ao córrego. Houve gritaria, pois médico era o que não havia.
Meu bisavô, talvez por distração ou loucura, pegou um livro para ler a salvação. Achou que era um livro de medicina e curaria minha bisavó. Não teve jeito.
Daí pegou a mania. Todas as tardes ele ia para a biblioteca e ficava por horas lendo, lendo lendo. Nunca mais até o final de sua vida ele deixou este ritual. Ninguém o incomodava porque sabiam o motivo daquele enclausuramento nas palavras. Ficou mudo. Conversava só com os livros durante horas e horas a fio, diziam quem dele mais se aproximava. Virava as páginas e, dependendo do livro, soltava uma exclamação, um grito rouco, ou um suspiro.
Dele, herdei esta louca e apaixonante mania pelos livros. Apenas com uma única ressalva: meu bisavô nunca soube ler.

domingo, 6 de dezembro de 2009

GastrôVeredás

macarrao2


Queridos amigos. Vocês tem fome de que? Vocês tem sede de que?
Pensando nisso e numa deliciosa aventura gastronômica, criei um novo blog. Chama-se GastrôVeredás.
Entre outras coisas, assim escrevi lá:
Este blog é filho dileto do Veredas: Literatura e Psicanálise. Dele herdou o nome, mas como eu disse que para mim a gastronomia é uma deliciosa brincadeira, porque não afrancesar o sertão verediano dando-lhe um sotaque internacional? Mas os puristas do nosso vernáculo poderiam opor-se com veemência clamando por uma nacionalização macunaímica. A estes respondo que pretendo sim fazer uma comida internacional (Sem pedantismos, não é Julian Barnes? "O pedante na cozinha", Julian Barnes, Rocco), pois não há fronteiras entre temperos. Entre sabores, sim. É preciso que fique bem demarcado cada sabor, que fique bem demarcado cada aroma para que se possa distinguir as texturas e a leveza da consistência.(...).
Querem saber mais? Deu fome? Curiosidade pura?
Então, encontrem-me lá. veredasgastronomicas.blogspot.com
Beijos e abraços,
Carlos Eduardo