sexta-feira, 27 de novembro de 2009

A origem das palavras


Pegou um pedaço de pedra e rabiscou a parede.
Pegou um lápis e rabiscou a parede.
O primeiro menino fez isso há seis mil anos atrás. Era o início da escrita cuneiforme.
O segundo menino, na minha infância.
Queria ser um artista das palavras, por isso rabisquei como entendia que meu irmão rabiscava os cadernos. Minha mãe achou engraçado eu dizer que queria ser rabisqueiro. Foi esta palavra, reza a lenda, que dizem que aquele menino inventou. Tinha então cinco, quase seis anos. Meu pai olhou sério e mandou apagar. O menino ficou triste porque havia achado bonito. Um grande ato de heroísmo, pensou. Queria fazer outros.
Achou uma máquina do tempo. Era o tempo da infância do mundo. Da escrita no mundo. Entrou numa caverna que depois saberia chamar-se Lascaux. E ali reinventou-se. Não havia nem pai nem mãe que o impedissem de nada. Sua caverna o autorizava a escrever nas paredes. Pintou bisões, corças, cavalos e ideias. Reteve as ideias num canto em especial. Chamou-as de pensamentos. E, pela primeira vez teve uma espécie de formigamento no peito. Afinal, sentia o que escrevia. Era engraçado pensar daquela maneira. Entendia pela primeira vez para que servia o seu coração. Seu pensamento era livre e voava leve como voam as nuvens. Subiu numa pedra porque a parede da sua caverna estava ficando pequena para tantas palavras-rabisco. Já não eram palavras soltas. Elas agora formavam uma história. A história da humanidade começava naquele momento a ser contada. E ele era A origem. Gostou de brincar de Gênesis. A luz oblíqua da tarde do sol penetrou até o fundo da caverna. Então, Fiat Lux! Ele ajeitou-se para escrever um pouco mais. Sorriu e escreveu seu sorriso na parede. Depois teve medo e lá estava escrito também na parede do meio. Inventou a palavra música e um grito surgiu-lhe da garganta colando-se entre colcheias na fenda da rocha. Estava sendo auto-alfabetizado. Criou o primeiro enigma para o primeiro hieróglifo, sua escrita sagrada. Não soube desvendá-lo. Mas ficou satisfeito com sua proeza de menino. Um enigma para ser desvendado pela humanidade. Para deixá-lo ainda mais intrigante, pegou um pouco de terra e esfregando com suas mãos, apagou metade dele. Pronto. Melhor do que um segredo, só a incompletude deste. Sabia que estava dando trabalho futuro para muitas pessoas. E muita dor de cabeça também. Ficou feliz em se considerar o primeiro empresário da Terra. E inventou a palavra inocência, mas para esta não conseguiu escrevê-la na parede. Escrevia sempre de forma tão leve que se apagava ao terminar de imprimí-la. O sol já havia se posto quando, quase que tateando, escreveu a palavra sono.
Quando sua mãe acordou no dia seguinte encontrou-o dormindo deitado no chão sobre um monte de folhas que ele havia arrancado de seus livros. Nas paredes estava "escrito" à sua maneira, tudo que ele havia "lido" no Tesouro da Juventude.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

A palavra escrita é mágica



Toda palavra que uso para escrever é mágica. Não sei de onde me vem esta necessidade de preencher lacunas, espaços invisíveis entre meu pensamento e a ponta dos meus dedos. Não sei de onde me brotam as palavras. Simplesmente elas aparecem. Posso não gostar de uma ou outra. Tem dias que não gosto de nenhuma em especial. São as mesmas sendo outras, ou o avesso disso. Mas isto é totalmente alheio a minha vontade. Escrevo por desejo, escrevo por não saber-me de outra maneira. Sinto um afeto enorme na alma quando as palavras dançam na minha frente copulando freneticamente. Este afeto nem sempre é afetividade da maneira como estamos acostumados a descrever este fenômeno. Na maioria das vezes não é. Angústia talvez seja seu nome. Agora, após escrevê-la, tenho certeza. Mas isto não é um nome que se escreva, mas sim um nome que se sinta. Muitas vezes é impossível escrever uma palavra, por isso ela se torna mágica. Ela está ali. Bem ali defronte de nossos olhos, mas não conseguimos escrevê-la.
Sinto uma enorme nostalgia em calçar palavras desusadas. Noutro dia tropecei com uma assim. Estava passando por uma plantação de trigo, o vento começou a roçar nos vértices e descrever uma parábola para esta palavra que possuía uma cor estranha, jamais ouvida, jamais sentida em sua diminuta austeridade. Era uma palavra sem dor. Achei engraçado isso, pois até onde a minha memória possuía lembrança, as palavras mais encardidas eram aquelas entre o azul das possibilidades e o horizonte onde toda morte repousava suave. Para mim toda palavra tinha ao seu final o dom da tristeza pela partida que ela já continha em seu interior. Por isso toda palavra possuía um certo aceno, um adeus ao ser escrita. Eu era sempre aquele que ficava no cais, olhos marejados na alegria, diante da imensidão do mar que levava minha palavra para seu destino oculto.
Queria recolocar a dor em outros termos: fertilizar feridas no sentimento e ruborizar os moralistas desavisados. Deparar-me com uma palavra escrita sempre foi estar aberto ao mais e nisto também há magia.
Passei a ponta dos dedos sobre o trigo e meu coração parou congelado. Não morri, é claro, se estou a escrever, mas ler o que eu li apenas passando a ponta dos dedos como um cego faria, fez com que o tempo emudecesse entre a saudade e a esperança. Fiquei ali, de resto. Apenas aquela palavra a me fazer companhia. Isto era o perigo pressentido: depender de uma única palavra para se mover no tempo sem que o verbo se fizesse carne.
Foi assim que a palavra escrita se fez em mim. Não vi quando ela chegou ainda sonâmbula na madrugada da vida, nem de onde veio.
Do inconsciente constato que ao escrevê-la posso dizê-la de um outro lugar ainda não habitado pelo verbo. A sonoridade da palavra escrita é quando ela já não cabe no papel, transbordando-se assim para um lugar só meu, tão meu que sou capaz de tocá-la eroticamente com a ponta dos dedos, tal como um cego, já disse. Percebo que neste movimento meus olhos constantemente se arregalam para fora do Jardim.
Então, escrevo-a tatuada em meu corpo e, de uma maneira estranhamente mágica, vejo-a reaparecer como leitura nos olhos teus.


Ps: Ler ao som de Time after time de Chet Baker.

domingo, 8 de novembro de 2009

A palavra no silêncio


Estava rodeado de silêncios quando ela entrou em minha vida. Não é que estivesse só. Estava em silêncio. Talvez não soubesse muito bem a diferença entre silêncio e solidão. Só fui me dar conta quando ela surgiu em mim. Meus silêncios, se bem me lembro, sempre estiveram rodeados de palavras. Todas indizíveis naqueles momentos.
Desde cedo, aprendi com meu avô, que palavra guardada é água em nascente. Ainda não é rio, muito menos cachoeira, mas está rodeada de plantação que preserva o nascedouro de letras, estrofes, rimas ricas e ficções. Assim cresci, assim me senti até o momento em que não me sentia mais. Dava falta por mim. Foi por esta época que descobri a dimensão do silêncio. Não emudeci, muito pelo contrário. Nesta época falava mais. Dei para falar com nuvem cinza, vento no fim da tarde, galhos retorcidos, violoncelos, andorinhas em revoada, sapo martelo e grilos: estes eternos inimigos do silêncio. No silêncio estavam todas as palavras. Todas por dizer ou escrever. Era feliz em meus nascedouros. A palavra jorrava infâncias e eu era abduzido por letras extra-carloseduardianas. Ficava confortável naquela situação. Na infância da vida todas as palavras são bem vindas. O único problema é que ainda não sabemos disso. Então a gente sofre por acréscimo e os invernos tornam-se cada vez mais agudos e os outonos mais sinceros. Na lida diária, a tristeza toma um lugar muito especial quando aprendemos a dimensão da palavra amor. Quase sempre ela vem acompanhada de duas palavras: encontro e despedida. Parecem irmãs, mas só tomam a real dimensão de sua intensidade quando transversais ao amor. Na lida diária, a alegria toma um lugar muito especial quando aprendemos a dimensão da palavra amor. Quase sempre ela vem acompanhada de duas palavras: encontro e despedida. Parecem irmãs, mas só tomam a real dimensão de sua intensidade quando transversais ao amor.
Na infância era muito difícil saber quando uma frase encontrava seu crepúsculo e outra iniciava um opúsculo. Na infância tudo ainda está por nascer. Nem o silêncio é todo. Alguns ruídos extremados de ansiedade parecem querer nortear o coração, mas falseiam ainda na puberdade das palavras.
...estava rodeado de silêncios quando ela entrou em minha vida. Maduro, estava longe de antigas nascentes. Talvez nem lembrasse mais delas. Haviam ficado escorridas, cada uma com sua indizível dor pelo estuário da memória.
Habitar a palavra é habitar o seu indizível? É negociar com ela sua passagem mais delicada pelo tempo de sua morte? Tenho a suspeita de que deixar uma palavra morrer é escrevê-la. Porque viver é também morrer aos poucos já que a vida inaugura a morte. Viva, a palavra em mim habita. Morta, ela jaz no papel e já não me pertence.
Abandono palavras como um pássaro abandona seu ninho quando aprende a voar. Aprendi com meu avô a escrever palavras nos bancos das praças, nos olhos dos morcegos, no escuro da noite, antes de virar uma página, nas asas das corujas, enfim, em todos os lugares em que habitasse com meus silêncios. Só não lembrei de perguntá-lo como é que se evita a ilusão no amor. Se ele estivesse aqui eu novamente estufaria o peito, como fiz tantas vezes em criança, e perguntaria: vô, como é que se escreve uma palavra no meio do amor? Isso ele não me ensinou. Fico então achando que "nós dois somos um só". Mas o engano não cabe em meus silêncios. Então escrevo a procura da verdade. Não-toda, bem sei. O contrário seria beirar a loucura. Mas, quantas vezes na história da humanidade o amor não esteve íntimo da loucura? Escrevo. Escrevo loucamente e sorrio como os lagartos camaleônicos. Assim, as palavras me desabitam deixando-me esverdeado em meus silêncios e esperanças.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

A palavra emprestada

Estava só e tomei uma palavra por empréstimo para me fazer companhia. Não lembro bem qual era. Já tinha bebido muito, mas posso garantir que não foi qualquer uma. Queria uma que fosse única, especial para me fazer companhia. Meti-a com cuidado no bolso do casaco e saí do bar em frente ao circo mambembe que horas antes eu me deliciara assistindo, e segui em direção ao hotel em que estava hospedado. Os clowns sempre me impressionaram pela sua alegria-triste: um sorriso vermelho, artificial que quase termina nas orelhas e os olhos amordaçados de tristeza. Enquanto caminhava sozinho pelas ruas daquela pequenina cidade interiorana, lembrava da minha infância rural. Naquela época as palavras ainda me duvidavam e a solidão escoltava meu espanto feliz diante das coisas simples da roça: duas andorinhas implicando com um gavião (por que elas sempre fazem isso?), as gotas de orvalho que eram como pequeninas pérolas retidas nas folhas de taioba (eu brincava de fazerem-nas escorregarem e juntava uma na outra até caírem para fora da folha), a lagarta amassada na terra pela roda do carro de boi, as avencas úmidas entre as pedras, um pé cheinho de carambola, os rastros de bosta deixados pelas vacas em direção ao pasto, as borboletas azuis e as amarelas por ali fazendo seu ninhal e sua delicada revoada, a casa de marimbondo chapéu na folha do coqueiro e muitas outras lembranças para assar no forno de lenha da casa avoenga.
Caminhava distraído em minhas recordações evocadas pelo circo quando novamente meti a mão no bolso para brincar com a palavra que havia pegado emprestada. Lembro imediatamente de ter tocado numa alta e intrépida consoante, depois numa serpente menor e, logo a seguir numa vogal pela sua maciez. Não queria machucá-la ao trocar de lugar com outra vogal ou uma consoante. Vocês sabem como as palavras são extremamente sensíveis ao menor toque em suas letras. Se retiramos uma do lugar, as palavras imediatamente são capazes de tombar desacordadas e ficar ali por uma infinidade de tempo, totalmente imprestáveis, imóveis como uma coruja até que restituamos a letra surrupiada. No entanto, existem palavras que nem precisamos tocá-las para percebermos que são inertes em sua essência. A palavra pedra, por exemplo, é uma destas palavras condenadas à imobilidade. Por si só não é nada, mas basta um Mick Jagger para você ver até aonde esta pedra é capaz de ir. A palavra solidão também parece ser possuída por uma rica força interior que nada a move, exceto se uma outra palavra vem percorrer ao seu lado em sua história.
Ainda com a mão no bolso senti a agudeza de outra letra. Uma consoante desta vez. Ereta como um eucalípto.
Outra mexida e minhas mãos tocaram noutra vogal. Era magrinha com um chapéu. Poderia bem ser um 'i'. Deixei-a quieta. Letras frágeis assim não são boas de se brincar com elas. Costumam ser irritadiças como D. Quixote. Lançam-se impetuosas como se fossem a flecha de um arco ou a própria lança do cavaleiro andante.
Mais um pouco a direita e meu indicador encontrou a aspereza de um 'r'. Não tinha a menor dúvida de que letra se tratava. Em tempos remotos já havia me deparado com sua dura aspereza e não ia ficar ali esperando ser detonado por esta letra da raiva.
Mas, de repente, corri ligeiro c'os dedos e, absorto, descobri que a palavra havia sido quebrada. Não, não era um hífem que a separava de sua outra parte, muito menos era uma palavra composta ou sequer uma expressão do tipo 'valha-me Deus!'. Percorria com os dedos a sequência das letras e não achava uma razão de ser naquela descontinuidade. Sentei triste num banco da praça e, cuidadosamente, fui retirando as letras do meu bolso, uma por uma, ou melhor, o que ainda restava delas e colocando-as sobre uma pequena mesa de cimento ao lado de uma árvore (é importante que eu dê todos estes detalhes). Ao meu último ato olhei dentro do bolso para ver, até aonde a luz me permitia, se ainda havia alguma letra esquecida por entre a costura e o forro do bolso, pois como já disse, basta uma letra esquecida para a inutilidade da palavra.
Para meu grande espanto, quando voltei meus olhos para a mesa não encontrei uma só letra. Imediatamente olhei para o chão pensando numa lufada de vento que acabara de me roçar os cílios. O chão de cimento estava limpo. Apenas algumas folhas secas ciscavam insólitas na madrugada. Estava relembrando o que fizera desde a saída do bar quando ouvi um leve barulho num galho da árvore. Virei-me imediatamente e, surpreso vi, ou melhor, li, ainda não sei bem, uma palavra se mexendo por entre os galhos. De início li trapezista, depois contorcionista e, logo a seguir, mágico. E a palavra sumiu em mim. Por inúmeras vezes retornei àquele circo na esperança de reencontrá-la. Sempre em vão.
Por isso escrevo e, a cada palavra escrita, coloco-a dentro do meu bolso para que quem sabe ela me leve até aquela outra palavra tomada por empréstimo e, agora, para sempre perdida. E a cada ato de colocar uma palavra no meu bolso, constato sem querer acreditar, que não posso carregar a palavra que não me pertence.